Doze fazendas sob suspeita de grilagem foram aceitas pelo mercado financeiro como garantia em uma operação de captação de recursos. As terras pertencem ao Grupo Horita, produtora de grãos e algodão em 150 mil hectares no Oeste da Bahia, e réu em ações por grilagem e desmatamento.
As propriedades têm um valor total estimado em R$ 689 milhões, e integram um único Certificado de Recebível do Agronegócio (CRA), tipo de operação utilizada para amealhar recursos no mercado financeiro (confira o infográfico abaixo). O chamado CRA Horita IV busca captar R$ 51 milhões e foi lançado pela Virgo em julho do ano passado, em meio ao boom de investimentos do mercado financeiro no agronegócio brasileiro.
A operação é coordenada pelo Itaú, maior banco privado do país, e tem como avalista o Banco Rabobank, um dos maiores financiadores do agronegócio mundo afora. O agente responsável pelas garantias é a Vortx Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários, que tem sido uma operadora importante no recente crescimento de CRAs vinculados a terras e grãos.
O devedor do CRA é um dos integrantes da família Horita. Ricardo Lhossuke Horita é dono ou sócio de ao menos 17 empresas do grupo, e responde a vários processos por desmatamento.
O Joio obteve as matrículas de registro de todos os doze imóveis apresentados na documentação aceita pelo Itaú. Todos eles ficam no chamado Agronegócio Condomínio Cachoeira Estrondo, um projeto de latifundiários criado em Formosa do Rio Preto, no extremo Oeste da Bahia, que está sob investigação do Ministério Público Estadual. A acusação é de que a área de 300 mil hectares – quase cinco vezes a cidade de Salvador – foi grilada por volta de 1975.
As próprias matrículas trazem a informação de que as terras estão sob investigação. Em todas elas o Ministério Público fez constar que existe um inquérito civil em curso. A anotação traz, inclusive, o fato de que as propriedades da Estrondo foram fracionadas em ao menos 365 matrículas, de forma a dificultar a fiscalização, e acrescenta que há comunidades tradicionais que utilizam este local há décadas. É por isso que algumas das propriedades dos Horita colocadas como garantia no CRA são, na verdade, uma única fazenda, fracionadas no papel.
O registro do Ministério Público é datado de 22 de junho de 2022, ou seja, um mês antes que o mercado financeiro lançasse o CRA Horita IV. Como se não fosse suficiente, a leitura de informações anteriores nas próprias matrículas permite enxergar um passado no mínimo conturbado. Apenas um ano antes, o fundo de investimento Quasar Direct Lending cancelou a alienação de um dos imóveis, fruto também de um empréstimo, justamente ao notar que a terra estava sob investigação por grilagem.
Ao mesmo tempo, as matrículas registram que, durante as décadas nas quais a área está sob contestação, as terras só fizeram valorizar. Uma das fazendas em questão, com 700 hectares, foi incorporada a uma empresa do Grupo Horita em 2008 por apenas R$ 597 mil. Um ano depois, o Tribunal de Justiça da Bahia chegou a determinar o cancelamento do registro de imóvel, o que acabou em seguida revertido. Em 2019 a área já estava avaliada em R$ 16,9 milhões, e apenas três anos depois havia chegado a R$ 65,4 milhões – cem vezes mais em apenas 15 anos.
O Grupo Horita teve terras sob suspeita aceitas em ao menos outras duas operações investigadas por nossa reportagem. Em 2019, num CRA também administrado pela Vortx, e tendo a Isec Securitizadora como emissora, quatro fazendas investigadas foram entregues como garantia, num total avaliado em R$ 43,49 milhões. Na época, a intenção da Horita era arrecadar R$ 30 milhões.
A Vortx assinalou na documentação disponível que “não fomos informados sobre eventual deterioração do imóvel ou outro aspecto que possa impactar negativamente o valor atribuído ao imóvel”, de forma que a recomendação à Isec era de aceitar a garantia.
Entre todos os envolvidos, o Itaú foi o único a se posicionar. Em nota, o banco informou que “os apontamentos relacionados às terras, que ainda estão sendo apurados pelas autoridades responsáveis, foram identificados no processo de estruturação da oferta e informados aos investidores como fator de risco no Anexo X, item 6 do Termo de Securitização da emissão”.
De fato, o anexo em questão trata dos riscos que os eventuais investidores assumem quando decidem aportar recursos no CRA da família Horita. Ao todo, quatro parágrafos mencionam o histórico do Condomínio Estrondo, incluindo um relatório do Greenpeace a respeito de grilagem e as investigações em curso pelo Ministério Público.
Questionado sobre como se deu a estruturação da oferta e por que terras sob suspeita de grilagem foram aceitas, o banco Itaú redigiu um complemento à resposta inicial: “O Itaú BBA atua em acordo com rígidas políticas de ESG, bem como regulações nacionais e internacionais. Reiteramos que, conforme item 4.9 do Termo de Securitização, o esforço de venda foi realizado somente para investidores profissionais, sendo essa categoria de investidores reconhecida pela regulação como capaz de entender e ponderar os riscos financeiros relacionados aos seus investimentos. Os processos em andamento no momento da oferta foram informados como fator de risco no Anexo X item 6 do Termo de Securitização da respectiva emissão. Vale ressaltar que o papel da instituição intermediária é o de realizar diligência legal de alto padrão e de dar visibilidade acerca dos riscos aos investidores, requisitos plenamente atendidos pelo Itaú BBA.”
