A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) viveu, nesta quinta-feira (21), o penúltimo capítulo da disputa que opõe bolsonaristas e governistas no palco do colegiado. Ao apresentar seu relatório, o deputado bolsonarista Ricardo Salles (PL-SP) não cumpriu exatamente o que vinha anunciando nas últimas semanas sobre o conteúdo do texto: ele retirou, por exemplo, o nome do deputado Valmir Assunção (PT-BA) da lista de pedidos de indiciamento.
O texto aponta para o indiciamento de outras 11 pessoas. O destaque da lista é o general Gonçalves Dias, ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República no governo Lula e um dos que prestaram depoimento à CPI. O rol também inclui o líder da Força Nacional de Luta (FNL) José Rainha e o diretor-presidente do Instituto de Terras e Reforma Agrária de Alagoas (Iteral), Jaime Messias Silva. Salles mira ainda Débora Nunes, integrante da coordenação nacional do MST, e sete nomes ligados à organização na Bahia. O estado esteve, desde o início, no horizonte dos ataques dos bolsonaristas na comissão.
A retirada do nome de Valmir Assunção resulta da resistência de uma parte dos deputados diante do assunto. Houve recusa inclusive de alguns membros da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), a chamada "bancada ruralista", tradicional polo opositor do MST e demais movimentos que lutam pela reforma agrária. A mudança confirma a tendência que vinha se anunciando de que a extrema direita se encontra hoje em um terreno incerto para a aprovação do relatório. Responsável direto pela criação da CPI, o grupo foi predominante na primeira fase do colegiado, tendo escolhido, por exemplo, os nomes da mesa diretora, mas acabou perdendo força no meio do caminho e hoje se vê em situação embaraçosa diante do jogo político na CPI.
"Há um entendimento de diversos partidos da CPI de que nós poderíamos nos ater àquilo que está materialmente comprovado e que não atinge o parlamentar na medida em que haverá instâncias próprias para essa apuração no Judiciário. Essa é uma condução imposta por algumas dessas lideranças no sentido de que possa ser aprovado o relatório na terça-feira", argumentou Salles à imprensa após o fim da sessão.
A aposta do relator é que, com a exclusão do nome de Assunção, o texto possa angariar mais apoiadores. Após a apresentação do parecer, parlamentares da base do governo pediram vista coletiva para analisar o documento e a votação ficou para a próxima terça (26), data final do calendário da CPI. Tanto Ricardo Salles quanto o presidente da comissão, Zucco (Republicanos-RS), afirmaram nesta quinta que o parecer ainda poderá ser modificado. "Teremos até terça-feira a possibilidade de ajustes no relatório", disse Zucco ao encerrar a reunião.
Costuras
A declaração de Zucco é um aceno às tentativas de acordo com integrantes dos partidos da direita liberal que compõem a CPI. Nesta quinta, pouco antes do início da reunião, Salles disse a governistas nos bastidores que teria tirado o nome de Valmir Assunção do relatório. A exclusão faz parte de uma estratégia para conquistar votos favoráveis ao parecer entre membros das siglas União Brasil, PP e PSD, por exemplo, pois parte dos parlamentares rejeita a ideia de enquadramento de um membro da Casa no documento por conta do precedente que a iniciativa tende a gerar.
O relatório oficial cita o nome de Assunção em pelo menos cinco momentos, mas não pede formalmente o indiciamento nas conclusões, trecho desse tipo de parecer onde geralmente se apontam os pedidos da relatoria. Durante a sessão, a deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP) chegou a cobrar os anexos do documento, conforme prometido por Salles em uma das últimas páginas do parecer inicial, mas a íntegra do relatório só foi disponibilizada minutos antes do encerramento da reunião. Nas horas que antecederam a postagem do texto no sistema, apenas o miolo do parecer, um material com 86 páginas, constava no sistema eletrônico da Câmara. O arquivo completo tem 280 laudas.
