Há um mito fundante do liberalismo que advoga que prover acesso universal à educação reduziria as desigualdades sociais. Esse mito manipula dados e discursos e faz crer que é possível um capitalismo mais igualitário e que o sucesso profissional ou a ascensão social derivaria da possibilidade de um indivíduo estudar. Não há dúvidas quanto à importância do acesso à educação formal, como pressuposto de cidadania.
Contudo, muitos estudos demonstram como a desigualdade não é reduzida, ou é reduzida muito pouco, mesmo com altos índices de educação. A desigualdade seria, pois, estrutural no capitalismo. No Brasil, uma pesquisa muito importante sobre o assunto é "Educação, desigualdade e redução da pobreza no Brasil" do IPEA, podendo ser acessada aqui.
Há um segundo mito, do liberalismo na esfera cultural, de que é preciso educação para as pessoas produzirem e consumirem cultura. De fato, há diversos índices que mostram aumento em vendas de livro, idas ao teatro, exposições, entre outros, quando a população tem um maior nível educacional. Contudo, aqui há um equívoco em somente considerar “consumo cultural” a fruição de obras ditas artísticas. Se ampliarmos a compreensão sobre o que é consumir cultura, podemos verificar que enorme parcela da população já a consome e faz isso a despeito de sua escolaridade. Consome cultura quando assiste a novelas, quando vai a um baile sertanejo ou quando assiste a uma paixão de Cristo.
Poderia haver uma relação direta portanto, somente entre educação e consumo do que seria, por assim dizer, “alta cultura”. Mas se hierarquizamos uma cultura como boa ou superior, damos um passo para não entender absolutamente nada sobre hegemonia e luta de classes através da cultura.
Quanto à produção de cultura, há uma outra realidade. As camadas populares não produzem ou produzem muito pouco cultura. Para produzir cultura, o acesso à educação não é condição. Mais escolaridade não produz mais ou melhor cultura, em sentido amplo.
O que se produz, no máximo, são mais produtores profissionais, que podem produzir mais um tipo de cultura, contudo estaríamos recaindo na hierarquização anterior. Dentro do sistema capitalista, também a produção artística é criada e circula enquanto forma mercadoria – produzida por uma categoria profissional especializada, e filha da divisão do trabalho –, interessa saber como os trabalhadores comuns podem produzir mais cultura, com autonomia.
Como podem contar suas histórias, criar suas festas, inventar danças, filmar seus documentários, fazer poesia, entre outras mil possibilidades, mesmo que de modo não profissional. Se somente educação fosse necessária, não haveria Carolina Maria de Jesus, não teríamos Cartola ou Elza Soares, nem um mestre Vitalino. Quais seriam, então, as condições necessárias para o povo produzir mais cultura?
É preciso antes compreender o que faz com que as pessoas não produzam cultura, uma vez que manifestações culturais são próprias de todos os seres humanos, e não fruto apenas de especialistas, mestres ou gênios. Podemos dizer que três condições prejudicam os trabalhadores de serem sujeitos culturais:
1) A alienação de sua identidade produtiva, criada pela venda da força de trabalho e sua exploração fragmentada, pelos capitalistas; 2) ausência de tempo livre para criação; 3) falta de meios de produção (como câmeras, computadores, ferramentas, instrumentos musicais, etc.).
Essas três condições são criadas pelo capital. Os trabalhadores e trabalhadoras vivem em uma era em que estão, em termos físicos, esgotados; em termos de perspectiva de vida, inseguros e precarizados; e, em termos subjetivos, vivem uma situação de completa heteronomia (o oposto de autonomia). Ou seja, além de não terem tempo para gozar a vida, refletirem sobre ela ou se expressarem, esse trabalhador mal sabe como vai ser o dia de amanhã, se conseguirá comer, se transportar ou morar sob um teto.
E finalmente, doutrinado por uma vida de venda de força de trabalho, não se constitui como um ser autônomo, não sabe decidir, escolher, pensar por conta própria, segue uma vida robotizada num ciclo fabricado de consumo-desejos-consumo. É antes de tudo um “reprodutor” de coisas e não um “criador”.
A incapacidade de criar é filha da alienação do trabalho. E a falta de tempo e a de meios para produção solapam as possibilidades de criação cultural dos indivíduos do povo. Portanto, para existir criação e diversidade na produção de cultura, não basta educação. Se quisermos que a classe trabalhadora produza cultura, de maneira consciente e autônoma, precisamos criar condições que privilegiem isso: acesso a meios de produção; aumento de tempo para criação; e processos estruturais e educativos para “desalienação” dos trabalhadores.
Estamos muito distantes de ações concretas nesse sentido, sejam ações públicas ou de organizações de classe. Poderíamos num exercício de imaginação pensar políticas como bolsa-artista (nos moldes de um bolsa-atleta), “Centros de produção cultural” públicos, com estrutura para a criação e experimentação (e não somente para fruição, como são hoje os centros culturais), em diversas artes; e até mesmo mudanças estruturais, como a redução da jornada de trabalho incluindo na divisão clássica: descanso-trabalho-lazer, também o tempo da criação cultural. Quanto à alienação produzida pelo capital, não há outra solução que não a superação da atual ordem produtiva.
Nesse sentido, ficam claras as condições estruturais necessárias para produção de cultura pelo povo. Onde isso aconteceu de alguma forma, mesmo que de modo precário, ela floresceu, como com os “malandros” sambistas dos morros cariocas ou poetas semi-analfabetos no sertão do Pajeú entre muitos outros exemplos. E quando isso acontece, é apesar do sistema e fruto de um esforço enorme, por parte desses produtores.
Acreditar que somente a educação pode contribuir para a criação na cultura é mistificador. E acaba por negar a condição “anticultural” do capitalismo. Entender como ele atua é fundamental para a libertação cultural dos trabalhadores, sem hierarquizar a produção artística.
* Guilherme Leite Cunha é produtor e crítico cultural. Criador da revista de crítica de arte DAZIBAO, é mestre em Estética e história da arte pela Universidade de São Paulo, e pesquisa as relações entre cultura e política.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rodrigo Durão Coelho