Todo ano, um coletivo de mulheres faz a performance de uma dança folclórica chilena que geralmente se dança acompanhado. No peito portam a foto de um ente desaparecido ou morto pelo golpe militar de Augusto Pinochet, que este ano completa 50 anos.
Como forma de homenagear as vítimas, muitas ainda desaparecidas, centenas de manifestações políticas acontecem em todo Chile, desde o último dia 30 de agosto, o dia nacional do desaparecido político. A data foi instaurada em 2006 a pedido de familiares das vítimas. Segundo o relatório do Instituto Nacional dos Direitos Humanos do Chile, a ditadura de Pinochet matou aproximadamente 4 mil pessoas. Dados de grupos de familiares apontam 100 mil vítimas entre mortos, desaparecidos, torturados e presos. Algumas dessas homenagens acontecem no Museu da Memória e dos Direitos Humanos fundado pela ex-presidenta Michelle Bachelet, que também foi vítima da ditadura.
“A importância da memória de um país é a alma, o coração, o que nos constrói. É também nossa coluna vertebral sob a qual podemos trabalhar para o futuro, armar uma sociedade melhor, nos conectarmos mais. E sobretudo saber que podemos viver em democracia, viver com nossas diferenças, sempre com o mínimo que é o respeito aos direitos humanos e a vinculação social. Essa é a importância dos museus de memória. É lembrarmos que passamos por momentos duros, difíceis e que nós enfrentamos como sociedade. No entanto, essas feridas persistem, ficam para sempre ou por muito tempo. E o dever destes espaços é lembrar para que não volte a acontecer”, explica Maria Fernanda Garcia, diretora do Museu da Memória, que nesta terça-feira, 12 de setembro, recebe a exposição do fotógrafo brasileiro Evandro Teixeira, intitulada "Fotojornalismo e ditadura: Brasil 1964 / Chile 1973".
Todos os anos, a sociedade civil chilena realiza a Grande Marcha em homenagem às vítimas do golpe, que atravessa parte do centro e termina no Cemitério Geral, onde boa parte das vítimas está enterrada, entre elas: Salvador Allende e Victor Jara. A grande marcha, que usualmente passa em frente ao Palácio de La Moneda, este ano teve esse trecho bloqueado pela polícia. Segundo fontes oficiais, um grupo de encapuzados jogou pedras e coquetéis molotov contra o palácio, quebrou vidraças e feriu 3 agentes e um cachorro da força de segurança. No trajeto ao cemitério, objetos foram queimados e algumas sepulturas foram depredadas. Já nas proximidades do cemitério, carabineros lançaram jatos de água e gás lacrimogêneo. A marcha foi encerrada pelos carabineros no cemitério geral com mais repressão. Diversos grupos estiveram no local, familiares de vítimas, organizações de base, times de futebol, ativistas LGBTQIA +, feministas, intelectuais, entre outros. Segundo relatos, todos os anos, desde 1990, ano que começaram as manifestações em homenagens às vítimas, os carabineros agem com truculência.
A forte repressão destoa das decisões recentes do governo Gabriel Boric. Em um fato inédito na história chilena, o presidente comprometeu o Estado a esclarecer o que aconteceu a 1162 desaparecidos. O "Plano de Busca" firmado por ele se torna mais um item na grande lista de discórdias entre a direita e o atual governo. Boric inclusive esteve por um breve momento na Grande Marcha, pouco depois de inaugurar a exposição em homenagem a Salvador Allende.
O cineasta Alfredo Garcia conheceu de perto os horrores do golpe. Seu pai, o professor Alfredo Gabriel Garcia Vega é um dos milhares de desaparecidos. Anos mais tarde, seu padrasto, o jornalista José Carrasco Tapia, foi assassinado pela polícia política. Sua família esteve em exílio de 1977 a 1984, e passou por México, Venezuela, Cuba, Nicarágua e El Salvador.
:: Há 50 anos, só uma coisa importava no Chile: sobreviver a um golpe feroz ::
Através de um advogado, os familiares de Alfredo conseguiram uma pequena reparação econômica do Estado. A última vez que Alfredo Gabriel Garcia Vega foi visto foi na Villa Grimaldi e depois nunca tiveram notícias, há suspeita de que tenha sido jogado ao mar. O cineasta, quando pode, faz um ritual de ir à Praia Amarilla em Viña del Mar. “Primeiro houve o Informe Rettig, que foi importante para saber quem eram as vítimas, depois o Informe Valech. E agora o Plano de Busca. Acho que é um bom sinal. Mas o que precisamos é de recursos para poder encontrar os desaparecidos, o que não é fácil porque as buscas podem ser ao mar, em valas comuns. E por outro lado está o pacto de silêncio dos militares, que não querem dizer onde estão nossos familiares”, conta Alfredo.
No domingo (10), feministas haviam marcado uma manifestação na Venda Sexy, centro de torturas sexuais que existiu de final de 1974 a início de 1975, por onde passaram mais de 80 prisioneiros, um terço sendo prisioneiras, em sua maioria militantes do MIR - Movimiento de Izquierda Revolucionária. Mas a possibilidade de chuva fez com que se cancelasse o encontro. Zabrina Perez Allende, jornalista e psicóloga chilena, é uma das organizadoras do evento. É sobrevivente ao centro de tortura de Villa Grimaldi, que de 1974 a 1976 deteve cerca de 5.000 presos políticos, destes 18 foram executados e 211 permanecem desaparecidos. Aos 16 anos, Zabrina foi sequestrada pela DINA (Direção de Inteligência Nacional) ainda com o uniforme do colégio e por 2 meses foi torturada e desaparecida. Com um bom humor admirável, ela faz questão de estar presente em diversos eventos todos os anos nesta data e de levar mosaicos com os nomes dos desaparecidos e mortos nos locais onde as vítimas foram vistas por última vez.
:: A brutalidade de Pinochet é uma ferida aberta na sociedade chilena ::
Na noite do domingo, centenas de mulheres se reuniram em frente ao Palácio de La Moneda para uma vigília, onde cantaram, gritaram frases de protesto e abraçaram coletivamente o prédio onde Allende morreu, promovendo um dos atos mais bonitos e potentes desta véspera de 11 de setembro.
Embora o Chile seja um dos países latino americanos que mais relembra seus mortos, o golpe ainda é uma ferida aberta na sociedade, que continua esperando respostas.
Edição: Thales Schmidt