Sabemos que, antes da Constituinte, muitas pessoas vendiam sangue para sobreviver
O plenário do Senado já tem, pronta para votação, a Proposta de Emenda Constitucional que pode autorizar a comercialização de plasma sanguíneo. Desde a semana passada o texto está na lista dos que aguardam para entrar na ordem do dia. É preciso apenas a autorização do presidente da casa, Rodrigo Pacheco (PSD), para que a proposta passe pelo último estágio da tramitação, que é a votação em plenário.
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Até o momento, não há sinalização de que isso possa ocorrer de imediato, principalmente porque o assunto é muito polêmico. Conhecida como PEC do Plasma, a proposta permite que a iniciativa privada venda sangue. Hoje, a lei brasileira impede essa prática e determina que o excedente do plasma não usado em transfusões seja repassado ao Sistema Único de Saúde (SUS).
Como o mercado de derivados do sangue movimenta cerca de R$ 10 bilhões de reais por ano no mundo, o interesse privado no setor é grande. Hoje, a responsabilidade pela gestão desses insumos é da Hemobrás, empresa pública para hemoderivados e biotecnológicos. Abrir espaço para iniciativas que têm o lucro como objetivo esbarra em questões morais e na própria Constituição Brasileira, que veta todo tipo de comercialização de tecidos humanos.
"Nós sabemos que, antes da Constituinte, muitas pessoas vendiam sangue para sobreviver. É [uma situação] horrorosa, é quase aquela história de dar o sangue mesmo. As pessoas mais ricas podem viver sem doar e as mais pobres vão vender o sangue. São muito comuns relatos de pessoas que trabalhavam antigamente nos bancos de sangue, dizendo que muitas mulheres da área da prostituição, pobres, sem dinheiro, vendiam sangue para ter o que comer no dia seguinte. Acho que não queremos voltar a viver esse tipo de cena", afirma Rosana Onocko Campos, presidenta da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
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Entenda
O sangue é composto pelas plaquetas, glóbulos brancos, vermelhos e por uma parte líquida chamada de plasma. É dela que se produzem os hemoderivados, importantes para o tratamento de diversas doenças, como a hemofilia.
Embora seja inconstitucional, a PEC da senadora Daniella Ribeiro (PSD-PB) foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça do Senado (CCJ), justamente a que tem o papel de avaliar se as propostas em tramitação respeitam o que determina a Constituição.
Foram 15 votos contra 11 pelo avanço da PEC do Plasma. Os parlamentares que concordaram com o texto argumentam que a medida vai ajudar indústria médica brasileira a se desenvolver e resolver o problema da falta de hemoderivados. A defesa é de que Hemobrás não tem capacidade tecnológica para processar plasma e derivados e que a maior parte do material proveniente das doações é descartada.
"Isso se relaciona, fundamentalmente, com a forma com que esses grupos de interesse tratam as empresas públicas. É um clássico: quando desejam privatizar ou criar concorrência, desqualificam uma empresa pública para depois poder vendê-la e poder privatizar", alerta Onocko.
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A professora ressalta ainda que já há um planejamento governamental para desenvolvimento tecnológico do parque industrial da saúde. "No caso da Hemobrás, já está em elaboração uma segunda planta. Aparentemente, o Brasil conseguiria autossuficiência para a produção de tratamento das imunoglobulinas e do plasma humano. É uma política acertada, totalmente alinhada à ideia do complexo econômico industrial da saúde. Então não tem sentido reformar a Constituição, gastar tempo e dinheiro dos congressistas pra mexer numa cláusula da Constituição que está dando certo simplesmente para abrir ao interesse privado."
A Abrasco, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Ministério da Saúde já se posicionaram contra a proposta. Se for aprovada no Plenário do Senado, ela segue para tramitação na Câmara dos Deputados.
Edição: Thalita Pires