“95% das sementes de milho hoje encontradas no mercado são transgênicas”, informa Gabriel Fernandes, autor de recente pesquisa que identifica a presença de até sete genes transgênicos em uma mesma semente crioula em municípios da Caatinga, intitulada Transgene Flow: Challenges to the On-Farm Conservation of Maize Landraces in the Brazilian Semi-Arid Region [Fluxo transgênico: desafios para a conservação on-farm de variedades crioulas de milho no Semiárido brasileiro] e publicada na Revista Desenvolvimento e Meio Ambiente, da Universidade Federal do Paraná – UFPR. Segundo ele, o resultado do estudo indica que o uso de sementes transgênicas “é fruto de uma opção política do Estado brasileiro, ao longo das décadas, pelo que se chama hoje de agronegócio.
Sem essa ação pública determinada, esse modelo não estaria consolidado como está”. Em quase duas décadas, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio liberou mais de “60 tipos diferentes de variedades transgênicas de milho para uso comercial”. A disseminação da transgenia é “uma forma de ampliar o controle corporativo sobre os alimentos por meio de tecnologias patenteadas e venda casada de sementes e agrotóxicos”, adverte.
Para o engenheiro agrônomo, na entrevista por e-mail concedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, a agroecologia é uma alternativa para enfrentar as mudanças climáticas e combater a insegurança alimentar em um contexto de novo regime climático. Na direção contrária, lamenta, “preocupa o entusiasmo que o governo tem demonstrado em relação ao caminho da mercadorização e financeirização da natureza, que hoje atende pelo nome de bioeconomia”.
E acrescenta: “Organizações da sociedade civil, movimentos sociais e pesquisadores das diversas regiões do país promovem, há pelo menos quatro décadas, redes e experiências locais de agroecologia que formam uma base concreta e credível de referências para onde o governo e a sociedade em geral deveriam olhar de forma que o país possa enfrentar os desafios do clima e da segurança alimentar, promovendo justiça social”.
Gabriel Fernandes é engenheiro agrônomo formado pela Universidade de São Paulo – USP, especialista em agroecologia e desenvolvimento rural sustentável, pelo Centro Agronómico Tropical de Investigación y Enseñanza – CATIE, e em fundamentos holísticos para avaliação e regulamentação de organismos geneticamente modificados, pelo Instituto Norueguês para Ecologia do Gene – GENOK, Universidade de Tromso, na Noruega. Atualmente, coordena o Centro de Tecnologia Alternativa da Zona da Mata – CTA.
Confira a entrevista
Unisinos: Sua pesquisa identificou, em mais de mil amostras coletadas em 10% dos municípios da Caatinga, a presença de até sete genes transgênicos em uma mesma semente crioula. O que isso significa e representa em termos de expansão das sementes transgênicas?
Gabriel Fernandes – Nossa pesquisa pode ser considerada inédita pela escala que abrangeu e pelo fato de ter sido feita em condições reais de cultivo com a participação das famílias agricultoras. Mesmo assim, ela representa apenas uma amostra do que está acontecendo no semiárido e levanta a questão sobre como estão as demais regiões do país.
Essa investigação se deu a partir da execução de dois programas de conservação e uso de sementes crioulas no semiárido promovidos pela Articulação do Semiárido Brasileiro – ASA em parceria com a Embrapa. Esses programas fomentaram casas e bancos comunitários de sementes e ações de formação e intercâmbios.
A testagem do milho foi incorporada como parte desses programas, tendo em vista a preocupação de evitar que o milho transgênico ou que sementes contaminadas fossem inadvertidamente disseminadas por meio dos bancos de sementes e das dinâmicas locais de trocas de sementes entre os agricultores.
O resultado principal mostra um descontrole em relação ao milho transgênico no país, que tem, por sua vez, levado a uma ampla contaminação das variedades crioulas, que são aquelas adaptadas a cada localidade e que não passaram por métodos institucionais de melhoramento. Isso não chega a ser uma novidade, já que a contaminação das sementes locais é risco iminente, anunciado desde quando os transgênicos começaram a chegar no Brasil no fim da década de 1990. Esses alertas hoje confirmados foram sistematicamente ignorados em nome de um progresso tecnológico que favorece a monocultura em detrimento da diversidade.
Que percentual da produção de milho brasileira já é transgênica?
