Sinto uma grande dificuldade em fotografar a Cracolândia. Há, antes de tudo, uma justificada resistência das pessoas em terem suas imagens expostas. Ter o rosto vinculado ao fluxo pode resultar até em um processo penal. Mas, mesmo depois de quebrar essas primeiras camadas de autoproteção e desconfiança, os meus incômodos permanecem.
A maior parte das câmeras que chega a essa parte do centro de São Paulo parece ter os quadros já prontos. O dedo aperta o botão apenas para confirmar as sensações que pulsam entre o chocante e o exótico. É estreito o espaço para uma troca genuína. Para a escuta de qualquer voz dissonante do coro ensurdecedor do senso comum. A produção viciada por décadas de fotografias e vídeos se impõe. É muito difícil sair dessas imagens.
Por isso, para realmente enxergar a profundidade dessas cenas – que vão muito além do uso de drogas – é fundamental lembrar que todo sobrevivente é criador. É por isso que Lucas chama, aos berros, a Cracolândia também de umbigo do mundo. Entre trocas e vindas, uma mão cheia de moedas pode se tornar tudo. Mesmo assim, não faltam risadas na calçada. Até nos dias em que se caminha quarteirões por um copo plástico de água quente.
Olha.
Olha de novo.
Olha por mais tempo.
Olha até que o máximo chegue.
Olha até quando não houver máximo.
Até não caber. Até não caber em casa, em um apartamento, carro, uber, emprego.
Lanchonete
Sorveteria
Cinema
Estabelecimento.
Olha até não caber em si.
Aqui, exorcizo as homenagens a assassinos - canetudos sanguinários - e honro a memória e a vida de nossa própria gente. Jamais me envergonharei de nossa ancestralidade.
Os que lembramos, os que temos memórias... loucos contemporâneos, descompensados, inadequados, habitantes das terras tantas vezes roubadas, violadas, exploradas e desnudas, sabemos da linhagem ancestral que pulsa em nosso espírito. A modernidade jamais alcançará a complexidade, a densidade e a organicidade do que é ancestral.
A condição de refúgio, expatriação, desterritorialização, diáspora, migração e trânsito arranca povos de grande parte de suas fontes de memória [os rios, as casas, as árvores, pedras, cachoeiras, mares, vizinhos, parentes, amigos, entidades e seres encantados e do mato], mas não logra aniquilar as cosmologias. Na cidade, onde corretamente se diz do abatedouro do orgânico, nossas magias soam distópicas. Acham concreto, esgoto, lixeira, frio e fome. Nesse desterro, encontramo-nos. Transcendemos, mesmo pelo avanço violento da modernização, e vibramos até o êxtase, a catarse e reencarnamos em afeto.
A terra arrasada e estéril seca sentidos também, porém olhos, ouvidos e corações sensíveis virão, ouvirão e sentirão. Repovoar o imaginário e reencantar o mundo pressupõe girar a roda da percepção: olhar para o trauma e mergulhar na vida.
Somos um acúmulo de memórias soterradas, sorrindo para serem cantadas. Seguimos dançando sob o fogo do sol ancestral e sabemos que escrever, falar, cantar, dançar, correr, sorrir e chorar são maneiras de sa[n]grar.
As suas pegadas nessa cidade reluzem ouro. Mas, de Petrolina a São Paulo, andando, são duas semanas. Não haverá nenhuma carona errada no caminho? Em uma distância assim, uma folha de papelão se torna chumbo. Sei que sua carroça não é também encantada. A feitiçaria só acontece quando mexe o corpo, toca as amarras da realidade. Só vemos marcas e traços de tinta. É por isso, que nunca se rendeu ao egoísmo de um acervo. A dança faz a vida.
Índio Badaróss, peço licença. Sua imagem explode em tantos lugares, fragmentos, dimensões, que juntar palavras para dar sentido é constrangedor. Mas como você mesmo disse “eu sou como o vento, uma mente perdida no tempo”, “que cor é o vento?”, “que direção ele tem?”. Eu também não sei. Na imagem, deitado sobre sua carroça – uma dentre as tantas que já teve e cuida –, suas cores estão mais pro azul, branco, verde e amarelo. Ao fixar meus olhos em você, lembro de outra frase sua que anotei: “Ainda sou uma criança andando nessa terra”, e ironicamente a mistura da fotografia com suas palavras me remetem ao clichê “deitado eternamente em berço esplêndido”. E tudo isso me faz pensar que você é filho de uma nação, Badaróss.
