A ameaça imposta por desastres lança sombras sobre os três pilares fundamentais do desenvolvimento sustentável: social, ambiental e econômico. Essa constatação se estende por diversas regiões geográficas, setores de atuação, dimensões e escalas. A gama de exemplos é rica, abrangendo desde prolongados períodos de secas e inundações, com potencial de afetar vastas extensões territoriais e regiões, até a emergência global da pandemia de covid-19. Essa última evidenciou a habilidade de sobrecarga das intricadas redes de abastecimento em escala mundial, incluindo aquelas responsáveis pelo suprimento alimentar.
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Ao nos aproximarmos do prazo de menos de uma década para alcançar tanto o Quadro de Sendai para a Redução do Risco de Desastres 2015-2030 (RRD) quanto aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), economia, ciência, direito, saúde, meios de comunicação, política, educação, entre outros domínios, devem estar adequadamente preparados para confrontar não apenas diferentes tipos de riscos, mas mais perdas e danos. Neste contexto, é essencial desenvolver resiliência e adaptabilidade diante de circunstâncias calamitosas, incluindo segurança e suficiência na produção e no suprimento de alimentos.
No contexto brasileiro, uma diversidade de desastres tem se manifestado, demonstrando a suscetibilidade do país a diferentes eventos. Seca e estiagem ocupam a posição de liderança no rol de desastres, representando quase 50% dos eventos registrados (Diagnóstico de capacidades e necessidades municipais em proteção e defesa civil - 2021). Logo em seguida, observam-se as tempestades, enxurradas e inundações, eventos que ocorrem de forma recorrente em distintas regiões do país, impactando diretamente a produção e a disponibilidade de alimentos destinados ao consumo humano e animal.
Frente a essa realidade, em alguns casos com magnitudes sem precedentes, torna-se imperativo repensar e reformular os sistemas atuais de gerenciamento de riscos e desastres. Essa reformulação deve contemplar a construção de estruturas robustas, capazes de antecipar e lidar com riscos sistêmicos. Além disso é necessário desenvolver uma capacidade aprimorada de provisionamento, resposta e recuperação. Para alcançar esses objetivos, é essencial a elaboração de planos diversificados e modalidade adaptáveis, que levem em consideração variabilidade e mudança do clima, necessidades específicas de grupos de vítimas, e possam ser implementados em planejamentos de curto, médio e longo prazos, e de forma eficaz, independentemente do tipo de desastre que possa ocorrer.
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Embora não seja um fenômeno recente, a insegurança alimentar adquire uma nova dimensão no atual contexto histórico. Associada à “crise do custo de vida”, a mesma foi classificada como o principal “risco global em termos de gravidade no curto prazo (dois anos)”, conforme o último relatório The Global Risks Report (2022-2023). Este documento também destaca a necessidade de uma atenção especial para esta questão porque está diretamente ligada aos quatro primeiros riscos globais de maior gravidade para a próxima década, quais sejam: falha na mitigação e adaptação às mudanças climáticas; desastres e condições climáticas extremas, perda de biodiversidade e colapso dos ecossistemas. Portanto, a insegurança alimentar além de ser um problema em si, também é um indicador de riscos globais mais amplos e complexos – que exige e reforça a necessidade de abordagens integradas e estratégicas.
A fome afeta quase 10% da população global
O relatório do Estado da Segurança Alimentar e Nutricional da ONU (2022), revela uma tendência preocupante: o progresso global na erradicação da fome e da desnutrição está regredindo. Após uma década de declínio constante, a prevalência da fome no mundo está em ascensão, afetando quase 10% da população global. No período de 2019 a 2022, houve um aumento alarmante de pessoas subnutridas, com um acréscimo de até 150 milhões de indivíduos. Esta crise foi impulsionada principalmente por conflitos socioculturais, mudanças climáticas e a pandemia de covid-19. Esses dados ressaltam a urgência de ações coordenadas e eficazes para combater a insegurança alimentar e nutricional, medida que se torna ainda mais desafiadora diante do atual cenário de conflito internacional (guerra) e desastres.
O Brasil, por sua vez, transita entre polos de um paradoxo preocupante. Apesar de sua reconhecida soberania na produção de alimentos, retornou à lista de países mapeados no índice de fome. De acordo com o Segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 (2022) estima-se que 33,1 milhões de brasileiros não têm garantia de acesso a alimentos suficientes. Isso representa um aumento de 14 milhões de pessoas em situação de fome em comparação com dados de duas décadas anteriores. Além disso, o estudo revela que mais da metade da população brasileira (58,7%) enfrenta algum grau de insegurança alimentar, seja ela leve, moderada ou grave.
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Essa realidade comunica a urgência de políticas públicas eficazes e estratégias intersetoriais de intervenção para combater a insegurança alimentar, inclusive em contextos extremos. A atuação de políticas públicas eficazes e integradas, com reforço orçamentário e vontade política de trabalhar com o setor privado e a sociedade civil, em todos os níveis de governo, é um dos caminhos democráticos para fazê-lo.
