Apenas dois dias depois que o presidente Joe Biden assinou a extensão anual da lei que regulamenta o bloqueio contra Cuba - um ritual que os EUA realizam ano após ano - mais de cem delegações provenientes de países do Sul Global chegaram a Havana para participar da cúpula do G77+China.
Em 15 e 16 de setembro, delegações de 116 países se reuniram para discutir e definir ações para enfrentar os desafios atuais que o Sul Global enfrenta. Na ocasião, o foco principal foi o desenvolvimento científico e tecnológico. O evento também contou com a presença do secretário-geral da ONU, António Guterres, juntamente com 12 organizações do sistema das Nações Unidas.
Apesar de Washington manter Cuba em sua lista de "países que promovem o terrorismo", o alerta sobre o suposto "perigo" que Cuba representaria não dissuadiu os mais de 60% dos países pertencentes à comunidade internacional de decidirem viajar à ilha e participar do evento. Tampouco impediu que líderes de todo o mundo se manifestassem na própria ilha contra o bloqueio.
A cúpula ocorreu em meio a dois importantes eventos internacionais. Por um lado, o G20 que ocorreu no início de setembro. Por outro, o G77+China ocorreu apenas alguns dias antes da Assembleia Geral da ONU. Dessa forma, os países do Sul Global conseguiram organizar e coordenar um conjunto de demandas comuns em relação aos países centrais.
A necessidade de uma nova ordem mundial
"Essa ordem internacional que prevalece atualmente é uma ordem que foi estabelecida e montada para atender aos interesses dos países poderosos", reflete Jorge Casals Llano, professor e pesquisador do Instituto Superior de Relações Internacionais de Cuba, para o Brasil de Fato.
"Poderíamos até dizer que não se trata nem mesmo de uma ordem que foi estabelecida para o benefício de todos esses países, mas sim para os setores privilegiados. Para as classes dominantes desses países. E, por isso mesmo, trata-se de uma ordem não democrática e injusta. Há espaços em que muitos países, mais ou menos, podem oferecer suas opiniões. Mas, no final, os tomadores de decisão são apenas um punhado de países".
A recente crise da pandemia foi um exemplo revelador não apenas das desigualdades entre o sul e o norte, mas também da falta de democracia em nível global. A maioria dos países pertencentes à Organização Mundial do Comércio (OMC) expressou a necessidade de suspender temporariamente os direitos de propriedade intelectual sobre as vacinas. Assim, as populações poderiam ser imunizadas de forma mais rápida e eficiente. No entanto, uma minoria de países do norte se recusou a fazer isso. Bloqueando qualquer possibilidade de que a iniciativa fosse levada adiante.
As consequências foram claras: milhões de pessoas morreram por não terem acesso ao tratamento, enquanto, como mostra um relatório do centro de pesquisa corporativa multinacional SOMO, as sete principais empresas farmacêuticas de vacinas obtiveram margens de lucro entre 49% e 76%, acumulando benefícios de US$ 90 bilhões por ano em 2021 e 2022.
"Para Cuba, responder aos interesses do povo cubano é sempre responder aos interesses do Sul Global. Esta ordem internacional provocou e agravou uma série de crises que não pode resolver. A importância do G77 + China é justamente poder contribuir para a construção de uma alternativa a partir do Sul Global", reflete Casals Llano.
Acrescentando que "a posição de Cuba sempre foi a defesa irrestrita do não alinhamento com qualquer potência internacional e a luta por uma nova ordem mundial baseada no respeito igualitário a todos os países, uma nova ordem mundial baseada na solidariedade entre os povos".
Casals afirma que a história de Cuba sempre foi coerente com esses princípios. Desde a participação da ilha nos processos de independência na África, "sem que Cuba levasse um único diamante de lá, só participando por pura convicção moral", como ele afirma, até a ativa contribuição de Fidel Castro no Movimento dos Não Alinhados. O que, para Casals, demonstra que Cuba sempre manteve uma política externa independente, mesmo em uma época em que a União Soviética era o principal parceiro da ilha.
"O surgimento dos Brics abre uma oportunidade para os países do Sul Global. Isso é muito positivo", diz e acrescenta que "no entanto, é necessário que existam e se fortaleçam espaços transversais que reúnam, de forma democrática, o grupo de países que mais sofrem com esse sistema internacional. Nesse sentido, o G77+ China desempenham um papel fundamental".
