Não existe assunto mais delicado para a esquerda do que a segurança pública
Olá!
Com Lula em repouso temporário, o país já parece sem comando: crise na segurança pública, violência política e conflito entre poderes. Leia esta edição ao som de Caetano Veloso e Gilberto Gil.
.Faroeste. Não existe assunto mais delicado para a esquerda do que a segurança pública. Mas há episódios como os sucessivos casos de violência da polícia baiana e o assassinato de três médicos no Rio que obrigam a se quebrar o silêncio. Somente em setembro, 56 pessoas foram mortas pela polícia da Bahia, quase duas por dia, e a corporação ultrapassou o Rio de Janeiro no ranking nacional de estados onde a polícia mais mata. O caso é emblemático de que quando a esquerda não sabe o que fazer, acaba chancelando a violência policial, já que “não se combate o crime com rosas”.
O constrangimento foi suficiente a ponto do ministro Flávio Dino anunciar às pressas o Programa Nacional de Enfrentamento às Organizações Criminosas (Enfoc) antes mesmo do episódio da execução no Rio. O Programa repete velhos vícios, além de poucos recursos, concentra as ações nos estados com maior violência policial, Rio e Bahia, reforçando o mesmo aparato. A prática é um dos três equívocos dos governantes em relação à segurança, segundo os pesquisadores Daniel Cerqueira e Renato Sérgio de Lima: primeiro, apostar na guerra às drogas e encarceramento em massa; segundo, acreditar que o uso indiscriminado de força pelas polícias vai resolver algum problema; e, por fim, pensar que segurança pública é assunto só de polícia. Como resultado, as ações têm efeito placebo, supostamente resolvem até a próxima crise. Prova disso são os nove planos de segurança que o país já teve nas últimas duas décadas. Mesmo assim, ou justamente por isso, é que a experiência brasileira na área de segurança pública vai ser usada no Haiti.
.Deixa pra lá. Não só a presença no Haiti, mas também as simpatias com Bolsonaro unem policiais e Forças Armadas. Afinal, até ontem os militares andavam trocando confidências golpistas ao pé do ouvido do capitão. Mas, enquanto as investigações da Polícia Federal avançam dia a dia, o governo segue agindo com um “deixa pra lá” porque haveria assuntos mais importantes no momento. Assim, depois do depoimento do general Heleno na CPMI dos atos golpistas, um acordo de cavalheiros entre governo e oposição vai poupar o general Braga Neto e encerrar os trabalhos da Comissão sem maiores emoções antes do previsto.
Por essas e outras, parece improvável também que a pressão da sociedade civil consiga tirar do papel a proposta de recriação da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Nada disso quer dizer que a vida dos militares continue confortável como antes. Afinal, a investigação da PF descobriu mais detalhes sobre a atuação dos “Kids pretos”, tropa de elite do Exército envolvida nos atos de janeiro sob o comando do general da reserva Ridauto Lúcio Fernandes. E o fio dessa trama chega ao gen. Villas Bôas, considerado o arquiteto do retorno dos militares à política e que um dia já foi considerado um legalista. Justiça seja feita ao governo, que tem se esforçado para propor alterações legislativas sobre os militares e recentemente sancionou com vetos o novo Código Penal Militar. O texto irá substituir o ultrapassado Código aprovado em 1969, logo depois do AI-5.
Embora já viesse sendo discutido nos governos anteriores, o novo Código ganhou uma cara mais progressista depois do 8 de janeiro, prevendo o julgamento de militares pela Justiça comum em casos de crimes sexuais e violência doméstica e proibição do uso de meios violentos como forma de disciplinar a tropa.
.Subindo o tom. A ausência temporária de Lula, e a troca da presidência do STF, com a aposentadoria de Rosa Weber e a posse de Luís Roberto Barroso, foram a deixa para uma ofensiva do Senado sobre a Corte. A PEC aprovada pela CCJ do Senado limita decisões monocráticas e a possibilidade de pedido de vistas, mas outras propostas circulam no Congresso, como a elevação da idade mínima para os ministros e a limitação dos mandatos, que hoje são vitalícios.
O problema da discussão não é tanto seu mérito e sim sua motivação. A ideia de que o STF é uma instância intocável nunca agradou a esquerda, que vê com simpatias a proposta de limitação de mandatos, como defende o próprio ministro Flávio Dino. O problema é que o movimento é parte da reação das forças conservadoras do Congresso insatisfeitas com a decisão da Corte sobre o marco temporal e com o retorno à pauta de temas como legalização do aborto e uso de cannabis no país.
Não à toa, o TSE também entrou na roda, com propostas que limitam a atuação do segundo tribunal mais odiado pelos bolsonaristas. Mas a motivação política imediata é mesmo o desejo de protagonismo do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, preterido nas negociações com o governo por seu colega da Câmara. A questão envolve ainda a luta pela liderança política dentro do próprio Senado, com a tentativa de Davi Alcolumbre (União - AP) de antecipar a disputa sucessória na Casa. Porém, depois que o ônibus entrou em movimento, todo mundo quis pegar uma carona. Como Arthur Lira, que evita entrar de cabeça na aventura, mas dá sinais de que também gostaria de tirar a pedrinha do STF de seu sapato. Por outro lado, embora os bolsonaristas sintam-se ameaçados pela proximidade do STF com Lula, setores do próprio governo não veem com bons olhos os superpoderes de Alexandre de Moraes. Apesar da subida de tom, a solução do impasse deve passar por um acordo, entregando alguma vitória para o Senado mas sem alterar muito o atual funcionamento da Corte.
