Em quatro décadas de existência, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) passou por significativas transformações, mantendo seu compromisso com a reforma agrária. Por todo o Brasil, os assentamentos do MST são responsáveis pela produção de uma variedade de alimentos orgânicos, incluindo arroz, mel e leite. Em resposta às recentes enchentes que devastaram várias cidades gaúchas, o movimento se mobilizou, repetindo gestos anteriores como a doação de toneladas de alimentos e máscaras durante a crise da pandemia de covid-19.
Entretanto, o movimento enfrenta uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara dos Deputados, que tem como foco investigar suas práticas de ocupação e seus respectivos financiadores. A Comissão foi instaurada após intensa pressão de setores ligados ao agronegócio. Esta é a quinta vez, em duas décadas, que o MST é alvo de investigações dessa natureza. É também a terceira ocasião em que uma CPI com esse foco é inaugurada no início de uma gestão Lula.
No episódio 89 do Pauta Pública, publicado na última sexta-feira (15), o economista João Pedro Stedile, uma das lideranças do MST, discorre sobre as transformações no campo brasileiro nas últimas décadas e a relação com os setores da esquerda e da direita. “Cada vez que há algum governo de esquerda, como Lula ou Dilma, a direita impõe CPIs contra a esquerda, porque é assim que funciona a luta de classes”, reflete.
Leia os principais pontos da entrevista feita por Clarissa Levy:
Agência Pública: Na véspera do dia 7 de setembro de 1979, camponeses ocuparam uma gleba no Rio Grande do Sul, tomando a área. Anos depois, trabalhadores rurais se juntaram no Paraná para fundar o MST. Com o passar do tempo, a reforma agrária continua como pauta central. Pensando nas principais mudanças de cenário político do país e mudanças de estratégia do movimento, onde está a estratégia do MST hoje?
João Pedro Stedile: Foi bem lembrado o dia 7 de setembro de 1979, quando, no auge de um conflito entre povos indígenas e posseiros pobres, algumas famílias se reorganizaram e resolveram ocupar a fazenda Macali, localizada no município de Ronda Alta. Essa fazenda era reminiscente de outra grande fazenda, Sarandi, que havia sido um dos marcos da luta pela reforma agrária nos tempos do governo de Leonel Brizola.
Em quarenta anos de movimento, muita coisa mudou, mas no ensejo da pergunta, houve também uma mudança doutrinária na luta pela reforma agrária no Brasil. No início, nos primeiros 20 anos, a ideia geral que orientava a luta pela terra eram as influências históricas que tivemos em toda a América Latina durante o século 20, que eram as ideias de Emiliano Zapata na Revolução Mexicana. ‘Terra para quem nela trabalha’ era, então, uma proposta simples. A terra precisa ser repartida e destinada apenas para aqueles que nela trabalham. Por isso, era uma proposta de reforma agrária, como nós dizemos, camponesa. Então, o MST nasceu com esse ideário, lutando contra o latifúndio, distribuindo a terra para que ela atendesse a quem precisava trabalhar e, através do trabalho, reproduzisse a sua condição de classe camponesa, criasse suas famílias, progredisse na vida e resolvesse os seus problemas econômicos e sociais.
Nos últimos 20 anos, fruto das mudanças que ocorreram também no capitalismo, foi o fim da fase do capitalismo industrial que dominou o século 20. Nas últimas décadas, estamos sob o respaldo do capitalismo dominado pelo capital financeiro e por empresas transnacionais; isso mudou a classe dominante na sociedade e também na agricultura. Ensejou novos modelos de agricultura, chamados de agronegócio, também ensejou mudanças programáticas naquilo que se chama estratégia. O que antes era apenas terra para quem nela trabalhava, agora se ampliou, e defendemos o que resumimos no Programa de Reforma Agrária Popular. Note que estamos colocando o adjetivo “popular”. Isso significa que a reforma agrária agora não é mais apenas para atender às necessidades dos pobres do campo, mas sim para atender às necessidades de toda a sociedade. Então, resumidamente, adotamos outros paradigmas para não cair no academicismo.
