OPINIÃO

Fortaleza e o vício colonial do apagamento do povo preto no Ceará

Porque Raimundo passava sempre pelo mesmo lugar? Porque fazia questão de não esconder seu corpo do ódio?

Brasil de Fato | Fortaleza (CE) |
Vídeo-performance sobre a história de vida de Raimundo, mais conhecido como “burra preta” - Ceará Criolo

Quem de nós já não ouviu que no Ceará não tem negros? Essa narrativa que muitas pessoas apresentam no senso comum vem, na verdade, do racismo e na forma como essa violência estrutura a percepção da nossa identidade. Além de nos apagar fisicamente, através de chacinas, descaso com a saúde pública, difícil acesso a emprego, as instituições promovem o apagamento de nossa memória histórica, das contribuições de nossos ancestrais para a sociedade que vivemos hoje. 

Fortaleza tem especificidades que incidem de maneira articulada com a forma pela qual tratamos nossas referências históricas. Alguns ancestrais, tais como Francisco José do Nascimento, Dragão do Mar e, mais recentemente, Preta Tia Simoa, são lembrados/as e reconhecidos/as pela sua importância demarcada em processos de resistência como a Revolta dos Jangadeiros, que marcou a abolição da escravidão na província, antes inclusive da abolição em nível nacional. Entretanto, somos condicionados a esquecer outras histórias fundamentalmente importantes e que contribuíram para a resistência e demarcação da existência do negro em nossa história. 

Uma delas trata-se da história de Raimundo, conhecido como “Burra Preta”, ficou conhecido pela forma como reagia quando gritavam seu apelido em plena Praça do Ferreira. Retratado pelo memorialista Zelino Amada em seu texto “Um tal de Burra Preta”, Raimundo marcou o cotidiano da praça entre os anos 70 e 80. A maneira como sua história é contada, como é descrito, expressa uma visão compartilhada sobre os corpos negros em Fortaleza. 

Sua importância para a história negra de Fortaleza se dá pela sua imponência, personalidade, pois, segundo a relatos, Raimundo não era necessariamente agressivo, mas debochava das pessoas que o chamavam pelo apelido, promovendo verdadeiras performances em meio aos gritos “Burra Preta! Burra Preta”, experimentando outras formas de resistência e existência. Porque Raimundo, apesar dos gritos, passava sempre pelo mesmo lugar? Porque fazia questão de não esconder ou desviar seu corpo do ódio?

São inúmeros relatos difundidos na internet, charges de jornais da época e mais atuais que retratam seu corpo e sua imagem sob a ótica da animalização. A história de Raimundo Preta evidencia como a nossa ancestralidade local é “esquecida” e marginalizada, no sentido de não ser discutida e difundida, principalmente quando se tratam de corpos pretos e LGBTQIA+. Para além de estudo acadêmicos, precisamos resgatar nossas histórias e dar dignidade a essas memórias. 

A naturalização do seu apelido, o desinteresse da comunidade acadêmica em investigar sua trajetória e a forma como seu corpo é descrito e narrado apontam evidências fortes que o racismo condiciona o conhecimento que temos de nossas histórias e limita o acesso que temos à memória dos nossos antepassados. Nesse sentido, a história de Raimundo aponta fraturas na visão colonial de Fortaleza sobre os corpos negros e nos mostra, além do  tempo e do apagamento, a potência de nossa (re)xistência.

*Sociólogo, doutorando em Sociologia pela Universidade Estadual do Ceará

*Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

 

Fonte: BdF Ceará

Edição: Camila Garcia