CONFLITOS FUNDIÁRIOS

Desafio das políticas de moradia passa por combate ao neoliberalismo, avalia urbanista

Para Bruno Meirinho, conceito de 'comunidades tradicionais' deveria ser estendido a espaços urbanos de moradia

Brasil de Fato | Curitiba (PR) |
Urbanista aponta que o conceito de comunidades tradicionais deveria ser estendido para os locais de moradia dos trabalhadores - Divulgação

O advogado, militante social e especialista em urbanismo Bruno Meirinho acompanha diversos conflitos fundiários, áreas em luta por regularização e comunidades urbanas, algumas das quais integram a campanha Despejo Zero.

Em entrevista ao Brasil de Fato Paraná, Meirinho é crítico às companhias de habitação mistas, como Cohab e Cohapar. Ele percebe como fator importante o papel da Comissão de Conflitos Fundiários do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Contudo, adverte ser preciso romper com a lógica neoliberal que rege o urbanismo nas cidades.

Confira a entrevista a seguir.

Brasil de Fato Paraná – Quais os desafios desse período do governo Lula (PT) no tema da moradia?

O desafio, em uma palavra, é o neoliberalismo. As cidades se tornaram um instrumento financeiro. Então, o Estado e o mercado só olham para a cidade como um espaço para produzir mais dinheiro. E essa lógica esvazia qualquer debate que não seja que a cidade é mercadoria. Então, o debate do direito ao transporte, ao lazer, todos esses debates são tratados como ideias românticas. Eles não são vistos como um elemento concreto, em que o [governo do] estado e a prefeitura estão aqui para garantir para nós a paisagem. Das prefeituras, entre quem está no governo, no mercado, ninguém acredita nisso. O pensamento dominante é se isso aqui gerar dinheiro, pode. Essa é a mensagem que se dá. Já no primeiro governo Lula, qual lógica que se trabalhou? Com a seguinte perspectiva: bom, é assim que a cidade funciona. Vamos operar os mecanismos desta cidade neoliberal para que se possa produzir resultados sociais. Então, vou fazer do Minha Casa Minha Vida (MCMV) um instrumento financeiro. Como vou produzir moradia? Transformando o interesse dos bancos em produzir moradia. Como eu vou fazer com que os movimentos funcionem? Fazendo com que os movimentos sociais sejam agentes do sistema financeiro. Por meio do Minha Casa Minha Vida Entidades. Essa lógica acontece.

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O poder público não combate essa situação, da cidade a serviço da financeirização?

Quando você entra nessa sistemática, você tem um obstáculo, que é o fato de você não conseguir produzir resultados financeiros, como outros mecanismos, como o mercado imobiliário. O mercado dominante vem e diz: eu ganho mais dinheiro despejando essas pessoas, fazendo condomínio, do que com MCMV. Daí o gestor, já assimilado com essa ideia de que a cidade é financeira, concorda com essa situação. A primeira grande experiência dos planos diretores participativos resultou num ciclo de experiência de muita tentativa e erro, de planos diretores debatidos na sociedade. O que o sistema financeiro fez? Transformou de participativo em um processo alienante. Não se entende nada do que está acontecendo em uma audiência do plano diretor. Há uma série de mecanismos que beneficiam o mercado especulativo. Então, o maior entrave é toda essa dinâmica. O neoliberalismo domina as cidades brasileiras. Deveria haver um grande discurso em contraposição ao neoliberalismo nas cidades.

Mesmo a iniciativa do Minha Casa Minha Vida você percebe no marco da financeirização?

Sim, porque é algo voltado para a construção civil e para o mercado financeiro. Tanto é que MCMV teve muitas dificuldades para projetos para baixíssima renda, porque não dava resultado financeiro. Então a construtora diz: ‘eu não consigo fazer para essa classe’ e o banco diz: ‘não me interessa financiar isso’. Por isso não realiza. Aí, claro, você fez um Minha Casa Minha Vida que expandiu um pouco o sistema de financiamento da casa própria, que antes era exclusividade da classe média, você incluiu o setor neste mercado, teve um ganho, o mercado financeiro da casa própria pode se expandir, mas o entrave da cidade injusta e desigual vai se manter.

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"Aconteceu o despejo e pra onde vão essas famílias, 200, 300? É preciso pactuar com as famílias e saber para onde elas vão" / Giorgia Prates

Um estudo na época do lançamento inicial Minha Casa Minha Vida, de Pedro Arantes e Mariana Fix, mostrava que a faixa dos trabalhadores de 0 a 3 salários não foi contemplada historicamente nos programas habitacionais. Como reduzir o déficit habitacional?

