Mais de uma hora depois, o Rosário continuava lá, contando 'as virtudes que a pinga traz'
Há pouco tempo eu falei aqui de um ídolo da minha infância, o Rosário. Era um poeta analfabeto da minha terra. O que não contei é que pra ele declamar seus poemas, que chamava de décimas, quase sempre pedia em troca uma dose de cachaça.
Um dia, mal o vendeiro Luiz, que era também congregado mariano, falou que não gostava de vender pinga pra quem já estava bêbado, o Rosário entrou cambaleando em sua venda, pôs uma nota ensebada no balcão e pediu uma pinga, mas não foi atendido.
— A pinga acabou — disse o vendeiro.
Ele fez uma cara triste, debruçou no balcão e, quase chorando, declamou:
“Cachaceiro entrô na venda,
sentiu mágoa e chorô,
quando o vendeiro disse
que a cachaça acabô”.
Ó, que notícia cruel,
Ó, que notícia tirana!
Num sei pra que tanto engenho,
num sei pra que tanta cana!”
Aí, olhou pra mulher do vendeiro, fingiu que ia cair e continuou:
“Naquele momento
foi me dando um acidente,
meus purso foram fartando,
pro chão eu ia rolando”.
Ela ficou comovida e, antes que ele continuasse, enfiou a mão apressadamente debaixo do balcão, tirou uma garrafa de “Levanta e Cai”, conhecida como “pinga do Ventura”, e falou para o poeta:
— É brincadeira do Luiz... O Ventura entregou mais hoje.
Sem perder o pique, o Rosário continuou:
“... Mas como é bondosa,
veio a muié do vendeiro,
disse que é tudo mentira,
que o Ventura tá destilando”.
Bebeu a pinga que ela serviu e sapecou seus versos finais, com cara de enorme prazer:
“Ó, dona quanta bondade,
isso é uma gentileza,
até a minha perna já tá
criando um pouco de fortaleza”.
Daí pra frente, cada freguês queria pagar mais uma dose pro Rosário, em troca de alguns versos de louvor à cachaça, para desgosto do vendeiro que não gostava de bêbados.
Mais de uma hora depois, o Rosário continuava lá, contando “as virtudes que a pinga traz”:
“Um dia eu bebi muita pinga
e ela fez de mim um bacharel.
Me tacou dentro dum valo,
entremeio dois cascavel”.
Levantei de madrugada, molhadinho de sereno,
então a cachaça me disse: ô vagabundo,
cê inda tá com medo?
Vai embora, cascavel num tem veneno”.
*Mouzar Benedito é escritor, geógrafo e contador de causos. Leia outros textos.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Douglas Matos