Como na idade antiga em que os romanos e gregos usavam os pilares para a construção de seus templos, nós também temos os nossos. O primeiro pilar é que nenhuma reestruturação fundiária faz sentido na atualidade se não for para defender e proteger os bens da natureza e combater as mudanças climáticas. Em seguida, adotamos o paradigma de que a função social principal da agricultura, no mundo inteiro e atualmente, é produzir alimentos para toda a população, alimentos saudáveis que protejam a saúde da população. Para essa produção, é preciso adotar a agroecologia. Além disso, há a ideia da agroindústria cooperativada que cumpre diversas funções na agricultura. Ela consegue beneficiar os alimentos para transportá-los a longas distâncias para as cidades, pasteurizando o leite cru para a população e seus derivados, como nata e manteiga, que são fundamentais para a alimentação de toda a cidade, e isso só se faz com a agroindústria cooperativada. E finalmente, incorporamos em nosso ideário a educação. É preciso que toda a população do interior tenha acesso à educação, porque o conhecimento é tão importante quanto a terra. Dizemos que só o conhecimento liberta verdadeiramente as pessoas, liberta da ignorância e das relações sociais fajutas. Enfim, o conhecimento é um paradigma fundamental da construção de uma civilização. Porque é através do conhecimento que você resolve os problemas de uma forma mais rápida e em parceria com a natureza.
Uma mudança fundamental é a centralidade que o agronegócio assume para além dos interiores rurais. O agro se moderniza, consolidando sua centralidade na economia, sempre destacando sua importância para o PIB. Este setor é o maior proprietário e concentrador de terras em nosso país, além de ser um setor que faz propaganda na televisão, dominando uma dimensão cultural do país. Quais são as diferenças nas lutas do MST entre as disputas travadas contra o latifúndio nas décadas de 1980 e 90 e as disputas atuais contra o agro?
Como eu comentei antes, o capital também mudou ao longo desses anos. E hoje poderíamos resumir que existem três modelos que se enfrentam na agricultura: o primeiro modelo é o do latifúndio predador, neste sentido, não apenas como sinônimo de grande propriedade, mas como um modelo, como uma concepção. O latifúndio predador é aquela mentalidade capitalista que deseja se apropriar dos bens da natureza e acumular capital dessa forma. É o que Rosa Luxemburgo descreveu no início do século passado como acumulação primitiva, e aqui no Brasil, há um grande setor que pratica o latifúndio predador. Ele está presente, sobretudo, na fronteira agrícola, porque é lá que ele encontra a biodiversidade.
Por trás desse modelo aparentemente atrasado, está o grande capital financeiro e internacional. Um exemplo são os financiadores dos garimpeiros de ouro e diamante na reserva Yanomami. Na retaguarda deste garimpo, havia duas empresas, uma canadense e outra britânica, que fazem parte do grande capital. Isso foi revelado no processo contra o ex-ministro do meio ambiente Ricardo Salles. Quando se derruba madeira de forma ilegal na Amazônia e a exporta, alguém está comprando aquela madeira, e só foi descoberto esse contrabando porque o governo dos Estados Unidos percebeu a grande entrada de troncos de madeira no país. Em seguida, vem o modelo do agronegócio. Podemos vê-lo muito claramente nos comerciais veiculados pela TV Globo. É necessário muito capital para implementar esse modelo, que une o capital financeiro, empresas transnacionais (que são as que fornecem os insumos, máquinas, agrotóxicos e fertilizantes) e são elas também que compram essas commodities. Junta-se aos fazendeiros, que são proprietários das terras, e à mídia, como aparato ideológico de legitimação do modelo perante a sociedade.
Este modelo do capital utiliza técnicas modernas, como a semente transgênica e o agrotóxico de última geração. No entanto, ele não produz alimentos; ele apenas gera commodities, que é uma expressão inglesa para mercadorias padronizadas a nível mundial. O agronegócio produz muita riqueza, mas não contribui para o desenvolvimento do país. Isso acontece porque a riqueza produzida não fica lá; ela fica com as multinacionais, e mesmo os fazendeiros não moram lá; eles vivem em outras regiões do país ou até mesmo no exterior. No entanto, como parte dessas contradições desse modelo, eles estão enfrentando muitos problemas contraditórios e insolúveis, como o agronegócio ser um modelo que destrói o meio ambiente, incentivando o desmatamento. Esse capital está empurrando a fronteira agrícola Amazônia adentro.
