“Ô vizinho, você ficou sabendo do casal que foi assassinado dentro da própria casa?
Tô sabendo não, tô trabalhando demais vizinho… nesta cidadezinha tão pacata agora tá violenta assim?
Mas é que elas eram um casal de mulheres…tão falando que foi crime de preconceito por elas serem daquele jeito, sabe? Sapatão…
Oxente, mas isto não justifica não. O criminoso já tá na cadeia?
Tá não, dizem ainda que foi o tio que matou e fugiu pelo mundo.
Ave Maria, Deus abençoe e conforte essa família.
Amém, vizinho, Amém!”
Essa é uma história de mais um casal de lésbicas que foi assassinado dentro da sua própria casa por uma pessoa próxima. Em casos como este, a maioria das investigações são arquivadas, principalmente quando se tratam de mulheres pobres, pretas e periféricas, em que a família não tem recursos para conseguir acesso à Justiça.
O nome para esta situação é lesbocídio, que são crimes de ódio contra mulheres que se relacionam entre si. Parece mais um nome e mais uma complexidade no vocabulário LGBTQIA+, mas é muito importante que os casos de lesbocídio sejam categorizados desta forma. Esse é um caminho para um acompanhamento efetivo de política pública e para o entendimento se há uma evolução ou não nesta temática, para, assim, criar estratégias específicas e assertivas que são diferentes dos casos de feminicídio.
A má notícia é que os indicadores relacionados a mulheres lésbicas são praticamente inexistentes em todo o país. Para entender um pouco desses números, primeiramente, precisamos saber quantas pessoas se autodeclaram como mulheres lésbicas ou bissexuais/pansexuais, então, vamos aos dados apurados em 2019 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O levantamento indica que 2,9 milhões de pessoas de 18 anos ou mais se declaram lésbicas, gays ou bissexuais.
A divulgação foi polêmica, pois segundo outras pesquisas realizadas por universidades, como a Universidade de São Paulo (USP), a população LGBTQIA+ chega a quase 20 milhões no Brasil, uma diferença exorbitante. Mas vamos ao que interessa, deste percentual quantas são mulheres que se relacionam com mulheres?”
Apenas 0,9% deste número se consideram lésbicas. O próprio IBGE disse que a pesquisa ainda é um “experimento” e que muitas pessoas não se sentem confortáveis em se autodeclarar da comunidade LGBTQIA+. Isso se dá a muitos fatores, seja pela própria pessoa que não se autodeclara por medo; ou pela própria família que nega, já que muitas vezes o censo é realizado por uma única pessoa do domicílio que responde por todos que moram ali.
O próximo passo é entender o percentual de mulheres que sofrem violência por lesbofobia. Segundo o Anuário de Segurança Pública de 2022, há um descaso na produção de dados e também imposição de barreiras ao atendimento da população LGBTQIA+.
:: Visibilizar a existência lésbica é uma reivindicação feminista ::
É importante explicar que não existe nenhuma lei específica contra crimes à população LGBTQIA+, dessa forma, os crimes referentes à lesbofobia são regidas pela mesma lei de injúria racial e racismo, portanto, além da falta de capacitação dos profissionais no entendimento e acolhimento às vítimas, existe uma confusão no registro destes dados e consequente, não há relatórios com números assertivos.
Apesar de ser uma missão quase impossível conseguir estes indicadores, felizmente, coletivos, organizações da sociedade civil, familiares e a própria mídia têm buscado apurar esses casos. Segundo Gênero e Número (2022), em média seis lésbicas foram estupradas por dia em 2017, sendo que 61% aconteceram mais de uma vez e a grande maioria dos agressores são homens próximos, que convivem inclusive na mesma residência.
Não existe motivo que justifique o estupro, contudo muitas pessoas acreditam na “cura lésbica” através de reza, casamento forçado e estupro. Essas “soluções mágicas” não existem e causam problemas muito maiores como a depressão, suicídio e homicídio. A partir do Dossiê sobre Lesbocídio do Brasil de 2014 a 2017, foram identificadas 54 mortes de lésbicas em 2017, um aumento de 237% em relação à 2014; e 19 casos de suicídio no mesmo ano, um percentual que representa 32% de toda a comunidade LGBTQIA+.
Já que dá tanto trabalho, por que investir?
Porque 1% de mais de 200 milhões de pessoas é muita coisa. Vamos imaginar que você trabalhe em uma empresa que tenha milhões de clientes, mas 1% faz reclamações diárias graves sobre o atendimento da empresa, diversas estratégias serão direcionadas para solucionar este problema. Agora imagine se houvesse uma morte de um cliente relacionado à empresa? Mobilização geral. Manifestações. Caos. Se centenas de mulheres sofrem crimes de diversos tipos relacionados à lesbofobia no país, a segurança nacional deveria estar se mobilizando da mesma forma, já que os casos de violência custam muitos recursos para o Estado.
Mas não é somente sobre recursos.
Nós queremos viver em um país inclusivo e principalmente, seguro. O nosso imposto e o nosso voto devem ser direcionados para que qualquer pessoa viva de forma segura e consiga que todos os seus direitos como cidadã sejam assegurados.
Mais questionamentos, menos violência, menos crimes contra mulheres lésbicas. O que precisamos é de políticas públicas que mudem este cenário. Hoje eu vou dormir pensando nestes números, e eles não vão sair da minha cabeça tão cedo, porque, mais do que números, eram mulheres que amavam e só queriam ser livres.
:: Mulheres lésbicas e bissexuais: nossa luta é maior que nosso silêncio ::
DJ Ana Karolina de Souza Santos, Ana Paula Campestrini, Marielle Franco, Jeyciele Moura dos Santos, Clara Ferreira de Oliveira, Rosely Roth, entre outras mulheres vítimas de lesbofobia, presente!
*Juliana Gonçalves é fundadora e diretora do Instituto Rebbú, é especialista em gênero e suas interseccionalidades, acredita que a mudança só acontecerá se for coletiva.
** As opiniões expressas nesse artigo não representam necessariamente as do Brasil de Fato
Edição: Rodrigo Durão Coelho