Com o retorno às aulas no último dia 4, escolas públicas na França mandaram cerca de 300 meninas de volta para casa por vestirem abayas – veste longa e larga utilizada por algumas mulheres muçulmanas e característica de alguns países do Oriente Médio, Norte da África e Sudeste Asiático.
A utilização das abayas, especificamente nesta data, foi uma forma de desafiar a nova proibição francesa da vestimenta, que foi considerada pelo governo francês como “símbolo religioso”. As estudantes que se recusaram a trocar as vestes foram enviadas de volta para casa com um papel a mais: uma carta aos pais dizendo que “o secularismo não é uma restrição, é uma liberdade”.
A manifestação das jovens ocorreu após o ministro da Educação francês, Gabriel Attal, anunciar que as vestes utilizadas principalmente por muçulmanos (abayas para meninas e mulheres e khamis para meninos e homens), seriam proibidas no início do novo ano letivo. O argumento é que as vestimentas desrespeitavam a lei de 2004, que defende o secularismo nas escolas, conhecida como laicité. Nesta lei, tornou-se proibida a utilização de lenços na cabeça (hijab), cruzes cristãs, kippas judaicos e qualquer outro tipo de simbolismo religioso que possibilitassem a identificação religiosa.
Na própria história francesa, nota-se que a imposição de proibições a quaisquer sinais religiosos nas escolas públicas ocorre desde as leis do século 19, que buscavam eliminar qualquer influência católica tradicional do ensino público. Mais recentemente, os governos franceses têm tentado atualizar as diretrizes para incluir a crescente minoria muçulmana no país.
A mais recente proibição das abayas e khamis nas escolas foi celebrada pela extrema direita do país, que se caracteriza pelos seus discursos anti-imigração. Já a esquerda argumentou que a medida representava uma “afronta às liberdades civis”.
Mas as abayas são “símbolos religiosos”?
Para o ministro da Educação, em diálogo com o governo francês, sim, as abayas e os khamis seriam símbolos religiosos. No anúncio realizado, Attal afirmou: “Quando você entra em uma sala de aula, você não deveria ser capaz de identificar a religião dos alunos apenas olhando para eles”.
Já associações e organizações de muçulmanos e muçulmanas na França estão alegando que as vestimentas proibidas não são de caráter religioso, mas cultural, como uma vestimenta de “moda”. Loubna Regui, presidente da organização Estudantes Muçulmanos da França, disse ao canal Al Jazeera que a proibição visava os imigrantes e era “intrinsecamente racista”.
Embora o argumento seja de que a proibição é para qualquer manifestação religiosa, no exemplo dado durante o anúncio, o governo francês relembrou o assassinato, há três anos, do professor Samuel Paty após mostrar caricaturas do profeta Mohammed durante uma aula de educação cívica. Torna-se notório que, neste caso, as restrições visam um “público” específico.
Essa afirmação pode ser embasada no conjunto de leis do país que atingem diretamente os muçulmanos e, especificamente, as muçulmanas.
Em 2004, por exemplo, proibiu-se o uso dos véus (hijab) nas escolas públicas, sendo o hijab uma escolha e parte fundamental da vivência da religião para a mulher muçulmana.
Em 2010, com base no Projeto de Lei n. 524, aprovou-se a proibição o uso do niqab (característico dos países da Península Árabe) e da burqa (comumente utilizada no Afeganistão e no Paquistão) e gerou-se a revolta de membros da comunidade muçulmana no país, que totalizavam, na época, em cinco milhões de habitantes.
Em 2016, a “polícia da vestimenta” atua novamente e o governo francês elaborou outros decretos contra o uso “de trajes de banho que ostentem filiação religiosa”, como o burquini, traje utilizado por mulheres muçulmanas. Segundo o argumento exposto, “o burquíni, é incompatível com os valores franceses de laicidade”
A atual proibição do uso de abayas nas escolas públicas se soma a este conjunto de decretos elaborados anteriormente que, como dito, tem um alvo. A recente proibição chegou a ser criticada pela porta-voz do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), Marta Hurtado: “vale a pena lembrar que, de acordo com os padrões internacionais de direitos humanos, as limitações às manifestações de religião ou crença, incluindo a escolha de roupas, só eram permitidas em circunstâncias muito limitadas – incluindo segurança pública, ordem pública e saúde ou moral pública”.
Dentro desse contexto, evidencia-se que os princípios de liberté e laicité não são igualmente válidos para todos os cidadãos que estão na França. Como afirmado pela socióloga Agnes De Feo, tais medidas corroboram para uma maior estigmatização das populações muçulmanas.
Nesse mesmo sentido, pode-se observar os "respingos" que ainda sentimos do 11 de setembro de 2001 nas políticas de controle e policiamento das populações muçulmanas, principalmente quando são pobres e imigrantes. O recorte racial e religioso não está desvinculado, também, do recorte de classe. Embora a relação de "inimizade" entre europeus e muçulmanos anteceda 2001, os atentados e as políticas de "combate ao terror" deixaram suas marcas no "velho mundo", que passaram a contar com um respaldo legal e legitimação internacional.
Para a professora e pesquisadora Francirosy Barbosa, “a dupla associação ao terrorismo e à opressão de gênero dada às mulheres tira delas a sua própria autonomia, desconsiderando suas escolhas. A proibição do uso dessas vestimentas tenta esconder certo ‘discurso civilizacional’ e ‘ideológico’ e promove o apagamento da diferença, ampliando a hostilidade ao islam e aos muçulmanos.”
Entre críticas e aplausos, a medida foi aprovada e, mais uma vez, em mais um lugar no mundo, mulheres tiveram suas chances de escolhas negadas.
* As opiniões deste artigo não refletem necessariamente as do Brasil de Fato
**Karime Cheaito. Mestra em Estudos Estratégicos (INEST/UFF) e cientista social (UNESP). Administradora do perfil @des.orientese