cultura popular

As igrejas e os bares são mais eficientes que centros culturais?

Tão importante quanto espaços formais de educação e cultura é o “ecossistema cultural” em que o indivíduo está inserido

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Assim como o conteúdo compartilhado em ambientes formais de educação e cultura, são igualmente importantes a forma, os laços afetivos, as redes simbólicas de apoio e confiança que um indivíduo estabelece - MST

Existe uma tradição nas forças de esquerda, moderadas ou radicais, de acreditar na educação para “conscientizar” e iniciar politicamente um indivíduo. Reina um consenso de que bastariam processos educativos de qualidade para a “desalienação” dos oprimidos. Dentro de um contexto histórico de larga supressão do direito à educação, altos índices de analfabetismo e precariedade da escola pública, faz sentido que essa posição possua lastro. Mas a educação, nesse processo, tem limites.

Tão importante quanto ela, para esse “despertar”, está o que poderíamos chamar de “ecossistema cultural” em que o indivíduo está inserido. Trata-se do conjunto de lugares e referências afetivas e subjetivas em que crescemos imersos e realizamos trocas simbólicas. Elas podem explicar a conscientização política de figuras analfabetas, ou de pouca escolarização, como os líderes da Liga Camponesa, os membros da Revolta da Chibata, ou mesmo para a formação do operário Luís Inácio, no ABC paulista. Ou seja, assim como o conteúdo compartilhado nesses lugares, são igualmente importantes a forma, os laços afetivos, as redes simbólicas de apoio e confiança que um indivíduo estabelece.

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A construção desse ecossistema varia em cada local histórico, em cada classe, ou em cada grupo atravessado por outros marcos de identidade. Ele pode ser formado pela família, pelo ambiente cultural da escola, mas também por uma diversa camada de emissores ideológicos que convivem com esse indivíduo, nas ruas ou nas redes digitais. A importância em se refletir sobre eles está em entender a forma de ocupá-los conscientemente, disputar esses locais, combater alguns, e mesmo criar outros. E principalmente: saber enxergá-los ideologicamente e não negligenciar sua importância político-cultural.

Quando falamos desses locais emissores, não falamos apenas de organizações ou centros culturais por assim dizer “educativos”, mas todo e qualquer lugar de encontro, como bares, igrejas, associações, clubes, grupos esportivos, etc. Conscientes de que a hegemonia capitalista opera na invisibilidade de sua dominação, a esquerda precisa entender que todos os encontros possíveis na vida da classe trabalhadora podem e devem ser operados ideologicamente. Mas de que tipo de encontros estamos falando?

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Costumamos entender que encontros ideológicos seriam aqueles formalmente educativos: como reuniões, formações, fruições de obras de arte, leituras, etc. Entretanto, qualquer tipo de encontro é passível de formação ideológica, e, portanto, passível de intervenção: encontro para beber, para comer, para praticar esportes, para rezar, para se deslocar, para se “distrair” ou se divertir. É na soma de todas essas emissões ideológicas, ocasionadas em cada encontro, que vão se formando, nas pessoas comuns, personalidades críticas, contestadoras ou passivas e conservadoras. Todos são basicamente encontros, de longo prazo, que propiciam convívio criador de redes afetivas e emocionais. De relações de confiança e credibilidade entre as pessoas. Base fundamental para a formação ideológica.

Quando a esquerda organizada desenha ações no âmbito cultural, ela centra forças na construção de ações, por assim dizer, “tradicionais” (mostras, festivais, etc). Contudo, enquanto energia e dinheiro são depositados num centro cultural de classe média, localizados em bairros ricos, com arquiteturas e símbolos que afastam os mais pobres, grandes camadas da população trabalhadora são formadas ideologicamente por frequentadores de butecos de esquina e por falsos pastores em igrejas com cadeiras de plástico.

É preciso, pois, avaliar em cada momento histórico, quais seriam os locais mais aptos para a formação cultural do povo, para além de preconceitos formais. Em outros tempos, esse lugar foi o sindicato, ou dentro de Pastorais Católicas. No capitalismo financeiro, “precarizante” do trabalho, esse convívio é pulverizado em diversos lugares culturais, espalhados pelo território.

Assim, podemos garantir que, atualmente, os encontros em bares das periferias e em cultos evangélicos de final de semana são fundamentais para a formação político-cultural da classe trabalhadora. Eles valem, hoje, muito mais que centros culturais ou sindicatos, para a construção ideológica. São dois aparelhos ideológicos de base e autossustentados, pois o crente paga o dízimo, e o alcóolico paga a cerveja que banca nos locais de pregação. Ambos constroem, a sua maneira, redes de apoio e vínculos subjetivos.

No entanto, em sua maioria, reproduzem conteúdos reacionários e fascistas, recebidos por whatsapp, por veículos evangélicos de comunicação ou pela TV ligada na Jovem Pan. São todos de estrutura simples e agem não de modo eventual, mas processual, criando vínculos e laços emocionais. Com o tempo, disseminam opiniões políticas e culturais que são enraizadas fortemente em seus participantes.

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A pergunta que fica é: por que a esquerda organizada até hoje permanece distante desses locais? É preciso ocupar bares, templos e qualquer espaço que construa vínculos e redes e que faça sentido dentro dos ideais esquerdistas. Embora haja alguns limites, nem todo lugar é passível de ressignificação, como são, hoje, os “Clubes de tiro”, espaços de forte ideologização fascista e que devem ser combatidos simplesmente.

Além disso, a atuação cultural progressista precisa analisar e investigar cada caso e entender que eles também terão ciclos históricos. Em um passado recente, a criação de Cursinhos pré-vestibulares era uma das iniciativas mais fortes dos movimentos organizados. Atualmente as Cozinhas Populares do MTST são exemplos exitosos de lugares inventados para criação de redes de apoio e afeto. Elas têm o potencial de virar verdadeiros centros culturais periféricos, abrigar encontros, esportes, festas: pulverizados no território, possuem estruturas simples e organicidade na comunidade. Assim como foram os núcleos de alfabetização, criados por Paulo Freire, ainda em Pernambuco.

É importante que a esquerda brasileira estude e conheça essas ações culturais. Na América Latina, há outros exemplos importantes, como os grupos criados pelo Movimento Al Socialismo (MAS) boliviano e os “Círculos bolivarianos” na Venezuela. É preciso observar como, através dessas iniciativas, conseguiram construir identidade, redes de apoio, relações subjetivas e, claro, formação ideológica, não obstante quais sejam suas posições políticas. É preciso ir além dos preconceitos (muitas vezes de classe) e entender as dinâmicas de formação e desenvolvimento desses encontros e lugares, de qualquer tipo, saber atuar neles, e mesmo criar outros, e assim, ampliar a esfera de atuação política e cultural da classe trabalhadora organizada. 

 

* Guilherme Leite Cunha é produtor e crítico cultural. Criador da revista de crítica de arte DAZIBAO, é mestre em Estética e história da arte pela Universidade de São Paulo, e pesquisa as relações entre cultura e política.

** Este é um texto de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rodrigo Chagas