A saga do jornalista mais perseguido do mundo bem pode ser comparada às aventuras de Ulisses em exílio forçado. Entre guerras, fúrias e traições, o herói grego levou 17 anos para conseguir voltar à terra natal e reencontrar Penélope e o filho Telêmaco.
Também Assange vive um exílio forçado e tem uma heroína que o espera. Sua própria advogada Stella Morris e os pequenos Gabriel (6 anos) e Max (4 anos) o aguardam compassivamente do lado de fora da prisão de Belmarsh, considerada a Guantánamo britânica.
Essa é a mensagem central do comovente documentário Ithaka - A Luta de Julian Assange, protagonizado por John Shipton, pai do fundador do Wikileaks. Shipton está em turnê mundial e percorre diversas cidades brasileiras promovendo debates e concedendo entrevistas na esperança de sensibilizar o público e evitar a iminente extradição do filho para os Estados Unidos.
A iniciativa é parte da campanha Free Assange, movida por ativistas, juristas e intelectuais de vários países unidos para evitar o pior. De fato, a extradição pode significar perigo de vida, já que Assange está no limite da tortura psicológica. Por outro lado, a medida extrema fixaria um perigoso precedente para todos aqueles que prezam os direitos humanos, a liberdade de imprensa e a soberania nacional diante dos abusos da extraterritorialidade.
Pudemos estar presentes na pré-estreia de Ithaka no Rio de Janeiro e testemunhar o drama do pai e de uma família que se reveza na rotina de visitas controladas e agendas de denúncia. O roteiro relembra a longa campanha de perseguição contra Assange, que teve início quase uma década antes da prisão em Londres e, tanto quanto as sucessivas provações de Ulisses, não é simples organizar os principais fatos jurídicos e políticos que se entrelaçam e chegam no impasse de hoje. Faremos uma tentativa.
As acusações criminais remontam a um conjunto de publicações datadas de 2010, quando o sítio eletrônico Wikileaks, fundado pelo próprio Assange em 2006, começou a divulgar documentos sigilosos vazados por Chelsea Manning, então soldado e analista de inteligência a serviço do exército dos EUA. Os vazamentos de Manning, publicados pelo Wikileaks em parceria com veículos da imprensa tradicional como o New York Times e o El País, revelaram atrocidades cometidas pelos Estados Unidos e seus aliados durante a assim chamada Guerra ao Terror.
Emblemático dessas escandalosas revelações é o infame vídeo Collateral Murder, que mostra os tripulantes de um helicóptero do exército estadunidense atirando contra não-combatentes em Bagdá em julho de 2007, durante a invasão ilegal do Iraque. Além das dezoito vítimas fatais, que incluíam dois jornalistas da agência Reuters, duas crianças ficaram feridas. É por essas publicações, de inegável interesse público, que Assange enfrenta hoje 18 acusações criminais nos EUA, com uma pena máxima de 175 anos de prisão.
A princípio, porém, a retaliação dos Estados Unidos não foi direta. Na verdade, a primeira acusação do Departamento de Justiça dos EUA contra o editor data de 2018, e só veio a público após sua detenção na Inglaterra em 2019.
Em vez de processá-lo imediatamente pelos supostos delitos relativos à divulgação de material sigiloso, o governo dos Estados Unidos preferiu valer-se de uma estratégia de uma espécie de lawfare, ou seja, de perseguição judiciária somada à destruição da reputação do jornalista. Para isso, a potência contou, em mais de um momento, com a colaboração de seus aliados.
O marco inicial dessa campanha de perseguição data de agosto de 2010, poucos meses após a publicação do Collateral Murder, com a abertura na Suécia de uma investigação contra Assange por delitos sexuais.
A investigação sueca foi, desde o início, repleta de vícios e violações ao devido processo legal, dentre as quais destacam-se a edição dos depoimentos das supostas vítimas sem o consentimento delas e a divulgação, a despeito da garantia legal de sigilo dos procedimentos, dos detalhes da investigação, incluindo os nomes de Assange e das supostas ofendidas.
Mesmo assim, Assange nunca se recusou a colaborar com a investigação. Embora tenha deixado a Suécia algumas semanas após a tomada de seu depoimento, também vazado ilegalmente para a imprensa de tabloide, o editor do Wikileaks o fez com autorização da justiça sueca.
Quando as autoridades da Suécia exigiram seu retorno ao país, ele mostrou-se disposto a fazê-lo, desde que lhe fosse prestada a garantia de não extradição aos EUA. Diante da recusa sueca a prestar-lhe tal garantia, Assange colocou-se ainda à disposição para ser interrogado em Londres, onde encontrava-se na época, ou remotamente, por vídeo.
