NEGOCIAÇÕES

Bombeiros tentam dominar política de combate a incêndios florestais discutida no Congresso

Emendas a PL restringem poder do Ibama e do ICMBio em política considerada essencial para gestão do uso fogo no país

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Projeto já aprovado na Câmara recebeu 12 emendas pró-bombeiros no Senado - Reprodução

Considerada essencial para prevenir e combater incêndios florestais como os que atingem gravemente o estado do Amazonas neste momento, a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo tem sido alvo de lobby dos corpos de bombeiros estaduais no Congresso Nacional. Emendas apresentadas a favor das corporações ao projeto de lei que prevê a criação da política (PL 1818/2022) estão prolongando sua tramitação. 

A aprovação da matéria é considerada prioridade pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA). Em setembro, a ministra Marina Silva chegou a discuti-la em reunião com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Meses antes, no fim de maio, o texto estava pronto para ser votado no plenário da Casa após cinco anos de debate no parlamento. 

Mas 13 emendas apresentadas ao PL no último dia do prazo para sua proposição farão com que ele tenha que passar novamente pelas comissões de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) e Meio Ambiente (CMA) da Casa, onde tinha sido aprovado em dezembro de 2022 e maio deste ano, respectivamente. Se alguma das mudanças propostas for aceita, o projeto precisará ser debatido novamente na Câmara dos Deputados, onde tinha sido chancelado em outubro de 2021 sob regime de urgência.

Das 13 emendas, 12 são assinadas pelo senador Nelsinho Trad (PSD-MS). Quase todas pretendem ampliar as atribuições dos corpos de bombeiros dos estados e do Distrito Federal na gestão da política nacional. Pela legislação, é atribuição dos bombeiros a prevenção e combate a incêndios em áreas particulares, municipais e estaduais. Mas as alterações preveem um protagonismo deles também em áreas da União, que ficam sob responsabilidade dos órgãos ambientais federais.

Isso significa, na maioria dos casos, restringir o poder do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgãos que hoje implementam o Manejo Integrado do Fogo – também conhecido pela sigla “MIF” – no país. 


O senador Nelsinho Trad apresentou 12 emendas que ampliam atribuições dos corpos de bombeiros no combate a incêndios florestais / Reprodução



Trad tem uma conexão de longa data com os bombeiros do Mato Grosso do Sul. Nos últimos anos, viabilizou o envio de R$ 12,8 milhões do Ministério da Justiça e Segurança Pública à corporação, como revela em seu próprio site. Boa parte dos recursos se destinou justamente a ações de combate e prevenção de incêndios no Pantanal.

O MIF é uma abordagem ampla que engloba, entre outros pontos, ações de prevenção e combate aos incêndios florestais e foi construída a partir da interação entre o conhecimento científico e os saberes ancestrais de uso do fogo de populações indígenas e tradicionais.

Transformá-lo em política nacional é considerado urgente por especialistas e pelo governo federal porque a queima da vegetação emite gases de efeito estufa, os grandes responsáveis pelas mudanças climáticas globais. 

“Para nós, [o projeto de lei] é estratégico”, disse o presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, em coletiva de imprensa na última sexta-feira (13) sobre as ações do governo federal para enfrentar os incêndios no Amazonas. “Ele é fruto de anos e anos de pesquisa e de muito trabalho das equipes do Prevfogo [Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais do Ibama]. É prioritário que esse projeto seja aprovado no Senado.”

Um estudo do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) mostra que, de 1990 a 2020, os incêndios na Amazônia liberaram na atmosfera quase 1,3 bilhão de toneladas de CO2, levando-se em conta tanto a combustão quanto a decomposição vegetal. O valor corresponde às emissões anuais do Japão. Os incêndios provocam ainda a degradação da floresta, que entra num processo gradual de declínio, embora siga em pé.

O Amazonas, por exemplo, enfrenta uma temporada intensa de incêndios que levou a capital Manaus a registrar a terceira pior qualidade do ar do mundo, de acordo com o World Air Quality Index (WAQI), na última quarta-feira (11). 

Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) indicam que o último mês foi o segundo pior setembro em termos de focos de queimadas no estado desde 1998, quando começaram as medições. Apenas nos primeiros 12 dias de outubro já foram registrados 2.770 focos no Amazonas, alta de 84% em relação ao que foi observado no mês inteiro de 2022. Já é o outubro com mais focos desde o início dos registros. 

A ocorrência de um El Niño intensificado pelas mudanças climáticas está piorando a condição de seca na Amazônia, mas as queimadas são resultado de pessoas que estão ateando fogo principalmente no sul do Amazonas e na região de Autazes, próxima a Manaus. A maior parte se dá sobre áreas desmatadas anteriormente, mas florestas em pé já estão sendo atingidas também.

Hoje, o MIF já é aplicado pelo Ibama e ICMBio por meio de brigadas federais em terras indígenas e unidades de conservação da União em todos os biomas do Brasil, como mostra esta reportagem da Agência Pública. A ideia da política nacional é ampliar o uso dessa estratégia.

 


Brigada de incêndio da Prevfogo com quilombolas simula combate ao fogo no cerrado / Reprodução


Agostinho mencionou, durante a coletiva de sexta-feira que discutia as estratégias para combater o fogo, que havia três frentes de queima prescrita em ação em Roraima. “Justamente [para] fazer as ações preventivas de forma correta, adequada, e o projeto de lei sistematiza toda essa política”, disse.

“Com a política, será possível expandir o MIF para todo o território nacional, para além das áreas hoje manejadas pelo Ibama/Prevfogo e ICMBio, inclusive em áreas particulares”, explica a doutora em Ecologia Livia Carvalho Moura, assessora técnica do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), que pesquisa o manejo integrado do fogo e acompanhou sua implementação em Unidades de Conservação do Cerrado entre 2015 e 2016. 

A versão atual do PL também propõe a articulação entre os governos federal, estaduais e municipais e sociedade civil para a execução e gestão da política nacional.

Uma nota técnica elaborada por servidores do Ibama, ICMBio, MMA e Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) recomenda que as comissões do Senado rejeitem as alterações sugeridas por Trad ao projeto de lei. O documento destaca que algumas delas desrespeitam o pacto federativo por submeterem políticas federais aos corpos de bombeiros, que são órgãos estaduais.

A emenda número 5, por exemplo, determina que todos os programas de brigadas florestais – um dos principais instrumentos de operacionalização da Política Nacional do MIF, responsáveis por implementar os planos de manejo e de combate aos incêndios – sejam cadastrados e aprovados pelo Corpo de Bombeiros Militar de seus respectivos estados. 

O texto original do projeto já prevê essa possibilidade, mas não para brigadas atuantes em unidades de conservação da União, terras indígenas e quilombolas e outras áreas sob gestão federal. Na prática, se aceita, a emenda faria com que ações do Ibama e do ICMBio tivessem de ser submetidas à chancela dos bombeiros.

“A União, pelo Ibama e pelo ICMBio, deverá ter suas brigadas aprovadas por órgãos estaduais? Haverá sujeição do ente federativo maior aos menores? Os requisitos de autorização serão uniformes? Todas as perguntas acima não são respondidas pelas emendas apresentadas”, pontua a nota técnica, que classifica a proposta de Trad como “flagrantemente inconstitucional”. 

Outro pedido de alteração trazido pela emenda número 5 é o de que, quando operarem em conjunto com as brigadas florestais, os bombeiros fiquem responsáveis pela coordenação e direção das ações. Se elas ocorrerem em terras indígenas, territórios quilombolas, unidades de conservação ou em outras áreas federais, a atuação dos bombeiros deve acontecer “de forma coordenada, harmônica e integrada com os respectivos órgãos competentes pela proteção ambiental dessas áreas”. No texto original, a coordenação e direção das operações nessas áreas federais fica exclusivamente a cargo dos órgãos competentes pela sua proteção ambiental, como Ibama e ICMBio.

A justificativa da emenda favorável aos militares aponta que “a atividade de prevenção e combate aos incêndios” se insere no campo da segurança pública, “cabendo às unidades da federação disporem sobre as condições para a sua execução”, e que a coordenação dessa atividade deve ser atribuição dos bombeiros para que não seja comprometido o “desenvolvimento da resposta operacional”.