E eles usam agrotóxicos para adotar o monocultivo. Estes ‘venenos’ matam a natureza, matam toda a biodiversidade. E não tem recuperação. Inclusive, os biólogos nos dizem que, do ponto de vista da biologia, o uso de agrotóxico é mais perverso do que a queimada. Na queimada, bem ou mal, depois a natureza se regenera. Então, essas contradições estão gerando uma dissidência dentro do agronegócio. E o setor mais inteligente do agronegócio está dizendo: ‘Não, nós temos que mudar o modelo’. Estão migrando para sementes convencionais, abandonando os transgênicos, até porque sobre as sementes transgênicas, eles têm que pagar royalties de 8%. Estão abandonando o fertilizante químico e colocando biofábricas dentro das fazendas. Estão abandonando os defensivos e adotando defensivos biológicos. Estão reflorestando parte das fazendas para ter um equilíbrio climático maior, fazendo um ajuste.
É o setor mais esperto do agronegócio que se dividiu e passou a apoiar o Lula na campanha passada e recebeu como ‘prêmio’ o Ministério da Agricultura, que é dado a esse setor. Nós os consideramos aliados nossos, porque se eles começam a pensar em defender a natureza e a produzir, mesmo que sejam commodities, mas de outra forma, isso demonstra que há vida inteligente também entre os capitalistas.
Bom, e o terceiro modelo é o nosso, que já descrevi um pouco na Reforma Agrária Popular, mas que é mais conhecido, no senso comum, como a agricultura familiar. Como diz o nome, ela é um modelo que se baseia no trabalho familiar. Então, são pequenas unidades produtivas. Você pode imaginar que são cinco milhões de unidades agrícolas de agricultura familiar no Brasil. Dentro delas, então, há as 500 mil famílias que conquistaram a reforma agrária do MST. Em geral, como média, têm 15 hectares cada família, então nós temos 80 milhões de hectares nas mãos desses agricultores. Sem explorar outros trabalhadores, com trabalho familiar. Eles se dedicam, sobretudo, a produzir alimentos. Primeiro, para a sua família, porque eles sabem que se não se alimentarem, não há reprodução da vida humana. Segundo, essa produção de alimentos é para o mercado interno. Ainda que alguns deles estejam integrados na agroindústria, em especial na produção de frangos, suínos ou tabaco (que não é alimento), essa produção seja destinada à exportação, mas não tem o nome de commodity.
Então, esse é o padrão da agricultura brasileira; nós estamos divididos entre três modelos. Felizmente, a natureza ajudou a dividir o modelo do agronegócio. Evidentemente, como você disse, o agronegócio é o modelo hegemônico na ideologia da classe dominante, por isso a Globo, todas as noites, faz propaganda. É para dizer, “esse é o modelo pessoal!”, é para fazer com que as pessoas pobres acreditem nisso. A Globo faz crítica ao latifúndio; a emissora ajudou a denunciar a invasão dos garimpeiros ao território Yanomami; ela ajudou a denunciar aqueles dois assassinatos no Vale do Javari, onde estavam defendendo a natureza. Então, a Globo também tem contradições com o latifúndio predador, mesmo que seja financiada pelo grande capital. Mas a rede de televisão ainda não se decidiu sobre qual agronegócio ela apoia, porque, no fundo, ela é financiada pelas empresas. Ao observar atentamente a propaganda veiculada pela emissora, nota-se uma caminhonete de uma empresa multinacional, que nem vou citar o nome, a qual patrocina o custo daquelas propagandas. Portanto, observe que uma multinacional de máquinas e caminhonetes para fazendeiros é quem financia essa ideologização do agronegócio.
Mas concluo, dizendo que eu acredito que a natureza está do nosso lado. O Papa Francisco está do nosso lado, e a população brasileira, aos poucos, está percebendo que o agronegócio não fornece alimento nem emprego; ao contrário, expulsa a população. O agronegócio só gera pobreza para o povo brasileiro.
