comida sagrada

Feijoada: preparo em terreiros mantém rituais, significados e propostas específicas

Na maioria das vezes, o preparo é oferecido ao orixá Ogum e representa a alegria da comunhão entre as pessoas

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Feijoada, prato símbolo do país, é um dos principais exemplos de pratos da culinária afrobrasileira - Divulgação/ Ministério do Turismo
É um prato que agrega insumos, ingredientes e consegue agregar as pessoas também

Preparar uma feijoada para um dia de casa cheia está na rotina de terreiros. O prato que lembra festa no cotidiano do país guarda propósitos parecidos em rituais sagrados.

"Ofertamos [a feijoada] também no candomblé e lembramos dos nossos irmãos, com o mesmo propósito de unir as pessoas, de alimentar a alma, de trazer a felicidade e a paz de espírito. E não só em alimentar o corpo nutricionalmente", lembra o gastrônomo Mauro Johnson, que atua como consultor de comidas de terreiro.

"É um prato que agrega insumos, ingredientes, e consegue agregar as pessoas também. Por exemplo, trazemos feijão preto e partes da carne suína que para algumas visões não são tão nobres, mas gastronomicamente falando, são as partes que têm mais sabores por ter uma quantidade maior de lipídios e uma quantidade maior de gordura. Então isso gera um retrogosto, esse sabor que fica em cima da língua, que consegue ficar mais tempo na boca", afirma Mauro.

No entanto, a escolha de ingredientes já demarca um pouco das particularidades da feijoada ofertada em terreiros. Por exemplo, enquanto cardápios pelo país apresentam versões veganas ou com carnes nobres, a ancestralidade religiosa preza pelo significado tradicional do preparo. 

"Na visão gastronômica, vamos colocar alho, cheiro verde, tem gente que usa temperos de pozinho, cominho e outros temperos mais fortes, e,  ainda, os embutidos, calabresa, bacon, defumados. Na feijoada de terreiro, a visão é trazer aquele sabor específico, mas resgatar a feijoada com gosto mais natural", ressalta Mauro ao lembrar que o prato que na maioria das vezes é oferecido ao orixá Ogum.

Sempre feijão preto?

A tradição mantida pela feijoada de terreiro segue também variações que podem ter relação com a disponibilidade dos tipos de feijão em cada território. Assim, o babalorixá Wesley Máximo lembra que nem sempre a feijoada de terreiro é ofertada com feijão preto.   

"Isso, de uma certa forma, dá uma certa confusão de interpretação, mas também fala do processo de diversidade e de necessidade que o povo tinha para preparar essa comida, e também uma questão geográfica de distribuição. Porque, se até hoje na Bahia as questões geográficas facilitam o plantio do feijão preto, as pessoas vão produzir a partir do feijão preto. Mas, se eu tenho aqui em Recife, Pernambuco, a facilidade de uma terra mais fértil e o clima é mais favorável para o feijão mulato, vamos ver também essa presença, enquanto predominância na arrumação do prato", explica Wesley. 

O babalorixá defende ainda o reconhecimento das culturas com feijão presentes nas heranças culturais dos povos do continente africano. Wesley aponta que nem sempre as raízes de matriz africana são valorizadas na formação cultural da gastronomia do Brasil, ao lado dos povos europeus e originários do continente americano. 

"A feijoada tem uma característica africana. O feijão preto é utilizado para divindade de Ogum e para outras divindades também. Esses grãos que são tão presentes em todas as comidas votivas desses orixás e de outras divindades também estão na relação africana. Existe um processo de negação e de desconstrução da comida [de matriz africana]", defende Wesley.

Fava

Há também outra variação do preparo feito em terreiros que além de mudar o grão é ofertado a outra orixá, Nanã. Apesar das variações, há preceitos que são sempre seguidos tanto no preparo com o feijão quanto com a fava, como "nenhuma delas serem ofertadas com embutidos, bacon e calabresa, porque isso já começa a industrializar, e o que precisamos é da comida de tradição, mas sem perder o sabor, lógico", explica Mauro. 

Cuidados

O cuidado culinário defendido nos preparos da feijoada de terreiro tem a ver com um processo ancestral de cura. Nas palavras de Wesley, serve para limpar o corpo e a alma, e para purificar a mente. Como culinária votiva, deve se considerar, ainda, "um tempero todo especial que só as pessoas de terreiro, de fato, sabem fazer", ressalta o babalorixá.

Edição: Rodrigo Durão Coelho