Passavam das 13h quando o suboficial do exército boliviano, Mario Terán, entrou na pequena sala da escola na aldeia de La Higuera, na Bolívia, que naquele momento funcionava como cela. Seus olhos permaneciam baixos e seu caminhar titubeava. Anos depois, o próprio Terán diria que levou 40 minutos para decidir cumprir a ordem. E que, pouco antes de entrar na escola, ele até decidiu ir falar com o Coronel Pérez, na improvável esperança de que a ordem tivesse sido revogada. Mas os gritos com os quais o coronel respondeu foram suficientes para dissipar qualquer vacilação.
As instruções dadas por Felix Ismael Rodriguez, o homem encarregado da operação, eram claras: os tiros deveriam ser disparados abaixo do pescoço. Dessa forma, eles poderiam simular um enfrentamento e tentar declarar que o prisioneiro tinha sido morto em combate. Rodriguez era um agente experiente da CIA que, em abril de 1961, tinha comandado cerca de 1.500 mercenários na tentativa frustrada de invadir Playa Giron, em Cuba.
Ao entrar na pequena sala da escola, Terán viu o Che sentado em um banco, encostado na parede e com as mãos amarradas. "Você veio para me matar", advertiu Che com uma voz firme que parecia ecoar nas paredes da sala. Terán olhou para o chão sem responder. "O que os outros disseram?", perguntou Che, referindo-se ao restante de seus companheiros de guerrilha que tinham sido capturados e mortos nos dias anteriores. "Nada", respondeu Terán. O Che não pôde deixar de sorrir. "Eles foram corajosos!", exclamou. A imagem de seus companheiros de pé diante do inexorável destino das balas inimigas o encheu de orgulho.
Foi nesse momento que Che, lutando contra a dor de sua perna gravemente ferida, se levantou. "Atire, seu covarde, você vai matar um homem!", disse naquele momento.
Anos mais tarde, o próprio Terán daria sua própria versão. "Naquele momento, vi o Che grande, muito grande, enorme. Seus olhos brilhavam intensamente. Senti que ele estava em cima de mim e, quando ele me encarou, fiquei tonto. Achei que com um movimento rápido o Che poderia tirar a arma de mim. Ele me disse: "Fique calmo e mire bem, você vai matar um homem!", contou o então suboficial à revista Paris Match em uma longa reportagem sobre o episódio.
"Hora 13:10 de 9 de outubro de 1967", escreveu Félix Ismael Rodríguez em seu caderno, ao ouvir o som das balas. Após anos de busca, a CIA tinha conseguido assassinar o homem que conseguiu enganar seus agentes de inteligência milhares de vezes. Violando todos os protocolos da guerra, assassinaram um prisioneiro a sangue frio, em vingança contra o povo rebelde que conseguiu a vitória de uma revolução socialista a menos de 150 quilômetros da costa dos Estados Unidos.
Naquela mesma tarde, um helicóptero levou o corpo de Guevara para Vallegrande, uma pequena cidade no departamento boliviano de Santa Cruz. Lá, na lavanderia do hospital Nuestro Señor de Malta, o corpo de Che permaneceu em exposição como se fosse um troféu. Dezenas de soldados, serviços de inteligência, funcionários do governo e jornalistas desfilaram para ver o corpo do homem que aterrorizou os poderosos e conseguiu acender a esperança dos humildes.
Aproveitando um momento de distração da segurança, as enfermeiras do hospital conseguiram cortar mechas do cabelo de Che. Tranças que mais tarde seriam usadas para construir santuários em sua homenagem.
Na madrugada de 11 de outubro, em um acordo entre a CIA e o exército boliviano, a ordem foi desaparecer com os restos mortais de Che Guevara e de outros membros da guerrilha, que também foram assassinados. Temiam que, se seus corpos fossem enterrados, o local de sepultamento se tornaria um destino de peregrinação para seus seguidores.
No entanto, o medo que eles pretendiam espalhar não conseguiu suprimir a fé do povo. Até hoje, milhares de pessoas visitam o lugar, localizado a 60 quilômetros da escola em La Higuera, onde foi assassinado, para homenagear Che Guevara. Ali, uma placa diz: "ninguém morre enquanto ele for lembrado".