Entidades do setor estimam em cerca de 53 milhões de hectares a área cultivada com transgênico no Brasil, considerando soja, milho, algodão e cana-de-açúcar geneticamente modificados. Dentro disso, estima-se que entre 90 e 95% do milho cultivado no Brasil seja transgênico. O governo brasileiro, por meio da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, órgão ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, já liberou, desde 2005, 60 tipos diferentes de variedades transgênicas de milho para uso comercial. Isso corresponde à metade de todas as liberações de plantas transgênicas que temos até hoje. Segundo levantamento recente da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa, 95% das sementes de milho hoje encontradas no mercado são transgênicas. Os agricultores estão cada vez mais sem opção e dependentes da tecnologia que as grandes multinacionais que dominam o setor resolvem ofertar. Essa concentração do mercado de sementes é outro impacto previsível causado pelo avanço do modelo do agronegócio.
Os agricultores estão cada vez mais sem opção e dependentes da tecnologia que as grandes multinacionais que dominam o setor resolvem ofertar – Gabriel Fernandes
Qual é o percentual de produção agrícola transgênica hoje no país e a que atribui a adesão a esse modelo?
Apesar de mais de duas décadas de promessas, anunciando que a transgenia seria uma revolução na agricultura e na alimentação e daria origem a produtos mais saudáveis e mais nutritivos, o fato é que essa tecnologia ficou restrita a commodities como soja, milho e algodão. Depois avançou para cana-de-açúcar e eucalipto e, mais recentemente, para o trigo, sempre em sistemas de monoculturas dependentes de agrotóxicos.
Do total de sementes transgênicas liberadas, 92% foram geneticamente modificadas para tolerância a herbicidas e/ou resistência a insetos. Ao contrário da propaganda, não houve benefícios para os consumidores nem para o meio ambiente. Trata-se de uma forma de ampliar o controle corporativo sobre os alimentos por meio de tecnologias patenteadas e venda casada de sementes e agrotóxicos. Esse modelo é fruto de uma opção política do Estado brasileiro, ao longo das décadas, pelo que se chama hoje de agronegócio. Sem essa ação pública determinada, esse modelo não estaria consolidado como está.
O que é a contaminação cruzada entre genes? Como ela acontece no campo e quais suas consequências?
O milho é uma planta de fecundação cruzada. O pólen viaja com o vento entre as plantas e dá origem às espigas e grãos. É diferente do feijão, por exemplo, em que as flores de uma mesma planta se autofecundam.
Há duas formas principais de a contaminação ocorrer a campo: pela viagem do pólen de plantas transgênicas para não transgênicas e pela mistura de grãos. Nossa pesquisa mostrou que a contaminação ocorre mesmo nos sistemas locais de sementes, aqueles onde as trocas de sementes são nas comunidades, entre parentes e vizinhos e em encontros de agricultores. Isso ocorre principalmente pela falta de informação sobre a origem da semente.
Até 2018, quando a compra de sementes funcionou de alguma forma via Programa de Aquisição de Alimentos – PAA, a contaminação do milho era mais controlada, pois o milho comprado das famílias agricultoras era testado antes de ser distribuído. A partir de 2019 a contaminação nas modalidades públicas de distribuição de sementes disparou porque o PAA foi extinto e o governo comprou sementes de empresas.
Anos atrás, havia muita resistência em relação às sementes transgênicas por causa dos possíveis riscos desconhecidos. Hoje, como está esta discussão? O que as pesquisas evidenciam sobre as sementes transgênicas?
Com o passar do tempo os riscos previamente anunciados foram se confirmando um a um. Com outros colegas, ajudei a organizar um livro em que reunimos mais de 750 estudos publicados em revistas científicas que apontavam evidências de que a abordagem correta para lidar com o tema seria apoiar-se no princípio da precaução, conforme previsto na legislação brasileira e em acordos internacionais dos quais o Brasil é parte. As plantas geneticamente modificadas para tolerância a herbicidas deram origem a plantas espontâneas resistentes a esses mesmos herbicidas. Hoje estão liberadas plantas transgênicas tolerantes a três ou quatro tipos diferentes de agrotóxicos para controlar o mato que ganhou resistência.