"Não nos causou surpresa nenhum dos elementos apresentados no relatório porque o objetivo de tentar criminalizar o movimento, algumas lideranças e o próprio governo é algo que ele já vinha anunciando desde antes de a CPI ser instalada. Hoje a leitura do relatório foi melancólica, com um relatório mal feito e que não havia apresentado [inicialmente] sequer o anexo, que é o aspecto mais importante de um relatório por conta das sugestões de indiciamento", queixou-se Sâmia, durante coletiva de imprensa ao final da sessão.
Ao atender os jornalistas logo após o término da sessão, Salles foi questionado sobre qual seria a lista de indiciados, o que não havia ficado claro durante a apresentação da primeira parte do relatório na mesa da sessão, mas o relator evitou detalhar o assunto. "Está lá no documento", tergiversou.
A conduta foi vista por governistas como mais uma tentativa dos bolsonaristas de criarem uma cortina de fumaça em torno da espetacularização do enredo da CPI, mas sem apresentação, sob os holofotes, de argumentos com consistência comprobatória. Chamou a atenção o caráter genérico das conclusões apresentadas na primeira parte do relatório, a de 86 páginas, em que Salles afirma que "crimes graves têm sido cometidos, não apenas contra os produtores rurais, mas também contra os mais humildes integrantes desses grupos e movimentos de luta pela terra" e não apresenta provas da acusação.
Disputa ideológica
Ao longo de toda a sessão desta quinta-feira e também na escrita do relatório, Salles manteve a linha de atacar o MST. Ele sustenta o discurso de que a organização supostamente explora de forma indevida a mão de obra e a dignidade dos trabalhadores que compõem a base do movimento. Parlamentares do campo da esquerda mais uma vez criticaram a abordagem do relator.
"A CPI não deveria nem ter começado. Isso aqui serviu como um palanque bolsonarista, mas que só teve efeito na própria base [deles]. Socialmente, o relator se tornou réu nas últimas semanas, está bastante desmoralizado e, ao contrário, o MST saiu muito mais forte. A prova disso é que o próprio governador do Rio Grande do Sul fez uma visita a uma das cozinhas solidárias que eles [os militantes] instalaram em solidariedade às vítimas das tragédias climáticas que aconteceram em algumas cidades [no estado]", disse Sâmia.
O deputado Nilto Tatto (PT-SP) faz análise semelhante. Ele diz apostar ainda na vitória da base governista na próxima terça. "Durante as diligências, eles cometeram crimes invadindo barracos sem mandado judicial. Entraram em terras indígena sem autorização também. Isso tudo foi se consolidando dentro da CPI, ficou demonstrado que era só para atacar os movimentos que lutam pela reforma agraria e intimidar o governo do presidente Lula a não fazer a reforma. Com isso, ficou patente que o relatório espelha esse desnorteamento da própria CPI ao longo do tempo. Vamos, com toda certeza, derrotar o relatório dele."
Votação
Segue incerta entre governistas a decisão sobre apresentar ou não à CPI um parecer alternativo. Nesta quinta, o grupo reiterou que a deliberação dependerá da evolução do cenário político até terça-feira (26). "O nosso relatório já é de conhecimento da sociedade e coloca a nossa versão dos fatos, demonstrando as irregularidades que foram cometidas nas diligências e na condução dos trabalhos. Se nós vamos apresentar ou não, vai ser uma de questão tática a partir da avaliação do que vai se dar na próxima terça. Nossa concentração de esforços é pra derrotar o relatório do Salles."
O regimento só permite a apresentação de um documento alternativo até antes da votação do relatório oficial da comissão, por isso os cálculos do governo dependem da postura que irão assumir os integrantes dos partidos da direita liberal. Tanto a ala bolsonarista quanto a base do governo ainda incidem sobre esses partidos para disputar votos.
Devem rejeitar o relatório de Salles os membros das siglas PT, PSOL, PCdoB, PSB e alguns agregados, mas não se sabe ao certo quantos apoios o governo poderá ter. A costura política que irá resultar na decisão sobre apresentar ou não um segundo relatório envolve não só os deputados da CPI, mas também o líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), e o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha (PT).
Edição: Nicolau Soares