A desigualdade das cidades precisaria ser enfrentada por mecanismo mais ousado de governo. Aonde essa ousadia consegue chegar? Nas comunidades tradicionais. Você não deixa que não tenha um elemento de financeirização, mas vejo como um problema, a ideia da comunidade tradicional é boa e deveria ser expandida para a ideia da classe trabalhadora, que também é uma comunidade tradicional, de baixa renda. Ela deveria ser protegida desse mecanismo de financeirização, deveria haver mecanismos similares ao que hoje existe nas comunidades tradicionais, mecanismos de consulta e participação comunitária, em alguns bairros da cidade aonde a cidade se desenvolve do ponto de vista imobiliário, o mercado se expande para bairros tradicionais da classe trabalhadora, qual a lógica da expansão para bairros tradicionais da classe trabalhadora? Cajuru, Bairro Alto, em algum momento quando mercado expande para essa região, a lógica vai ser a do dinheiro.

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Diante desse cenário da luta por moradia, existe a percepção de insuficiência das companhias mistas (Cohab, Cohapar) e do povo lutando pelo direito a ficar na terra. Como você percebe esse debate?

Companhias vão seguir lógica financeira, são sociedades de economia mista, com a métrica de receber dinheiro e fazer mais dinheiro. Na vila Formosa (e vila Canaã, bairro Novo Mundo), a Cohab não faz nada a não ser agenciar um documento de propriedade, com isso está buscando obter um lucro de 400 por cento em cima daquela ocupação – moradores implantaram estrutura, casas, e vivem lá com o próprio comércio da região que se instalou. Todos esses investimentos da infraestrutura básica foram feitos pelos moradores, a Cohab apenas agenciou documento do antigo proprietário e com isso queria transferir aos trabalhadores. Então se uma companhia de habitação é tão alienada da sua função de política, ela vai comprar por x e vender por 4x, e esse negócio já que está dando retorno para eles está valendo. Poderia ter uma função de mercado de construir casas e desse modo fomentar uma construção civil, fomentaria um mercado importante, poderia ser inclusive com cooperativas de trabalhadores, mas não faz porque considera que o resultado depois de feito não se paga. A casa que constrói lá na frente não se paga. Só faz se tiver recurso a fundo perdido, com recurso próprio ou da prefeitura, caso contrário são intervenções muito pontuais, para liberar parte de terras para empreendimentos, então vai fazer apenas intervenções muito pontuais, para fazer uma avenida, atingir um número relativamente menor de pessoas, desenvolve uma política pública de habitação geral, resultante, mecanismo de contraponto ao mercado excludente, essa política elas não fazem. E como não fazem esse contraponto, são empresas deficitárias, imensas destinadas a coisas muito pontuais. Poderia fazer muito mais coisas. A Cohab vai gerenciar aluguel social, é um desvio de finalidade, vai fazer ingerência de um recurso financeiro. Deveria ser um elemento indutor da construção civil e não um mercado excludente. Em geral, estão falidas. Não se viabilizou um negócio financeiro com a habitação popular no Brasil.

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No Paraná, houve um destaque da Comissão de Conflitos Fundiários, do Tribunal de Justiça do Paraná, que serviu como modelo na busca de canais em conflitos fundiários no campo e na cidade. Como você percebe o papel da comissão, em vista de tudo o que temos falado?

A cidade neoliberal é tão sádica, produz resultados tão ruins, o aumento da população em situação de rua, aumento da população vivendo em situações precárias, a própria agressão ao meio ambiente, já que a população, sem alternativas, vai buscar lugares disponíveis, inadequados do ponto de vista ambiental, então tudo isso choca. A cidade é neoliberal, mas as pessoas não são neoliberais, não se conformam com essa ideia, e sentem a injustiça. Há uma injustiça social. Sensação que sempre foi o motor que mobilizou a força política contra o neoliberalismo, vamos construir uma cidade que não é neoliberal, isso tem força, para ganhar uma eleição, para produzir uma lei, pra pressionar o governo. Essa base social contra a injustiça social existe e sente essas injustiças, e quando você teve a pandemia essas injustiças se tornaram mais gritantes, a ponto de o STF e iniciativas judiciais colocarem um freio nessa injustiça, são um susto da instituição diante da injustiça social. Então, desembargadores, juízes, ministros, ainda que operem nessa lógica, financeira e neoliberal, mas aqui ultrapassa os limites. Então, me parece que essas comissões cumprem um papel importante, de ser a voz dessas instituições contra a injustiça social.

Fonte: BdF Paraná

Edição: Lia Bianchini