Indígenas do povo Guarani e Kaiowá do tekoha Ava’ete, em Dourados (MS), vivem cenário de medo e insegurança após operação da Polícia Federal no território. As bombas e balas de borracha disparadas pelos policiais na última sexta-feira (6) se somam às ameaças cotidianas relatadas pelas famílias que vivem no local.
A operação, batizada com o nome indígena Py’Aguapy, que segundo a PF significa “pacificação”, perfurou paredes, revistou casas, obrigou crianças a saírem às pressas de suas moradias tossindo com o gás lacrimogênio, apreendeu celulares de lideranças e feriu a mão de Kuña Poty, uma nhandesy (rezadora) de 74 anos.
“Começaram a atirar do nada. Levaram documento, levaram celular, levaram mapa do nosso tekoha, passaram em cima do xirú [objeto sagrado Guarani e Kaiowá]… eles derrubaram o xirú com a viatura. A ameaça aqui está acontecendo todo dia”, afirmou a moradora da comunidade Kunumi Verá, em entrevista a Esteban del Cerro, publicada no portal Quilombo Invisível.
“Quando o companheiro estava fazendo o registro, [os policiais] tomaram o celular da mão dele. Chegaram em quatro, pegaram ele e tomaram o celular na marra da mão dele”, contou Kunumi.
A reportagem teve dificuldade de contatar as lideranças indígenas de Ava’ete, pois estas tiveram os celulares levados pela Polícia Federal. A justificativa da ação – que não contou com a presença obrigatória da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) – foi o cumprimento de mandados de busca e apreensão “para verificar a presença de armas de fogo sob posse dos índios”, informou a PF em nota.
“A gente não tem armas, somente estilingue e yvyrapará [bastão sagrado Guarani, associado a atividades guerreiras]. Só isso. A gente que mora na retomada passa muito perigo”, relatou Amanda*, do povo Guarani e Kaiowá em depoimento recente ao Brasil de Fato.
Segundo Kunumi, carros particulares circularam pelo território pouco antes de as 16 viaturas da PF entrarem. “Um estava pescando, o outro foi buscar água, outro foi buscar alimento… pegaram de surpresa, ninguém sabia de nada. Tinha pouca gente nesse momento. Fotografaram nossas coisas. Tiraram foto do gerador de energia que tem ali… não sei por quê. Tiraram foto do poço”, descreve.
O território
O tekoha Avae’te é reivindicado como tradicional pelos indígenas, que vem reocupando o território progressivamente ao longo dos últimos anos, em especial desde outubro de 2018. O avanço territorial mais recente foi em setembro. A área, cercada por produções alternadas de monocultura de soja e milho, está sobreposta à Fazenda Boa União, do empresário e sojicultor Allan Christian Kruger.
Foi da propriedade que surgiu o “caveirão”, como é chamado pelos indígenas: um trator blindado e modificado por chapas de aço. Foi esse veículo que, em outro ataque sofrido pela comunidade Ava’ete em agosto, passou por cima de barracos e destruiu roças de mandioca, quiabo e banana. Na ocasião, casas foram incendiadas.
Segundo os indígenas, os ataques vieram de pistoleiros a mando do fazendeiro, que chegaram a ameaçar violentar as mulheres. “Falaram ‘queria pegar vocês na bala, queria estuprar vocês’. Não deixam a gente ficar sossegado”, disse Amanda.
Com participação em três empresas ativas no Mato Grosso do Sul – Irmãos Kruger Ltda, Agrícola Videira Ltda e Coopasol Cooperativa Agropecuário Sulmatogrossense –, o fazendeiro Allan Kruger tem histórico de conflito com indígenas.
O Ministério Público Federal do Mato Grosso do Sul (MPF-MS) chegou a emitir, em 2021, um pedido de fixação de medidas cautelares contra Kruger e de prisão preventiva de Giovanni Jolando Marques, vulgo Gordo – citado pelo MPF-MS como seu arrendatário e por indígenas como um de seus pistoleiros. Na ocasião, ambos foram acusados pelo crime de incêndio, tentativa de homicídio e racismo contra a comunidade indígena do acampamento Avae’te.
A decisão da 1ª Vara Federal de Dourados do Tribunal Regional Federal da 3ª Região não acatou as medidas cautelares contra Allan Kruger, mas decretou a prisão preventiva de Jolando, cuja “suspeita de atuação”, diz o documento, “é muito mais como ‘miliciano’ do que como sitiante”. Atualmente, no entanto, ele está livre.
A comunidade de Avae’te é uma das que beiram a populosa Reserva Indígena de Dourados. As áreas do seu entorno – muitas das quais tomadas por fazendas - foram apontadas como parte da Terra Indígena (TI) Dourados Pegua, que segundo um Termo de Ajustamento de Condutas (TAC) firmado em 2007 entre o Ministério Público Federal e a Funai, deveria ser identificada e delimitada até 2010. Até agora não aconteceu.
Com o processo demarcatório paralisado, o povo Guarani Kaiowá vem retomando seus territórios de forma autônoma. Segundo o Conselho Missionário Indigenista (Cimi), as comunidades Avae’te 1 e 2 são duas entre 13 surgidas como reação ao confinamento na reserva.
O Brasil de Fato tentou contato com o fazendeiro Allan Kruger, mas não teve resposta. Caso ele ou Jolando queiram se manifestar, o espaço segue aberto.
Edição: Geisa Marques