Há ainda outro CRA do Grupo Horita no qual as mesmas terras hoje integradas ao CRA do Itaú foram aceitas como garantia. O certificado foi lançado em 2016 pelo Banco Fibra, tendo como emissora a Ápice Securitizadora, com o objetivo de arrecadar até R$ 52 milhões. Nesse caso, ao todo são listados 20 imóveis pertencentes a empresas do grupo.
Como funciona um CRA
Histórico de grilagem
Na realidade, nem mesmo seria preciso ler as matrículas para entender que se trata de uma área sob suspeita. A fama da Estrondo precede o nome. O condomínio de fazendas consta do Livro Branco da Grilagem de Terras no Brasil, produzido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), em 1999, com a intenção de que a União recuperasse terras públicas ocupadas irregularmente.
Os processos sobre grilagem envolvendo o Grupo Horita vão além da Estrondo. Os irmãos Ricardo, Walter e Wilson são réus em “um dos casos mais graves de grilagem registrado” da Bahia, segundo a Procuradoria Geral do Estado.
Em maio de 2023, a Justiça de Correntina bloqueou as matrículas de 19 fazendas que invadem uma área de 11 mil hectares do fecho de pasto Capão do Modesto, onde famílias vivem de forma coletiva há inúmeras gerações. Na decisão, o juiz Matheus Agenor Alves Santos determina a proibição “da derrubada da cobertura vegetal, a construção de cercas e transferências de benfeitorias a qualquer título”.
O bloqueio das fazendas por suspeita de grilagem foi reportado pela Agência Pública. Também são réus no processo empresas do agro como a Agrícola Xingu e fazendeiros como Dino Rômulo Faccioni, da Agropecuária Talismã.
Na denúncia, o procurador José Paulo Sisterolli Batista cita que a área em questão é “caracterizada pela existência de grande tensão social, proveniente de conflito fundiário”, e que as comunidades de Capão do Modesto estão sofrendo assédio de empresas, inclusive com ameaças de morte. O documento menciona que desde 2014 diversos boletins de ocorrência foram lavrados “sem que providências fossem tomadas pelas autoridades locais.”
Menciona, também, que a Agropecuária Talismã LTDA, da família Faccione “vem se utilizando dos serviços de milícias privadas, sob fachada de empresas de segurança, para expulsar as famílias que fazem uso da área para o pastoreio de animais -atualmente, ‘Estrela Guia’.”
De acordo com a procuradoria, ao longo do processo “restou cabalmente demonstrado a existência de grave conflito pela posse da terra” e “a existente sobreposição quase total da área a ser discriminada do Fecho de Pasto Capão do Modesto, conforme análise das matrículas informadas”.
A PGE ainda afirma que “não raras vezes, terras devolutas acabam sendo assenhoradas por particulares sem a devida razão, prática conhecida como grilagem. No caso em comento, é visível que as propriedades da Gleba Capão do Modesto estão listadas como um dos casos mais graves de grilagem registrados na Bahia. [….] Como se não bastasse o conflito existente, apurou-se indícios robustos de grilagem na região”, conclui.
O Grupo Horita esteve envolvido em mais um caso de grilagem no Oeste da Bahia. Walter Horita foi alvo da Operação Faroeste, que investigou um esquema de corrupção e grilagem de mais de 360 mil hectares na região. A investigação da PGR localizou pagamentos de propina para funcionários do Tribunal de Justiça da Bahia em troca da regularização de áreas griladas na região. De acordo com a operação, entre 2013 e 2019, Horita teria movimentado pelo menos R$ 5,7 bilhões sem origem nem destino.
Acusações de corrupção envolvendo integrantes do Ministério Público e do Judiciário estadual são corriqueiras em processos por grilagem naquela região. Em um único caso, nove desembargadores do Tribunal de Justiça declararam suspeição para julgar uma ação envolvendo a empresa AMC Agropastoril.
Por que isso é importante?
Porque pode haver dezenas de outras operações nas quais terras sob suspeita de grilagem tenham sido oferecidas como garantia. A própria família Horita tem captado recursos em outros CRAs. Nos últimos anos, a presença do agronegócio no mercado financeiro cresceu de forma considerável e inédita graças a leis e instrumentos criados ou aperfeiçoados pelo governo Bolsonaro. Operações desse tipo podem dar ainda mais força a empresas com histórico de grilagem, desmatamento e trabalho escravo. Além disso, aumenta a chance de que o boom da entrada de pessoas físicas em investimentos no setor sirva para impulsionar esse tipo de prática, dando força, também, para o avanço sobre áreas de produção de alimentos e de preservação ambiental.