NOVA MISSÃO NO HAITI

Haiti é vítima de caos orquestrado que o impede de definir seu próprio rumo, diz dirigente político

Por causa disso, Camille Chamers não vê com bons olhos a ideia de mais uma intervenção internacional

Brasil de Fato | Botucatu (SP) |
O haitiano Camille Chalmers é dirigente do partido Rasin Kan Pèp la, reagrupamento socialista por uma nova iniciativa nacional - Daniel Jatimliansky

O Haiti já foi autosuficiente em cereais. No começo dos anos 1970, produzia praticamente 100% do que necessitava. Cinco décadas depois, o país compra dos Estados Unidos 82% do arroz que sua população consome. A causa são as políticas de ajuste estrutural impostas ao país, que estimulam a importação e impedem que o Estado financie a economia campesina. Entre as consequências, está o desemprego, que hoje atinge 70% da população.

A avaliação é do haitiano Camille Chalmers, dirigente do partido Rasin Kan Pèp la (reagrupamento socialista por uma nova iniciativa nacional). Segundo ele, o Haiti é vítima de um “caos orquestrado por organizações imperialistas”, que querem seguir executando seus interesses comerciais. Para isso, precisam impedir que o povo haitiano conquiste sua autodeterminação e escolha um rumo de desenvolvimento próprio.

Por causa disso, Chalmers é contrário a toda e qualquer intervenção internacional no Haiti, como a que foi aprovada nesta semana pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. “Já sofremos várias intervenções. Cada vez que se faz isso, a situação piora”, diz ele. “A situação atual é resultado de uma intervenção imperialista”, completa, referindo-se à missão de paz liderada pelo Brasil de 2004 a 2017.

O dirigente político, que falou com o Brasil de Fato por videoconferência desde Porto Príncipe, cita uma lista de atividades econômicas nas quais essa lógica se manifesta. “A partir do início do século 20, o imperialismo investiu para estruturar a indústria açucareira em Cuba e na República Dominicana, e definiu para o Haiti a incumbência de fornecer mão de obra barata para essas indústrias. Para manter isso, é importante que as condições de emprego, os níveis sociais sejam péssimos”. Ele menciona também que o Haiti é estratégico pela existência de recursos essenciais para empresas transnacionais, como o ouro que se encontraria na região norte do país.

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“Muitos dizem que o Haiti é rico em metais preciosos, mas nada disso ficou provado até hoje. É uma zona cinzenta, que faz parte de um discurso ideológico”, pondera o professor Ricardo Seitenfus, doutor em Relações Internacionais, ex-representante da OEA no Haiti (2009-2011) e autor de livros sobre o país.

Quanto à queda na produção de arroz, houve de fato um estímulo dos Estados Unidos para que o Haiti reduzisse tarifas e assim estimulasse a importação de arroz produzido no estado do Arkansas — o ex-presidente Bill Clinton (1993-2001) inclusive fez mea-culpa disso publicamente, reconhecendo como foi prejudicial para o Haiti. Essa preferência pela importação, ao reduzir as oportunidades de trabalho no campo, provocou uma migração para as cidades, o que acabou virando “uma bomba, com favelas pra todo lado”, afirma Seitenfus. “Porém, nada foi feito [pelo Haiti] desde então para parar com isso”.

Além do nível altíssimo de desemprego, o Haiti amarga recessão econômica há cinco anos consecutivos, 50% de inflação anual e uma população com poder aquisitivo baixíssimo, dados que ilustram o cenário de grave crise vivida pelo país, cujo elemento mais nítido e midiático no momento é a violência desenfreada. O Haiti vive um colapso das instituições e grande parte da capital está sob controle de gangues. Ao menos 2 mil homicídios e mil sequestros foram registrados apenas no primeiro semestre de 2023, segundo estimativas da ONU.

Outro exemplo de como o governo dos Estados Unidos contribui para esse cenário, na visão de Camille Chalmers, é o fato de Washington ter feito “todo o possível para combater” o PetroCaribe, programa de venda de petróleo criado por Hugo Chávez quando presidia a Venezuela (1999-2013) e que chegou a fornecer a matéria-prima para 16 países em condições financeiras “excepcionais”.

Aqui, novamente, Seitenfus valida o argumento histórico, mas com outra ressalva que coloca parcela da responsabilidade no colo dos haitianos. “É verdade que os EUA tentaram impedir [a concretização do PetroCaribe]. Há documentos que mostram essa resistência. Mas o problema é que 3 bilhões de dólares foram desviados”, conta o professor. “Um dia isso terá de ser acertado com a Venezuela."

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Fracassos de Washington

Os EUA, na avaliação de Seitenfus, tem dois grandes fracassos em termos de política externa no Caribe: Cuba e Haiti. O primeiro, por causa da Revolução Cubana, que perdura apesar do embargo imposto por Washington. O segundo “paga o preço por estar próximo a Cuba”, diz ele. Jean-Claude Duvalier, o ‘Baby Doc’, que comandou o Haiti de 1971 a 1986, era um ditador, porém um ditador aceito pelos EUA porque “não se podia aceitar uma segunda Cuba no Caribe”. E, assim, “fechou-se os olhos para os problemas do Haiti”.

Camille Chalmers diz que os EUA querem manter o controle sobre a política haitiana porque temem uma possível aliança entre Cuba, Venezuela e Haiti, “que produziria uma mudança nas relações de forças no Caribe”. Como exemplos de como tal aliança poderia se configurar, ele menciona o já citado PetroCaribe, que o governo venezuelano demonstrou interesse em reativar no ano passado, e a atuação de médicos cubanos em áreas remotas do Haiti, que reduziu indicadores de mortalidade materna e representa um exemplo do que poderia ser “uma verdadeira solidariedade com o Haiti”.

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Mas isso não vinga, segundo ele, porque além da pressão internacional, existe a cumplicidade de gestores que, considera, são designados por missões internacionais, sem participação da sociedade. Seria o caso do atual governo do primeiro-ministro Ariel Henry, que assumiu após o assassinato de Jovenel Möise, em 2021.

“Toda a atual administração política no Haiti deve ser considerada ilegal do ponto de vista constitucional”, enfatiza Ricardo Seitenfus. Isso porque, embora a Constituição estabeleça que, em caso de morte do presidente, o primeiro-ministro deve exercer o poder até a eleição de um novo governante, Henry não chegou a ser empossado nem aprovado pelo Parlamento.

Contudo, diz ele, se há alguém com um mínimo de legitimidade para governar o Haiti, “este é o Ariel Henry, pois foi escolhido para o cargo de primeiro-ministro pelo presidente assassinado”. E este, por sua vez, havia sido eleito democraticamente.

Edição: Leandro Melito