No âmbito das políticas públicas, destaca-se a relevância da sinergia entre as políticas de assistência social e proteção e defesa civil. Como bem evidencia o II Plano Decenal da Assistência Social (2016-2026), situações de seca, como as historicamente vivenciadas pela população do semiárido nordestino, conduzem à estagnação econômica, crise hídrica e pobreza extrema ainda mais severa, requerendo, portanto, atenção e provisões prioritárias e focalizadas. Embora tradicionalmente estudadas de forma isolada, ambas as políticas compartilham um foco em comum na proteção social. Elas fornecem subsídios valiosos não apenas para o desenvolvimento de uma política nacional de segurança alimentar e nutricional, mas também oferecem espaço em suas regulamentações para incorporar a segurança alimentar em suas estruturas. Esse movimento pode ser alcançado de diversas maneiras, mas principalmente, por meio da definição de papeis, estruturas e responsáveis frente a um potencial desastre ou mesmo no caso de sua ocorrência.
A obrigação de promoção da realização do Direito Humano à Alimentação Adequada está prevista em diversos tratados e documentos internacionais e em vários instrumentos legais vigentes no Estado brasileiro, tendo sido também incorporada em dispositivos e princípios da Constituição Federal de 1988, mais especificamente, no artigo 6º da Constituição Federal, junto aos demais direitos sociais.
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Apesar de a Constituição representar um marco, a história de evolução normativa da segurança alimentar no Brasil remonta pelo menos desde a Presidência da Organização de Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO) pelo pernambucano Josué de Castro, ainda em 1951, anunciando as condições e números da fome suficientes para o lançamento de uma campanha mundial para o seu enfrentamento.
Nesta esteira, oportuno lembrar de um foco de mobilização da sociedade civil, liderado pelo Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional), que representou um importante avanço para a exigibilidade deste direito. Extinto em 2019 e retomado em fevereiro deste ano pelo Decreto 11.422/2023, o Conselho neste seu aniversário de 30 anos, reafirma uma esperança participativa após quatro anos órfãos de um Plano de Segurança Alimentar e Nutricional tão importante para a vida de milhões de concidadãos.
Constituição garante o direito à alimentação humana adequada
Além de ter contado com diversos e importantes atores e instrumentos, como o primeiro Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (2012 a 2015), também representou um passo fundamental para a concretização do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan) que instituiu a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, com a publicação da Lei nº 11.346/2006 e seu Decreto regulamentador de nº 7.272. Neste sentido, temos na Constituição de 1988, instrumento suficiente para afirmar a assunção de uma obrigação do Estado brasileiro em relação ao direito à alimentação humana adequada, cuja não efetividade é, por si, um desastre!
Atualmente, o desafio é maior porque diversos outros fatores influenciam ou comprometem a eficácia do mencionado direito. Conflitos, secas persistentes, inundações, mudanças climáticas, crises econômicas, aumento nos preços decorrentes de guerras e pandemias contribuem para a dificuldade de acesso aos alimentos, além de interesses políticos e econômicos discricionários. Esta é a razão pela qual retomamos e abordamos com o presente viés a temática neste momento da história.
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Por se tratar de um problema social que impacta a todos, ainda que em maior ou menor grau, é fundamental que a (in)segurança alimentar, inclusive aquela que emerge no contexto de riscos e desastres, seja debatida e abordada de forma participativa e democrática. A busca por soluções neste contexto não pode esperar e deve estar embasada: i) pelas bases do Estado Democrático de Direito, tendo em vista o atendimento de seus objetivos; ii) bem como pela oportunidade do debate e contribuição de instâncias representativas e orientadas pela ciência como universidades, centros de pesquisa, organizações da sociedade civil, voltados ao aprimoramento e composição dos instrumentos em andamento no país, como o delineamento do novo Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil, Revisão do Plano Nacional de Mudanças Climáticas, novos rumos do Consea, entre outros, receptivos à questão.
Nesse sentido, consultas públicas abertas configuram-se em estratégia urgente e legítima para o exercício da cidadania e expressão daquilo que apontamos como uma das maiores questões sociais, senão a prioritária, pois a (in) segurança alimentar compromete os rumos do desenvolvimento sustentável, o que agrava a crise de dignidade e segurança que há décadas está exposta, sobretudo a parcela mais vulnerável da população brasileira.
Se os argumentos apresentados ainda não forem suficientes, fica a pergunta: estamos preparados em termos normativos, de governança e estruturais para o enfrentamento de um contexto de insegurança alimentar decorrente de desastre? Se a resposta for negativa, no que apostamos, então há muito o que fazer. E a hora é agora.
* Advogada, consultora especialista em Direito Ambiental e Direito dos Desastres, com pós-doutorado em Direito Socioambiental e Sustentabilidade, membro do Grupo de Estudos de Redução de Riscos de Desastres Sociais da Unifesp.
** Assistente Social, com pós-doutorado em Políticas Públicas, docente da Universidade Federal de São Paulo. Bolsista Produtividade PQ2 – CNPq., membro do Grupo de Estudos de Redução de Riscos de Desastres Sociais da Unifesp
*** Socióloga, consultora pó-doutora em Serviço Social, membro do Grupo de Estudos de Redução de Riscos de Desastres Sociais da Unifesp.
**** Este é um artigo de opinião. A visão das autoras não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Katia Marko