Ainda assim, o governo sueco rejeitou todas as ofertas de cooperação por parte da defesa de Assange, e solicitou sua extradição às autoridades britânicas. Após cerca de dois anos de procedimentos legais, que culminaram em um veredito favorável à Suécia na Suprema Corte do Reino Unido, e diante do risco de extradição sucessiva da Suécia para os Estados Unidos, Assange não teve escolha senão buscar a proteção de um Estado soberano simpático à sua causa. Foi então, em junho de 2012, que Julian Assange refugiou-se na embaixada do Equador em Londres, onde ele viveu pelos sete anos seguintes.
O asilo diplomático concedido a Assange, além de plenamente amparado no direito internacional convencional e consuetudinário (no âmbito da OEA, por exemplo, tal instituto encontra previsão na Convenção de Caracas, de 1954), deve ser compreendido no contexto da Revolução Cidadã promovida no Equador a partir de 2007 pelo governo de Rafael Correa.
Naquela conjuntura, em adição às expressas previsões do instituto do asilo diplomático e da assistência humanitária e jurídica de emergência na então jovem Constituição de Montecristi, a escolha equatoriana a favor de abrigar o alvo de uma injusta perseguição política pela potência do Norte em sua embaixada inviolável foi um exercício de soberania coerente com a política externa anti-hegemônica e pró-direitos humanos que caracterizou o governo Correa.
Apesar do acolhimento inicialmente irrestrito por parte de seu país de asilo, no entanto, o confinamento ao prédio da embaixada custou caro à saúde mental do jornalista, que hoje exibe, segundo uma avaliação do Relator Especial das Nações Unidas sobre a Tortura e Outros Tratamentos e Penas Cruéis ou Desumanos, sintomas típicos de vítimas de tortura psicológica.
Em 2015, uma Opinião do Grupo de Trabalho sobre Detenções Arbitrárias do Conselho de Direitos Humanos da ONU concluiu ser injusta a privação da liberdade de Assange, e solicitou aos países implicados a tomada das medidas cabíveis para pôr fim a seu confinamento aos 30 metros quadrados dos aposentos da embaixada.
Em 2017, em resposta às exigências do Grupo de Trabalho, as autoridades suecas finalmente concordaram com a realização do interrogatório de Assange na embaixada, e a investigação preliminar foi arquivada poucos meses após esse depoimento. Mesmo assim, o jornalista não estava livre.
As autoridades do Reino Unido continuavam a aguardar sua saída da embaixada para detê-lo pelo descumprimento dos termos de sua prisão domiciliar e entregá-lo aos EUA, onde, àquela altura, já era notório o curso secreto de uma investigação do editor do Wikileaks por supostos crimes de espionagem.
Essa situação já precária agravou-se ainda mais em 2017, com a sucessão de Rafael Correa por Lenín Moreno ao governo do Equador. Embora eleito com o apoio de Correa, Moreno rapidamente abandonou a política externa de emancipação e solidariedade latino-americana defendida por seu predecessor, demonstrando-se pronto a ceder às pressões dos Estados Unidos em troca de favores perante o Fundo Monetário Internacional.
De fato, a partir de sua ascensão ao poder, o governo Moreno tratou de tomar medidas para desvencilhar-se da melhor maneira possível de alguém que tornara-se, diante dos esforços de aproximação com a potência do Norte, um hóspede indesejado.
Após algumas tentativas frustradas de retirá-lo em segurança da embaixada (que incluíram a conversão de seu asilo diplomático em cidadania equatoriana), o governo Moreno tornou-se mais hostil em relação a seu outrora protegido, impondo condições cada vez mais restritivas ao asilo concedido. Em 2018, a embaixada do Equador no Reino Unido editou um protocolo de convivência destinado a regulamentar a continuação da permanência de Assange em suas instalações.
Foram supostas violações desse protocolo, que impediu o jornalista de acessar a internet, restringiu suas comunicações e limitou as visitas de seus advogados, amigos e membros da família, que serviram de fundamento para a revogação do asilo diplomático e a autorização da entrada de autoridades britânicas na embaixada para prender Assange em 11 de abril de 2019. Assim, após quase sete anos de asilo na embaixada do Equador, Assange foi preso na Inglaterra.
O fundamento da prisão, além da acusação de descumprimento dos termos de sua prisão domiciliar, foi um pedido de extradição por parte dos Estados Unidos. Esse pedido, contudo, só foi formalmente apresentado dois meses depois, baseado em acusações que vieram a público apenas após o fim do asilo diplomático.
A defesa de Assange sustenta que a pena excepcionalmente alta que lhe foi aplicada pela violação dos termos da prisão domiciliar (ele foi condenado a 50 semanas de prisão, por um delito normalmente punido apenas com multa) foi um pretexto para mantê-lo no país por tempo o suficiente para que os EUA preparassem suas acusações e seu pedido formal de extradição do jornalista.
O conteúdo das acusações que tramitam contra Assange nos Estados Unidos, inclusive, é inédito e alarmante. Além do crime de “conspiração para cometer invasão de computadores” (com pena máxima de 5 anos), em concurso com Chelsea Manning, o editor do Wikileaks é acusado de 17 delitos da Lei de Espionagem de 1917, com pena máxima acumulada de 170 anos.