.Nem amor, nem ódio. A relação entre o governo e o Congresso também vive um clima ambíguo de normalidade e impasses. Isso porque suas preocupações não são as mesmas. Diríamos até que são contrárias. Pois, enquanto o governo tenta avançar em seu projeto econômico e social e consolidar o equilíbrio fiscal do Estado, enfrentando principalmente o desafio de aumentar a arrecadação, o Congresso tem um espírito mais privatista e quer um cartão de crédito sem limites de emendas parlamentares. Assim, o governo tenta barrar no Senado a PEC do Plasma que libera a comercialização de plasma humano, mas em contrapartida vê desidratar na Câmara o PL que visa aumentar a tributação de estoques offshores e exclusivos, que poderia dar um respiro para as contas públicas. Com as dificuldades de aprovação de medidas legislativas para taxar os mais ricos, a alternativa é cobrar os maiores devedores do país através de uma força tarefa especial do Ministério da Fazenda, o que poderia garantir R$180 bilhões para os cofres públicos. Por outro lado, os acordos são possíveis quando os interesses são convergentes, como no caso do PL que regulamenta o mercado de carbono, que favorece o governo, porque fortalece a pauta ambiental, mas também os ruralistas, que veem cifrões nas possibilidades abertas pelo capitalismo verde. Ou quando as duas partes veem que o desgaste político será grande, a exemplo da minirreforma eleitoral, que sofreu fortes críticas na opinião pública e acabou não saindo do papel a tempo. Nos demais temas, prevalece o pragmatismo ou o oportunismo, que dia a dia só engordam as cifras das emendas parlamentares.
.O pulso ainda pulsa. Até aqui, Planalto, Congresso e STF vinham revezando-se como protagonistas da agenda política. Mas a semana foi marcada por uma inesperada ação sindical com greves de rodoviários em Porto Alegre (RS), trens, metrô, universidades e a empresa de saneamento em São Paulo. Os terceirizados do aeroporto de Guarulhos e a Embraer também realizaram paralisações. Os sinais de que as greves foram positivas e fortalecem a esquerda foram o surgimento de novas lideranças, como a primeira presidenta negra dos metroviários, e o fato do governador paulista ver nelas uma oportunidade de se reaproximar da direita bolsonarista.
Além disso, o tema das privatizações foi posto em debate novamente. A reação às greves, inclusive, nos lembra que o fascismo não está morto ou derrotado, como observa Moisés Mendes, seja pelo caso de um professor da Unicamp perseguindo um estudante com uma faca, seja no ataque intransigente da Folha e do Estadão. Independente dos resultados imediatos, também provam que o sindicalismo pode estar disposto a enfrentar batalhas mais duras, como o imposto sindical derrotado no Senado e a caminho do STF e a reforma administrativa que consta no pacote de chantagens do neoaliado Arthur Lira. Mas, efetivamente a volta do movimento grevista é uma boa notícia para Lula, assim como a maior participação da esquerda nas eleições dos conselhos tutelares. A pacificação dos poderes em relação ao Planalto não significa que o governo venha nadando de braçada, como demonstram as pesquisas de opinião como a Atlas e o Poder 360, onde a aprovação do governo está bem longe dos tempos áureos do segundo mandato. Se quiser tirar a economia da letargia, Lula e o governo vão precisar quebrar ovos, como no tema dos impostos sobre os super-ricos. E para isso, é mais provável contar com o apoio das ruas do que dos gabinetes. Mas para isso, precisa também chamar o povo para a omelete.
.Ponto Final: nossas recomendações.
.México: um caso singular de antineoliberalismo. No Outras Palavras, como López Obrador enfrentou a corrupção, o clientelismo e investiu em programas sociais.
.Cresce o número de evangélicos e católicos contra prisão por aborto. Na Piauí, infográfico demonstra como a percepção contrária à prisão por aborto cresceu nos últimos anos, inclusive entre católicos e evangélicos.
.Grilagem do clima: empresas usam terras públicas para lucrar no mercado de créditos de carbono. Na Rede Brasil Atual, o esquema de fraudes de grileiros na Amazônia para lucrarem com os créditos de carbono.
.Conheça livros de ficção que abordam ecologia e emergência climática. No portal Headline, uma seleção de literatura para pensar sobre o aquecimento global e suas consequências.
.A dramática seca na Amazônia em imagens. Na Agência DW, ensaio fotográfico sobre a histórica estiagem que atinge a Amazônia.
.Vânia: A História de uma Revolucionária. No YouTube, os quinze episódios da minissérie documental que reconstrói a trajetória da economista Vânia Bambirra, economista e militante.
*Ponto é editado por Lauro Allan Almeida Duvoisin e Miguel Enrique Stédile.
**Este é um texto de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Geisa Marques