Badaróss, você é filho de uma nação.
Um filho desprezado. Humilhado. Julgado. Discriminado. Abandonado. Violentado. Eu gostaria muito que essas palavras todas fossem lidas com a devida pausa e significado. Desprezado. Humilhado. Julgado. Discriminado. Abandonado. Violentado.
Um filho que ainda assim escolhe as tintas, os pincéis e as telas para não morrer. Um filho conhecido como o Basquiat da Cracolândia de São Paulo, que tem nas árvores o melhor amigo e nos insetos a memória da infância em Pernambuco.
Um filho que diz: “mesmo que você esteja no lixo, não se despreze, se zele, não se entregue.”
Um “gigante pela própria natureza”.
Mesmo que seu pai não o veja.
Índio Badaróss.
São 7 anos de convivência com Cícero Rodrigues. Número cabalístico. Não poderia ser diferente. Mais conhecido por sua assinatura como pintor , Índio Badaróss, o pernambucano que vive em um mundo próprio e andante, só que sem armadura brilhante e um escudeiro gordinho. Badaross segue pelas trilhas do absurdo, levando muito mais que recicláveis, mas relações, histórias, nóias, brincadeiras.
“ Ei, Ei, escuta só...”, e sim, eu escuto e escutei muito o Badaross. Um autor de si mesmo, que usa a própria pele como suporte. Entoando o ritmado sotaque, que vai do trote à galopada. Cavalhada, embolada da boa, no coco ou cocado, pipado, Badaross cavalga com sua carroça maculada em nuvens e fluxos.
Foi durante o projeto Casa Rodante, em 2016, uma época ainda colorida, onde o território-luz era um canteiro de flores e ervas aromáticas, shows de Jazz, Samba de Tambor. E os Muros? Só para grafites em cor e lambes com mensagens questionadoras. Mas também de amor, todos correndo juntos, harmonizando em fluxos e amenizando a dor. Era arte e cultura, junto com a Redução de Danos, cuidando de pessoas, promovendo encontros e afetos, mesmo que no torpor.
Encontros tão efêmeros quanto oníricos, cheios de tintas, substâncias, músicas, danças, cores. Boa parte dessa carreira pintora, é na verdade sua correria cotidiana na velocidade paralela do bairro Luz, Cracolândia.
Assim, começou a se deparar com tintas, molduras, quadros velhos. Guardava tudo no seu mocó. A esquininha em que morava, era uma galeria à céu aberto. Tal como sua vida.
Badaróss absorve na pele indígena e nordestina, na mente, na alma, a tinta. Arte e vida em um território de guerra e morte. Outros como Montanha, Patolino, Cauwex, Denis e tantos outros representantes da arte e vida desse mesmo chão, não tiveram a mesma sorte. Que suas mortes não sejam em vão. Viva Badaróss!
*Algumas citações foram retiradas do filme “isto não é um cachimbo – versão Badaróss”, de Cícero Rodrigues “Badaróss”, produzido pelo coletivo 308, edição e fotografia do cineasta André Okuma; do vídeo “Índio Badaróss, o artista que registra a Cracolândia, volta para Pernambuco após 10 anos”, publicado pelo Jornalistas Livres.
e também da peça Epidemia Prata, da Cia. Mungunzá de Teatro, com direção de Georgette Fadel (2018)
A Craco Resiste
*Aline Yuri Hasegawa é mãe, pesquisadora e produtora. Integra o time misto de futebol de várzea União Lapa que, juntamente com o Coletivo Rosanegra ADF e A Craco Resiste, promove ação de redução de danos com futebol no Fluxo. Militante d’A Craco Resiste.
**Daniel Mello é militante d’A Craco Resiste e faz parte da Associação Birico. É autor do livro Gargalhando Vitória - poemas da cracolândia (Editora Elefante)
***Ricardo Paes Carvalho - educador social de rua e jornalista. Militante d’A Craco Resiste.
**** Verena Carneiro: jornalista, pós-graduada em jornalismo literário. Redutora de danos pela Craco Resiste e integrante dos times mistos de várzea de São Paulo União Lapa e Rosanegra ADF -, ambos com atuação política e social por meio do futebol.
*****Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rodrigo Durão Coelho