Além do glifosato, entre estes produtos estão produtos altamente perigosos como o 2,4-D, o dicamba e o glufosinato de amônio. Como a pulverização do veneno acontece sobre a própria cultura, as plantas absorvem mais esses produtos, que vão parar nos grãos que serão finalmente consumidos direta ou indiretamente. Também os insetos ganharam resistência. A resposta da indústria foi empilhar genes modificados na mesma planta, chegando a 8 ou 9. Essas proteínas GM afetam espécies nativas de insetos e microrganismos benéficos.
Há também estudos que mostram que essas modificações genéticas ingeridas via alimentos passam para o bebê no útero da mãe. Hoje se sabe que a modificação genética é uma técnica imprecisa que promove efeitos não intencionais no metabolismo das plantas. Isso pode deixá-las mais suscetíveis ao ataque de insetos e doenças.
Na lógica do modelo do agronegócio isso é respondido com mais agrotóxicos. Devem-se ainda destacar agricultores de diferentes partes do país que relatam que as criações não ganham peso comendo milho ou ração transgênica e que os animais, mesmo os silvestres, preferem o milho comum ao modificado.
De um lado, por que a expansão dos transgênicos representa uma perda da agrobiodiversidade?
Primeiro porque promove monoculturas, que estão associadas ao desmatamento e à concentração da terra. Segundo porque, como mostra nossa pesquisa e várias outras na mesma linha, as sementes crioulas estão sendo contaminadas. A contaminação pode apagar traços desejáveis nessas variedades, que são aquelas características que fazem os agricultores as selecionarem e as manterem ao longo do tempo. A contaminação viola os direitos dos agricultores.
De outro lado, por que a contaminação transgênica torna o país mais vulnerável às mudanças climáticas e à insegurança alimentar?
As monoculturas, que emitem gases de efeito estufa, são altamente dependentes de derivados de petróleo e são voltadas para a exportação de algumas poucas commodities, enquanto os solos exauridos, os rios contaminados e as áreas degradadas ficam por aqui.
As monoculturas ainda avançam sobre territórios quilombolas, indígenas, de comunidades tradicionais e da agricultura familiar, que são exatamente as áreas onde a agrobiodiversidade está conservada. Isso acontece porque a agrobiodiversidade é parte dos modos e meios de vida dessas comunidades e de sua base alimentar. Quanto mais a contaminação transgênica erodir essa diversidade, menos chance teremos de construir a resiliência às mudanças climáticas.
Quem constrói essa resiliência é a agroecologia. Por isso o governo Lula não deveria assumir o risco de não investir massivamente na agroecologia se quer enfrentar a crise climática e combater a insegurança alimentar. Preocupa o entusiasmo que o governo tem demonstrado em relação ao caminho da mercadorização e financeirização da natureza, que hoje atende pelo nome de bioeconomia.
Deseja acrescentar algo?
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal – STF derrubou uma ação direta de inconstitucionalidade, impetrada em 2005, que questionava os dispositivos da lei de biossegurança que conferem amplos poderes à CTNBio para liberar transgênicos. Essa decisão, por um lado, não teve praticamente nenhuma repercussão pública e, por outro, tem o peso de ratificar o caminho adotado pelo país de promover um ritmo de liberação de transgênicos – e agora também produtos modificados derivados de técnica de edição de genomas – que é muito maior que a capacidade ou interesse do Estado de controlar seus efeitos sobre a saúde e a natureza.
Retomando a ideia do risco de não investir na agroecologia, o filósofo da ciência Hugh Lacey destaca a forma como o modelo agroalimentar dominante trabalha com a lógica segundo a qual “não há riscos e não há alternativas”. Ele discute o fato de que retardar os investimentos ou não investir em agroecologia dá margem para que esse discurso siga sendo reproduzido (“o Agro é pop”, “o Agro é tudo...”).
Por outro lado, Lacey demonstra que os biotecnólogos não operam com metodologias nem valores científicos que os habilitariam a avaliar os riscos das tecnologias que desenvolvem ou o potencial da agroecologia. Daí conclui-se que a alegação “não há riscos e não há alternativas” carece de credibilidade científica. Organizações da sociedade civil, movimentos sociais e pesquisadores das diversas regiões do país promovem, há pelo menos quatro décadas, redes e experiências locais de agroecologia que formam uma base concreta e credível de referências para onde o governo e a sociedade em geral deveriam olhar de forma que o país possa enfrentar os desafios do clima e da segurança alimentar, promovendo justiça social.