Além da desproporcionalidade da pena de 175 anos, cinco vezes maior do que a aplicada à própria fonte do vazamento (Manning foi condenada a apenas 35 anos de prisão), é importante notar que nunca antes um jornalista foi acusado de crimes de espionagem pela publicação de documentos de interesse público, ainda que sigilosos. As acusações contra Assange representam, então, uma violação sem precedentes da liberdade de imprensa, protegida nos EUA pela Primeira Emenda à sua Constituição.
Esse é, aliás, o argumento defendido em uma carta aberta que insta o chefe do Departamento de Justiça dos EUA a retirar as acusações contra o jornalista, publicada em novembro de 2022 e assinada pelos veículos The New York Times, The Guardian, Der Spiegel, Le Monde e El País.
Enquanto isso, no Reino Unido, o processo de extradição que estendeu-se por mais de quatro anos aproxima-se do fim. Em janeiro de 2021, uma juíza de primeiro grau proferiu decisão contrária à extradição. A decisão da juíza Vanessa Baraitser, apesar de rejeitar a tese de perseguição política e ameaça ao direito a um julgamento justo, reconheceu o alto risco à vida e ao bem-estar de Assange no caso de sua extradição para os Estados Unidos.
Por recurso da acusação, a questão foi levada ao Tribunal Superior do Reino Unido, que reformou o julgamento da primeira instância de modo a autorizar a extradição mediante a prestação de garantias diplomáticas de não violação dos direitos humanos e de proteção da vida de Assange por parte das autoridades dos EUA.
Após o indeferimento dos recursos da defesa pela Suprema Corte do Reino Unido, a decisão do Tribunal Superior foi enviada para ratificação da Secretaria de Estado para Assuntos Internos, que autorizou a extradição. A defesa interpôs novos recursos, tanto contra a decisão da Secretaria quanto contra a decisão de primeira instância que rejeitou sua tese principal. Todos esses recursos foram julgados improcedentes em decisão monocrática do juiz Jonathan Swift, do Tribunal Superior, restando hoje apenas um recurso possível, ao órgão colegiado do mesmo Tribunal, contra a extradição.
Estando quase esgotados os recursos internos contra a extradição perante o judiciário do Reino Unido, resta ainda o recurso à instância supranacional do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, perante o qual a defesa de Assange solicitou em dezembro de 2022 a abertura de um processo em nome do editor contra o governo do Reino Unido.
Embora os detalhes desse processo não sejam, por enquanto, públicos, sabe-se que seu principal fundamento é a alegação de ameaça de violação dos direitos à não tortura, a um julgamento justo e à liberdade de imprensa (todos protegidos pela Convenção Europeia de Direitos Humanos, da qual os Estados sujeitos à jurisdição do Tribunal Europeu são parte).
A abertura desse processo, embora desprovida de eficácia suspensiva (isso é, o governo britânico não é obrigado a aguardar a decisão definitiva do Tribunal Europeu antes de autorizar a extradição), permite a aplicação pelo Tribunal de medidas provisórias destinadas a impedir o perecimento do direito em discussão (no caso, a não extradição) antes de seu julgamento. Atualmente, o sistema europeu de proteção aos direitos humanos representa a principal esperança de salvação de Assange de uma morte quase certa sob a custódia dos Estados Unidos.
Fundamental reconhecer, porém, que a luta por liberdade para Assange não deve nem pode limitar-se às vias judiciais. Pelo contrário, os esforços de mobilização de John Shipton e Stella Morris retratados em Ithaka demonstram a importância da pressão política e da opinião pública na campanha contra a extradição, e pela retirada das acusações do Departamento de Justiça dos EUA.
Por onde passa, Shipton agradece aos apoiadores pela solidariedade e demonstra compreender que a luta do filho vai muito além do caso em si, tratando-se de um severo exemplo de perseguição que ameaça a liberdade de imprensa e o direito à verdade em todo o mundo. Ele agradeceu especialmente ao Brasil, ao Presidente Lula e a outros líderes do Sul Global, expressão conscientemente usada nos debates em contraposição à unipolaridade e à extraterritorialidade que estão na base do edifício de perseguição jurídico-política.
Certo é que a abrangência do caso Assange vai além do reclamo dos direitos de liberdade, e tampouco se restringe à integridade física e psicológica de uma pessoa. Esta não é a verdadeira Ítaca. A utopia está na derrota do modelo unipolar que se arroga o direito de arbitrar a vida ou a morte dos que considera inimigos. E tanto John Shipton quanto o nosso Odisseu contemporâneo sabem perfeitamente disso.
*Carol Proner é advogada, doutora em direito, membro fundadora da ABJD e Diretora do IJHF-AL.
**Helena Pontes é acadêmica de direito da Faculdade de Direito da UFRJ.
*** As opiniões contidas nesse artigo não refletem necessariamente as do Brasil de Fato
Edição: Rodrigo Durão Coelho