Uma das cenas mais emblemáticas do desfile de 7 de setembro este ano em Brasília foi o aperto de mãos coletivo entre o presidente da República, o ministro da Defesa e os três comandantes das Forças Armadas. Esse gesto traduz com perfeição a estratégia adotada pelo governo Lula 3.0 na sua relação com os militares: a conciliação. As mãos entrelaçadas e os sorrisos para as câmeras seriam a materialização dessa diretriz governamental.
Há menos de um ano, a disposição dos comandantes das três forças armadas em relação ao presidente Lula e ao processo eleitoral que o elegeu era outra. Em novembro de 2022, os comandantes militares divulgaram uma nota na qual defendiam as manifestações em frente aos quarteis que contestavam o resultado das eleições presidenciais. Em dezembro, eles discutiram a possibilidade de deixarem os cargos antes da posse do presidente Lula para mostrar o descontentamento com o novo governo.
Para lidar com essa situação, Lula adotou o velho script de todos os presidentes da República desde a criação do Ministério da Defesa: indicou um político conservador para comandar a pasta e buscar algum tipo de acomodação com as Forças Armadas. Nem a participação de militares na intentona de 8 de janeiro – que está sendo apurada pela polícia e pelo Legislativo – nem os tanques do Exército apontados para a polícia do Distrito Federal naquela noite foram capazes de mudar esse quadro. O orçamento do Ministério da Defesa continua sendo um dos maiores da União e a previsão é de haver um maior investimento na área, através do Plano de Aceleração do Crescimento, que destinou R$ 52 milhões ao setor de defesa.
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Ao que tudo indica, o governo Lula 3.0 vai repetir os governos Lula 1.0 e 2.0 e buscar uma acomodação com os militares por meio de uma generosa liberação de verbas para os programas que as três forças acreditam ser prioritários. No entanto, nos vinte anos que separam o primeiro governo Lula do terceiro ocorreram retrocessos importantes no padrão de relações civis-militares no Brasil que não podem mais ser desconsiderados.
Após uma década de recessão democrática, houve um processo de remilitarização do Ministério da Defesa, com a presença cada vez maior de militares nos principais cargos da pasta, inclusive no de ministro. Concomitantemente, houve um processo de politização das Forças Armadas, cujo ponto de inflexão foram os tuítes do então comandante do Exército, o general Villas Bôas, em 2018, sobre o julgamento de um habeas corpus para o presidente Lula no Supremo Tribunal Federal.
A remilitarização do Ministério da Defesa e a politização das Forças Armadas refletiram negativamente na condução da política de defesa nacional. A Lei Complementar nº 136 de 2010 nunca foi observada em sua integralidade. Ela determina que o poder executivo atualize a Política Nacional de Defesa, a Estratégia Nacional de Defesa e o Livro Branco de Defesa Nacional a cada quatro anos. Determina também que o Congresso Nacional aprecie esses documentos antes da aprovação do presidente da República. Todavia, o processo de atualização e apreciação dos documentos de defesa de 2012 não foi concluído no prazo previsto e as minutas de 2016 foram apreciadas em uma sessão secreta da Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência e não foram sancionadas nem pelo presidente Temer e nem pelo último governante. As minutas de 2020 ainda aguardam a aprovação presidencial.
Em democracias plenas, o Ministério da Defesa é o ponto nevrálgico do controle civil democrático sobre as Forças Armadas. No Brasil, os militares praticamente monopolizam essa pasta e isso tem implicações evidentes na metodologia de confecção dos documentos normativos do setor de defesa. A Política Nacional de Defesa e a Estratégia Nacional de Defesa começam a ser revisadas pelo Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas, chefiado por um oficial general, e o Livro Branco é revisado em um primeiro momento pela Assessoria Especial de Planejamento, que também é chefiada por um oficial general. Os grupos de trabalho que estão realizando a atualização desses documentos no governo Lula 3.0 são formados majoritariamente por militares da reserva e da ativa. A participação dos demais ministérios é muito marginal e o debate com a sociedade civil é muito limitado.
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O pouco debate público que foi feito sobre a política de defesa nos últimos anos ficou circunscrito à questão do orçamento do Ministério da Defesa e da importância dos projetos estratégicos das Forças Armadas. Todo ano, o ministro da Defesa e os comandantes das três forças participam de audiências no Congresso Nacional para pedir mais dinheiro para os seus projetos. Nessas ocasiões, parlamentares mais à esquerda do espectro político recuperam a tradição desenvolvimentista das Forças Armadas para elogiá-las e os parlamentares da extrema direita aproveitam a oportunidade para difundir as suas ideias militaristas. A discussão sobre a peça orçamentária que é apresentada pelas Forças Armadas e para as Forças Armadas tem se resumido a isso nos últimos anos.
Esse estado de coisas é muito preocupante, porque uma política de defesa enviesada, elaborada majoritariamente por servidores militares, está em desacordo com o princípio de pluralismo político presente na nossa Constituição. É preciso que os ministérios dos Direitos Humanos e da Cidadania, das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Povos Indígenas participem de uma forma mais ativa da elaboração da política de defesa nacional para que essa política pública de fato espelhe a pluralidade e a diversidade do povo brasileiro. Até o momento, a política de defesa nacional espelha somente a visão da caserna a respeito da Defesa Nacional e de como o povo brasileiro deve ser protegido.
Se o processo de elaboração dos documentos de defesa não for precedido de um amplo debate com a sociedade civil e de uma maior participação de outros ministérios, nós não veremos mudanças substantivas no padrão de relações civis-militares no Brasil em um curto prazo.