Assista ao vídeo

Especulações sobre morte de Prigozhin têm 'conveniência política' para o Kremlin

As causas da queda do avião do chefe do Grupo Wagner permanecem nebulosas

Rio de Janeiro |
Uma bandeira com o logotipo do grupo mercenário privado Wagner tremula acima de um retrato do falecido chefe do grupo, Yevgeny Prigozhin, em um memorial em Moscou, em 27 de agosto de 2023. - Natalia Kolesnikova / AFP

A morte do chefe do grupo Wagner, Yevgueny Prigozhin, continua causando muita especulação. Ainda são desconhecidas as causas da queda do avião da Embraer que resultou na morte de 10 pessoas em 23 de agosto, mas para além da investigação factual, o incidente movimenta o jogo político na Rússia. Em meio a uma arrastada guerra na Ucrânia, sem resolução à vista, e com um olhar para as eleições presidenciais russas, marcadas para março de 2024, a morte do homem que desafiou o Kremlin em uma surpreendente rebelião não deixará de ser instrumentalizada pelo governo de Vladimir Putin.

Enquanto o mundo inteiro enxergava o incidente como uma retaliação pelo motim incitado por Prigozhin em junho de 2023, o Kremlin inicialmente não fez esforços imediatos para refutar tais rumores. Quase 24h depois, o presidente russo, Vladimir Putin, rompeu o silêncio e fez um pronunciamento sobre o caso. A declaração foi encarada como uma forma de afastar especulações, mas deixou ambiguidades no ar.

:: Putin quebra silêncio sobre morte de Prigozhin e diz que grupo Wagner contribuiu para 'causa comum' contra a Ucrânia ::

“Conhecia Prigozhin há muito tempo, desde o início dos anos 1990. Ele era um homem de destino complicado e cometeu erros graves na vida, mas alcançou resultados desejados, tanto para si mesmo quanto, quando eu pedi a ele, pela causa comum, como nestes últimos meses”, disse Putin durante uma reunião gravada por vídeo pelo serviço de imprensa do Kremlin.

“Se houve funcionários da empresa Wagner (a bordo do avião que caiu) - e os dados iniciais parecem indicar que sim – gostaria de salientar que são pessoas que deram uma contribuição significativa para a nossa causa comum na luta contra o regime neonazista na Ucrânia. Nós nos lembramos disso, estamos cientes disso e não esqueceremos”, acrescentou.

Em entrevista ao Brasil de Fato, o cientista político e pesquisador convidado do Conselho Europeu para Relações Internacionais, Mikhail Komin, afirmou que a forma como Putin se pronunciou “parece significar que Vladimir Putin tentou, publicamente, se dissociar de que ele poderia ter dado a ordem para liquidar Yevgueny Prigozhin, para mostrar que ele não tem nada a ver com isso”. No entanto, a analista aponta que dificilmente ele conseguiu passar essa impressão.

“Porque tanto na elite russa como na sociedade russa, a versão mais ou menos consensual é de que no fim das contas isso foi algum tipo de vingança de Vladimir Putin, pessoalmente ou por meio de sua sanção, contra Yevgeny Prigozhin, que teve a coragem de desafiá-lo e lhe impôs certa humilhação, e não foi pouco mas significativamente, há dois meses, quando houve a rebelião”, argumenta.

O tom moderado de Vladimir Putin em relação ao chefe do grupo de mercenários sempre foi uma constante. Quando Prigozhin começou a fazer graves declarações de ataque ao Ministério da Defesa, em particular o ministro Serguei Shoigu e o comandante das Forças Armadas Valery Gerasimov, Putin optava pelo silêncio e não interferia publicamente. Mesmo quando Putin falou em “traição” e “punhalada nas costas” durante o anúncio da “marcha para Moscou” em meio à rebelião incitada por Prigozhin, o presidente russo não mencionou o nome do líder do Wagner.

A cautela é compreensível diante da importância estratégica que Prigozhin assumiu na linha de frente da guerra da Ucrânia. Com mais de 25 mil homens sob seu comando na guerra e com uma forte popularidade entre a ala ultranacionalista e mais radicalizada pró-guerra na Rússia, havia um custo bater de frente com Prigozhin.

Da mesma forma, o fim da rebelião do Wagner em 23 e 24 de junho foi celebrada pelo Kremlin como uma forma de resolver a crise sem derramamento de sangue e através da negociação. No entanto, o custo político foi inevitável: interna e externamente, a afronta de Prigozhin foi vista como demonstração de fraqueza de Putin.


Tanque do grupo paramilitar Wagner toma cidade de Rostov, na Rússia, em 24 de junho de 2023. / AFP

Posteriormente, o destino do grupo Wagner e seu chefe foi marcado pela incerteza: haveria perdão, ostracismo, acordo ou punição? Aos olhos do mundo inteiro a morte de Prigozhin foi uma espécie de resposta para o enigma que marcou a relação entre o chefe dos mercenários e o presidente Putin. Uma das declarações oficiais mais contundentes nesse sentido veio da ministra das Relações Exteriores da Alemanha, Annalena Baerbock:

“Conhecemos este padrão na Rússia, na Rússia de Putin. Mortes e suicídios duvidosos, quedas de janelas que acabam por ficar sem solução. Isto sublinha um sistema ditatorial de poder construído sobre a violência. Isso resulta apenas em violência, interna e externamente”, declarou a minstra durante uma coletiva de imprensa

Considerando a intrincada trajetória da relação entre o chefe do grupo Wagner e o governo central da Rússia, não é preciso entrar em teorias especulativas para diagnosticar um fato: a morte de Prigozhin traz uma conveniência política para o Kremlin.

