As chamadas guerras culturais estão sendo travadas a todo vapor nos Estados Unidos. No olho do furacão, estão as crianças e os adolescentes, as escolas e aquilo que é ensinado em sala de aula.
O professor Joseph Kahne, da Universidade da Califórnia, conduziu uma vasta pesquisa sobre o assunto. Ele conversou com o Brasil de Fato sobre o tema. Segundo ele, “muitas pessoas reconhecem que as experiências que os jovens têm na escola os ajudam a moldar seus valores e crenças”.
“Se, por exemplo, escolas oferecem apenas livros que falam sobre como a democracia americana é maravilhosa, é diferente de se as escolas também mostram coisas que aconteceram no nosso passado e das quais, talvez, a gente não deveria se orgulhar”, afirma o professor, “se ninguém nunca ler um livro sobre afro-americanos ou sobre indígenas, ou todos os nossos livros de história que ignoram as contribuições dadas por mulheres… Isso molda como as pessoas veem a sociedade.”.
Na semana passada, durante o primeiro debate das prévias republicanas, mediado pela Fox News, o tema não ficou de fora. Republicanos e grupos de extrema direita são, hoje, os principais atores que travam verdadeiras cruzadas contra uma educação plural no país.
Flórida, um laboratório das guerras culturais nas escolas
Segundo colocado nas pesquisas pela nomeação republicana, Ron DeSantis falou de doutrinação: “O declínio da educação é um dos motivos principais de porquê o nosso país está em declínio. Nós precisamos de educação neste país, não doutrinação”.
Como governador da Flórida, DeSantis aprovou uma série de leis que afetam a sala de aula e a autonomia de professores do estado. As chamadas guerras culturais estiveram no centro da sua campanha de reeleição, e deram a ele uma vitória esmagadora em um estado, até então, considerado dividido.
A lei conhecida como “Don’t Say Gay”, Não Diga Gay, em inglês, e que foi sancionada no ano passado, proibiu abordagem de temas relacionados à sexualidade e gênero até a terceira série nas escolas do estado.
Em maio deste ano, uma professora foi investigada por passar em sala de aula um filme da Disney que contava com um personagem gay. O caso aumentou o medo entre os educadores, mesmo que a professora tenha saído vitoriosa na disputa.
“Estamos vendo o que chamamos de ‘efeito inibidor’”, explica Kahne, “professores, de muitas formas, estão se autocensurando por conta das ameaças que existem. Algumas são políticas que os estados aprovaram, outras são medos sobre coisas que pais estão postando no Facebook criticando professores ou aparecendo em sala de aula para criticá-los. Mas o resultado é que os estudantes perdem. Estudantes têm menos chances de aprender sobre temas controversos”.
Mais recentemente, o governo da Flórida aprovou um novo currículo de história negra. Dentre os pontos, estudantes aprenderão que brancos e negros se beneficiaram da escravidão. Ron DeSantis se orgulha das medidas.
“Na Flórida, nós eliminamos a teoria crítica de raça nas nossas escolas até o ensino médio”, disse o governador no debate, “nós eliminamos a ideologia de gênero nas nossas escolas até o ensino médio. E nós elevamos a importância da educação cívica americana, ensinando nossos estudantes sobre a Constituição e a declaração de direitos”.
Nos últimos meses, manifestações em reuniões escolares se transformaram em algo normal nos EUA. Na maioria dos casos, pais ultra conservadores se organizam para exigir censura de determinados assuntos na escola.
Em maio, uma mãe da Flórida pediu que um livro de poesia de Amanda Gorman fosse retirado da biblioteca da escola do filho. O livro conta com a poesia “The Hill We Climb” (A Colina Que Subimos, em tradução livre), recitada pela autora na posse de Joe Biden.
Mais tarde, veio à tona que a mãe em questão tinha ligações com o grupo extremista Proud Boys, que participou da invasão do Capitólio em 2020. De acordo com a pesquisa de Joseph Kahne, esse tipo de conflito é mais comum em distritos onde há uma maior paridade entre democratas e republicanos.
Maiores conflitos em distritos pêndulo
A pesquisa conduzida pelo professor conversou com mais de 600 diretores de escolas país afora, em todas as regiões e considerando cidades pequenas e grandes. Uma das perguntas feitas aos diretores era se eles estariam presenciando este tipo de conflito com membros da comunidade e pais de alunos.
“O que descobrimos foi que, por exemplo, que os conflitos eram mais intensos no que chamamos de distritos roxos, que são distritos que têm um número relativamente semelhante de republicanos e democratas”, comenta Kahne. “De muitas formas, isso não é surpreendente, certo? Você tem conflitos porque tem gente em ambos os lados da questão lutando pelo que eles querem”.
Educação como grande inimiga
As tais guerras culturais vêm se mostrando uma arma importante para que políticos republicanos possam mobilizar bases ultraconservadoras. Situação semelhante aconteceu no Brasil há poucos anos atrás durante o auge da campanha “Escola Sem Partido”.
No debate republicano da semana passada, nem mesmo os sindicatos dos professores ou o próprio Departamento de Educação - semelhante a um Ministério da Educação - foram poupados pelos candidatos do partido.
Tim Scott, da Carolina do Sul, o único senador negro do Partido Republicano, disse: “Na educação, a única forma de mudarmos a educação neste país é derrotando os sindicatos dos professores”. Ele foi ovacionado logo em seguida.
O empresário Vivek Ramaswamy, terceiro colocado nas pesquisas, foi além: “Vamos fechar a cabeça da serpente, o Departamento de Educação. Pegar esses U$$80 bilhões e colocar nas mãos de pais país afora. Essa é a questão dos direitos civis do nosso tempo”. Ele defende um esquema de vouchers para a educação, proposta semelhante a aventada por alguns nomes da direita brasileira.
Para muitos, essa retórica é tida como perigosa. O professor Kahne concorda, e teme pela própria democracia do país.
“Nos Estados Unidos, e eu sei que isso é verdade também em outros países, nós estamos vendo uma erosão do comprometimento com que pensamos como valores democráticos e normas. O que me preocupa com algumas das descobertas que estamos encontrando é que essas pressões talvez estejam levando a um efeito inibidor, o que significa que escolas estão colocando menos ênfase na sua missão democrática, porque estão com medo de enfurecer membros do público. Se escolas se sentem amedrontadas e escolhem não fazer isso, então estudantes não terão a preparação que os levaria a abraçar valores democráticos. Então, sim, isso me preocupa bastante”, conclui Joseph Kahne.
Edição: Thales Schmidt