Durante a pandemia, enquanto muitas pessoas passavam fome em suas casas, a agricultura familiar e o MST levaram comida à periferia. Não houve nenhum caminhão do agronegócio que tenha ido lá distribuir comida, porque eles não produzem alimentos. Se eles quisessem fazer um gesto humanitário, teriam que ir ao supermercado, comprar os alimentos e depois distribuí-los, pois as fazendas não têm o poder de distribuição. Esta é a situação, podemos dizer assim, da luta de classes entre os diferentes modelos na agricultura. E tenho convicção de que, num primeiro momento, vamos destruir o latifúndio predador, realizar a reforma agrária e, com o passar do tempo, a agricultura familiar também sairá vitoriosa em relação ao agronegócio.
Essa é a quinta comissão parlamentar de inquérito que coloca o MST como alvo nos últimos 20 anos, e a terceira vez que uma CPI do tipo é aberta bem no início de um governo Lula. Os trabalhos desta CPI já acabaram, e a previsão é que saia um relatório no dia 14 de setembro. Qual você acha que será o saldo para o movimento dessa CPI, e o que vocês estão esperando desse relatório?
Cada vez que há algum governo de esquerda, como Lula ou Dilma, a direita impõe CPIs contra a esquerda, porque é assim que funciona a luta de classes. Eles perdem o Executivo, então a Câmara dos Deputados acaba se transformando em um reduto da direita, e é muito fácil para eles reunirem 170 assinaturas de 503, nota a distorção que existe? Os latifundiários do agronegócio no Brasil, os ruralistas, como se diz, representam 1% da população; no entanto, eles têm 240 deputados. Percebe a distorção? Têm a metade dos deputados. Então, eles usam essa distorção eleitoral para criar trincheiras na Câmara e confrontar o governo, assustar a esquerda e criar factoides nesta luta ideológica.
Veja bem, o agronegócio e a frente parlamentar ruralista não entraram na CPI. Eles perceberam que era uma furada. Como se fosse um “não vamos lá comentar, porque pode entrar o time de crimes ambientais; pode entrar trabalho escravo; podem entrar as invasões de terras indígenas.” Então, eles não participaram. Foram lá apenas o que tinha de pior na extrema direita, milicianos, gente que só tem visão militar.
Enfim, no caso dos deputados Luciano Lorenzini Zucco e Ricardo Salles, que são dois deputados inteligentes, eu acho que, nesse caso, eles quiseram adotar uma tática de ‘melhor nós irmos para o ataque do que ficar na defesa’ em relação à situação pessoal deles, porque na CPI do dia 8 de janeiro eles são réus. Então, na verdade, eles procuraram um palanque, e não é por acaso que eles sejam o presidente e o relator, que são os que têm mais visibilidade na imprensa. Eles procuraram um palanque para se defender previamente do que a CPI do dia 8 de janeiro pode ir atrás.
Agora, acho que o presidente da Câmara, Arthur Lira, já disse que não renovará nenhuma CPI, e o governo, por sua vez, já tem maioria nesta CPI, então acredito que a tendência natural é que não haja nenhum relatório aprovado. Penso que o relatório do Salles, como ele quer incriminar e criminalizar, não tem fundamento. A bancada governista está preparando um relatório alternativo, mas acredito que, no fundo, haverá uma negociação e não haverá relatório. Uma CPI sempre atrapalha, exige energia, gente, tempo, advogados, e também nossos deputados ficam presos a uma metodologia um tanto complexa da direita.
Eu acho que, no balanço geral, nós ganhamos a batalha ideológica na sociedade. A sociedade esteve ao nosso favor. Depois que estive lá depondo durante sete horas, recebi centenas, milhares de manifestações por todas as vias. Não só eu, mas o movimento recebeu solidariedade e cumprimento. E, nas redes sociais da direita, pelo que nós monitoramos, eles não ampliaram a audiência; ao contrário, baixou, ou seja, eles nem sequer furaram a bolha e diminuiu a assistência deles.
Colaboração: Ana Alice de Lima, Raphaela Ribeiro