A pandemia acabou, mas nos Estados Unidos ela deixou uma marca que perdura até hoje: a desigualdade se tornou mais visível e mais latente, sobretudo nas grandes cidades.
Recentemente, Nova York, ou melhor, a ilha de Manhattan, foi apontada como a mais desigual do país. O problema, no entanto, também atinge outros centro urbanos importantes, como Miami e Atlanta.
“Essas são cidades onde há dois tipos de trabalho. Um que oferece bons salários, benefícios, horários estáveis, e outro com salários baixos e condições inseguras”, diz Omar Ocampo, representante da Inequality.org que conversou com o Brasil de Fato sobre o tema.
“Não há motivos para termos trabalhos com baixos salários, especialmente visto que os trabalhadores são quem produz a riqueza, e eles são o motivo de negócios e empresas serem lucrativos. Os líderes empresariais sempre reclamam que eles não podem aumentar o salário dos trabalhadores, mas ao mesmo tempo estão dando pagamentos imensos para si próprios e para os acionistas."
De fato, a disparidade de renda nessas cidades é tremenda. De acordo com dados da Social Data, analisados pelo New York Times, em Manhattan, os 20% mais ricos têm uma renda familiar anual de mais de US$ 550 mil. Do outro lado, os 20% mais pobres não chegam a US$ 11 mil por ano, uma renda que é 53 vezes menor.
Um problema antigo, mas que piorou
A questão da desigualdade nos EUA não é uma novidade. Ainda que a pandemia represente um salto, esse é um padrão que vem sendo notado pelo menos desde meados dos anos 1970.
“A desigualdade vem crescendo nos Estados Unidos nos últimos 50 anos, é uma das sociedades mais desiguais no mundo industrializado. Acho que isso é uma consequência do que eu chamaria de 50 anos de contrarrevolução, pelo qual o país passou, onde o neoliberalismo se tornou a ideologia dominante”, aponta Omar.
De forma mais acentuada, nos anos 80, o governo republicano de Ronald Reagan travou uma guerra contra os trabalhadores. O Estado atuou contra os sindicatos, enfraquecendo as organizações que garantiram ganhos à classe média nas décadas seguintes à Segunda Guerra Mundial.
Esse momento histórico é fundamental para entender a desigualdade hoje, pelo menos de acordo com David Jacobs, professor emérito de Sociologia da Universidade Estadual de Ohio e especialista no assunto, que conversou com a reportagem.
Super ricos X classe média: a distância que mais cresce
“Existem duas lacunas que devemos observar”, aponta Jabos. "Uma é entre os pobres e a classe média, a classe trabalhadora. O outro é entre a classe média e os muito ricos. Nos EUA, há muito tempo atrás, quando fiz minha dissertação baseado em dados de 1960, os estados mais desiguais eram estados como Mississippi, Alabama e Louisiana, o que representava a diferença entre os mais pobres e a classe média”.
Atualmente, os estados mais desiguais do país são Nova York, Connecticut e Califórnia, locais com maior presença dos chamados super ricos. “Agora ainda existe diferença entre os mais pobres e a classe média, mas o que cresceu enormemente desde 1980 foi a diferença entre a classe média e os muito ricos”, aponta o pesquisador.
O problema, segundo Jacobs, pode ser resolvido, mas falta vontade política.
“A desigualdade é baseada em decisões políticas que a sociedade toma” diz o pesquisador. "Não há dúvidas de que, por exemplo, durante os anos da Covid, existiu um grande crescimento dos auxílios destinados às crianças, e a pobreza infantil caiu imediatamente. Então, não há dúvidas de que aumentar os auxílios financeiros para os mais pobres vai diminuir a distância entre eles e a classe média”.
A desigualdade é um perigo para a democracia
A desigualdade de renda gera também uma desigualdade política. Quem tem mais dinheiro, influencia mais nos rumos do país. Uma realidade que não existe apenas nos EUA, mas em todas as sociedades capitalistas.
“Pesquisas demonstram como os ultra ricos têm capacidade de exercer sua influência política a partir de doações de campanha e do lobby”, comenta Omar Ocampo, “e isso faz com que as instituições democráticas não atendam os eleitores, basicamente erodindo a confiança da sociedade na democracia. E quando não se tem democracia, não se tem liberdade. Portanto, quão maior é a desigualdade, menor é a liberdade”.
David Jacobs vai além. Para o professor, que concorda que a desigualdade é um perigo para a democracia, ela pode também explicar parte do apoio recebido por Donald Trump na sociedade estadunidense.
“Pelo menos parte do apoio de Trump, provavelmente vem da frustração daqueles próximos da base, ou no meio, nos rincões do país, de onde as fábricas foram embora totalmente, ou onde não se consegue mais um bom trabalho apenas com um diploma do ensino médio. Muito dessa frustração tem levado ao apoio a alguém que é fundamentalmente antidemocrático”, conclui o professor.
Edição: Leandro Melito