Versões sobre as causas do acidente

Após as acusações e especulações sobre o suposto envolvimento do Kremlin na queda do avião de Prigozhin, o porta-voz do presidente russo, Dmitry Peskov, se pronunciou rechaçando qualquer ligação do governo com as causas da tragédia. Ele classificou as especulações do Ocidente como "uma mentira absoluta".

Ao mesmo tempo, o Kremlin não nega a possibilidade da queda do avião ter sido causada por uma “ação deliberada”. “Obviamente, existem diferentes versões, inclusive uma atrocidade deliberada, digamos assim", acrescentou Peskov.

O comentário veio após a informação divulgada na última quarta-feira (30) de que a Rússia recusou a ajuda do Brasil nas investigações. A Embraer, fabricante do jato de Prigozhin, manifestou disposição de ajudar na análise. O Kremlin, por sua vez, declarou que trata-se de uma “investigação russa” e que não vai realizar a apuração de acordo com as regras internacionais.


Um policial trabalha no local do acidente de avião na região de Tver, em 24 de agosto de 2023. que resultou na morte do chefe do grupo Wagner, Yevgueny Prigozhin / Olga Maltseva / AFP

Uma das versões em voga para a morte de Prigozhin é de que o avião caiu após uma explosão a bordo, causada por um explosivo implantado na aeronave. Na mídia russa, foi divulgado um vídeo que mostra duas pessoas aleatórias averiguando o avião horas antes da decolagem. O motivo seria uma análise para uma possível compra do jato da Embraer. Para o analista Mikhail Komin, esta versão é conveniente para a propaganda russa e para a administração presidencial.

“Esta é, digamos, a versão que, muito provavelmente, a investigação vai se debruçar, no sentido de que a investigação insistirá que esta é a versão correta da interpretação dos acontecimentos, que alguém trouxe este dispositivo explosivo e explodiu o avião”, afirma.

Paralelamente, Komin observa que há uma versão discutida por vários meios de comunicação independentes que citam indícios de vídeos visíveis logo após a queda do avião, feitos por testemunhas oculares e publicados na internet, de que a aeronave poderia ter sido derrubada pela defesa aérea russa. Ele afirma que a defesa aérea e a defesa antiaérea funcionavam nas proximidades. Além disso, testemunhas oculares relataram ter ouvido dois ou três estrondos, que poderiam significar o disparo de mísseis na proximidade.

Recado para a elite russa?

Para o cientista político Mikhail Komin, é conveniente para o Kremlin deixar um recado interno. Ele destaca que nem Vladimir Putin, nem a administração presidencial, tentaram dissipar seriamente o boato da ligação entre o Kremlin a queda do avião.

“É claro que isso tem utilidade. É claro que eles consideram que se houver a possibilidade de demonstrar essa recuperação de uma certa ordem, de força contra a humilhação que Yevgueny Prigozhin impôs a Vladimir Putin há dois meses durante o motim, isso permitirá manter o regime mais estável, mostrando que todos que tiverem alguma insatisfação ou desafiarem o regime com armas nas mãos, podem esperar uma morte assim tão penosa”, analisa.

Nesse contexto, a expectativa é de que a estrutura do grupo Wagner perca força no cenário político interno da Rússia e o presidente russo reforce o seu controle sobre o poder no país. As mais recentes pesquisas de opinião pública na Rússia mostram que 82% dos russos aprovam as ações de Vladimir Putin como presidente, percepção que não sofreu muita alteração após a rebelião do Wagner em junho.

De acordo com a especialista em Segurança e Conflitos e pesquisadora sênior do Instituto Russo do King's College London, Anna Matveeva, o grupo Wagner “como força política, ou algo que poderia servir de gênese para uma força política, muito provavelmente já não existe”.

“O Wagner regressou em grande parte ao ponto onde estava antes de Prigozhin chegar ao poder", analisa Matveeva em entrevista publicada pela edição russa do Euronews.

De acordo com ela, “a necessidade de Wagner não é tão grande, já que o Ministério da Defesa russo basicamente detém a frente”. “Mas se houvesse algum avanço repentino e em grande escala na Ucrânia, então Wagner poderia ser necessário”, completa.

O cientista político Mikhail Komin, por sua vez, argumenta que todo o processo que o grupo Wagner atravessou nos últimos meses, desde o seu protagonismo na guerra até o motim e a recente morte de Prigozhin, deixa rastros de instabilidade para a sustentação do poder no Kremlin.

:: Rússia e a rebelião do Wagner: Putin ainda tem as 'elites' políticas sob controle? ::

De acordo com ele, agora os representantes da elite russa entendem que qualquer coisa pode acontecer com eles. É preciso destacar que aqui que não se trata de um entendimento clássico de elite, considerando que, na Rússia, essa compreensão não está muito relacionada ao poder econômico. Na concepção política da Rússia, elites são compostas por pessoas que participam da formulação de decisões políticas, cercam o presidente e, de uma forma ou de outra, formulam a sua imagem do mundo, tomam parte na elaboração e na tomada de decisões.

“O grau de indeterminação, no qual eles de certa forma já se encontravam após o início da guerra, agora cresceu ainda mais. E esse grau de indeterminação, é claro que, em uma perspectiva de longo prazo, mina os alicerces do regime, porque se a elite entende que o presidente pode fazer o que bem entende, isso não pode levar a nada de bom”, completa.

Edição: Thales Schmidt