Na selva boliviana
"A experiência guerrilheira de Che na Bolívia não pode ser separada da própria experiência cubana da transição socialista", diz Disamis Arcia Muñoz, pesquisadora do Centro de Estudos Che Guevara, para o Brasil de Fato.
"A participação de Che na Guerrilha da Bolívia tem a ver com a visão que ele tinha da necessidade de internacionalização da revolução. O internacionalismo é frequentemente visto como um modelo de solidariedade - o que também é - mas, acima de tudo, a expansão da revolução foi entendida como uma necessidade para a própria transição socialista de Cuba. Dessa forma, Che deve ser visto como um dos principais arquitetos da política externa daqueles anos, juntamente com Fidel e o então ministro das Relações Exteriores, Raúl Roa", acrescenta.
Em 18 de maio de 1962, Che Guevara fez um longo discurso para os membros do Departamento de Segurança do Estado. Esse discurso é conhecido como "A influência da Revolução Cubana na América Latina". Nele, Che analisa detalhadamente a situação política de cada país do continente e adverte que a Revolução Cubana havia aberto uma janela de possibilidade para que processos revolucionários ocorressem em outras partes do continente, que seria o principal desafio político da revolução.
No entanto, o compromisso com a extensão da revolução socialista estava em contradição com a política que a União Soviética adotava desde a dissolução da Internacional Comunista, que evoluiria para o que na época foi conhecido como "coexistência pacífica".
"Sua concepção e participação direta na luta internacionalista tinham uma inter-relação muito próxima com suas próprias concepções de como construir uma sociedade melhor nas condições de um país do terceiro mundo e neocolonial como Cuba", reflete Disamis Arcia Muñoz. "E como esse desenvolvimento socialista não poderia ser alcançado sem uma zona de integração e articulação continental".
Esses breves mas intensos anos, desde o triunfo da Revolução Cubana até seu assassinato em 1967, foram um período de grandes polêmicas e pesquisas teóricas do Che. Suas atividades eram dedicadas ao trabalho ministerial, ao estudo teórico dos clássicos do marxismo, ao debate em assembleias de trabalhadores, à produção de textos e ao trabalho voluntário.
"Em Che não há divisão entre teoria e prática. É por isso que ele não pode ser entendido em partes e pedaços. A figura de Che Guevara é frequentemente considerada como um ponto de referência ético. Sem dúvida, isso é verdade. Mas Che foi, acima de tudo, um filósofo da práxis, como disse Fernando Martinez Heredia. Um pensador e um militante que, por meio de seus escritos e de seus exemplos, nos deixou muitos elementos úteis para pensarmos em nossas lutas atuais", acrescenta.
Seremos como o Che
Em 18 de outubro de 1967, uma multidão se reuniu na Plaza de la Revolución. A notícia do cruel assassinato afligiu profundamente o povo cubano. Milhares de pessoas de todos os cantos da ilha foram prestar homenagem à memória de Che.
Ao cair da noite, Fidel se dirigiu à multidão. Relembrando histórias do homem que havia sido seu companheiro na Sierra Maestra e nos primeiros anos da construção do projeto revolucionário, com quem havia compartilhado lutas, sonhos, vitórias e derrotas.
Com voz emocionada, Fidel disse: "Se quisermos um modelo de homem, um modelo de homem que não pertença a este tempo, um modelo de homem que pertença ao futuro, eu digo com todo o meu coração que esse modelo, sem uma única mancha em sua conduta, sem uma única mancha em sua atitude, sem uma única mancha em suas ações, esse modelo é o Che! Se quisermos expressar como queremos que nossos filhos sejam, devemos dizer com todo o coração de revolucionários veementes: queremos que eles sejam como o Che!"
Em meio às lágrimas da multidão reunida, começaram a ser ouvidos os primeiros gritos em resposta a Fidel: "Seremos como o Che!
Em 2007, após uma longa doença, uma campanha médica cubana na Bolívia restaurou a visão de Mario Terán. O filho de Terán colocou um anúncio no jornal da cidade de Santa Cruz de la Sierra agradecendo aos médicos cubanos por seu trabalho.
Edição: Leandro Melito