Oportunidades
"A diversificação do comércio e dos investimentos no Sul Global é uma oportunidade. Dessa forma, o crescimento de países como a China pode ser usado de forma inteligente", diz Eduardo Regalado Florido, economista especializado em China, para o Brasil de Fato.
"A China já declarou várias vezes que, para dar continuidade à dinâmica de crescimento que vem experimentando nos últimos anos, precisa de um ambiente pacífico. Tanto dentro de suas fronteiras quanto no exterior. Nesse sentido, os investimentos que ela está fazendo em vários países podem ser uma oportunidade", argumenta Eduardo Regalado.
Por outro lado, Regalado ressalta que o sistema de sanções implementado pelos Estados Unidos levou muitos países a negociar e comercializar em outras moedas que não o dólar. Na opinião do economista, isso permitirá uma redução gradual da dependência unilateral dos Estados Unidos, o que poderia levar a uma maior diversidade no sistema financeiro internacional.
Por meio de um longo processo de construção de consenso iniciado pela diplomacia cubana, ao assumir a presidência do G77, e pela China em janeiro passado, a Conferência adotou por unanimidade a Declaração de Havana.
Entre os pontos mais importantes acordados estão: a necessidade urgente de uma reforma abrangente da arquitetura financeira global; o compromisso de "promover a cooperação sul-sul"; a rejeição da "imposição de leis e regulamentações com impacto extraterritorial", bem como de "medidas econômicas coercitivas"; e a rejeição de "monopólios digitais".
A conferência também votou a favor da solicitação do México para voltar a fazer parte do grupo. O México era o único país da América Latina e do Caribe que não era membro. A resolução é de particular importância, pois o México é a segunda maior economia do continente e o décimo país mais populoso.
Um mundo em crise
Já se passou quase uma década desde que o G77+ China realizaram sua última cúpula de chefes de estado e de governo. A última vez havia sido na Bolívia, em 2014.
Durante esses anos, ocorreram mudanças importantes no mundo. A crise climática tornou-se cada vez mais urgente. A guerra recuperou uma centralidade global que não tinha há décadas. A corrida armamentista está em ascensão, enquanto o mundo enfrenta uma nova crise econômica.
"O fato de Cuba ter assumido a presidência do G77 + China é um elemento que merece ser destacado. Não apenas pelo enorme número de países que compõem o grupo, o que dificulta a obtenção de consenso devido à diversidade de pontos de vista e interesses. Mas também porque, cada vez mais, há uma maior fragmentação internacional", reflete Claudia Marin, coordenadora da equipe de América Latina e Caribe do Centro de Pesquisa de Políticas Internacionais, para o Brasil de Fato.
"É muito importante, diante das mudanças e dos rearranjos que estão ocorrendo, afirmar que a solução e a proposta que Cuba está fazendo é uma proposta democrática. Não se trata de que as potências ou os países mais poderosos economicamente tomem decisões pelo resto. E que o resto, tal como está configurado hoje, deve administrar as desigualdades que o mundo nos reserva. Trata-se da participação de todos na tomada de decisões. Para que, no final, possamos definir e estabelecer a direção do desenvolvimento do mundo", disse.
Ao mesmo tempo, Claudia Marin enfatiza que não devemos perder de vista o fato de que dentro do próprio Sul Global existem assimetrias de poder que devem ser levadas em consideração.
Em seu discurso inaugural na Cúpula, o presidente cubano Miguel Díaz-Canel enfatizou a importância de o grupo ser capaz de unir forças e coordenar ações conjuntas. Para isso, ele lembrou, como homenagem, o ex-presidente da Venezuela, Hugo Chávez, que costumava dizer que "nós, presidentes, vamos de cúpula em cúpula, enquanto os povos vão de abismo em abismo".
Durante a recente cúpula, Cuba elaborou uma série de propostas de colaboração e intercâmbio nas áreas de saúde, educação, agricultura, mudanças climáticas e acesso a desenvolvimentos científicos. Formas de colaboração que visam dar passos concretos em direção à integração sul-sul.
"Trata-se precisamente de transcender a esfera formal e declarativa", diz Claudia Marin. "É importante buscar opções e propostas concretas para conectar as capacidades e o potencial dos países do Sul Global. Tentar conectar as capacidades que já estão desenvolvidas e fortalecê-las além de fazer exigências que certamente são justas de serem feitas em nível internacional em relação ao relacionamento com o Norte".
Edição: Thales Schmidt