Os servidores do Ibama, ICMBio, MMA e Incra rebatem o argumento, indicando que o projeto já prevê a autorização e regulamentação de brigadas voluntárias estaduais pelos órgãos vinculados às Unidades da Federação. “O mesmo não deve ocorrer para as brigadas da União, pois os órgãos estaduais devem interferir apenas no âmbito de suas competências”, destacam. 

Outra emenda, de número 11, sugere que os recursos federais destinados ao manejo integrado do fogo possam ser empregados para o “aumento de efetivo bombeiro militar” e para “iniciativas que permitam o reequipamento, treinamento e qualificação, emprego operacional de efetivo, sistemas de informações e estatísticas dos respectivos Corpos de Bombeiros Militares”.

A nota técnica qualifica a demanda como “concessão de vantagem indevida” aos corpos de bombeiros, pois os colocaria “em posição de preferência no recebimento de recursos da União, sem que haja qualquer comprovação de utilização desse pessoal [aumento de efetivo] em ações de prevenção e combate aos incêndios florestais”.

Livia Carvalho Moura explica que a participação dos bombeiros na Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo é essencial, mas que sua gestão deve ficar a cargo de instituições ambientais federais “que viabilizem o planejamento, implementação, monitoramento e avaliação em escala nacional, válidos para todo o Brasil”.

“Toda a experiência dos bombeiros e possibilidades de atuação in loco certamente contribuirão para o sucesso do MIF no Brasil. São muitos os espaços que os bombeiros podem ocupar para contribuir com a implementação da política, e todos os seus conhecimentos, treinamentos e capacidades não podem ser desprezados nesta construção”, afirma Moura. 

Ela defende que os bombeiros integrem, por exemplo, o Comitê Nacional de Manejo Integrado do Fogo, que será instituído junto à política nacional e deve funcionar como sua instância de consulta e deliberação. O projeto de lei prevê que o comitê seja vinculado ao MMA e composto por representantes dos governos federal, estaduais e do Distrito Federal, municipais e da sociedade civil. Segundo o texto, todos terão direito a “voz e voto”. Os membros devem ser definidos por regulamentação posterior à criação da lei.

Além disso, a análise produzida pelos servidores federais aponta que a aprovação das emendas pode prolongar a tramitação do PL “por tempo indeterminado” e que essa demora seria “extremamente prejudicial, ante as severas variações climáticas que vêm acometendo o mundo”.

A nota destaca que a política nacional foi amplamente discutida com diversos atores do país na última década e que é debatida no Congresso Nacional desde 2018, quando o governo federal apresentou o projeto de lei à Câmara. O texto foi elaborado com base em “seminários setoriais com a participação de representantes de diversos ministérios, órgãos ambientais dos diferentes entes federativos, representantes da sociedade civil, representantes de comunidades indígenas e universidades”.

A Pública solicitou entrevista com um representante do Conselho Nacional dos Corpos Militares dos Bombeiros do Brasil (Ligabom), que defende a ampliação da presença dos bombeiros na Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo, mas o pedido não foi atendido até o fechamento da reportagem. Também entramos em contato com o senador Nelsinho Trad, que tampouco respondeu.

Manejo Integrado do Fogo como alternativa ao “fogo zero"

Dois dos principais instrumentos para a prevenção dos incêndios florestais empregadas no âmbito do MIF são as queimas prescritas, feitas para fins de preservação ambiental, pesquisa ou manejo, e as controladas, realizadas com objetivos agrossilvipastoris, ou seja, para abrir roças e pastos. Ambas são executadas com planejamento, monitoramento e objetivos predefinidos. 

O MIF é mais relevante em ecossistemas dependentes do fogo, como Cerrado, porque as queimas prescritas, além de beneficiarem fauna e flora, servem para retirar o excesso de material orgânico inflamável que pode servir como combustível para que um foco de fogo acidental saia de controle e se torne um incêndio. 

Mas sua aplicação tem sido importante também na Amazônia. A floresta tropical úmida não queima naturalmente, como o Cerrado. Mas o processo cada vez maior de degradação pelo qual tem passado, provocado por queimadas intencionais e pelas mudanças climáticas, a deixa mais vulnerável ao fogo, o que também demanda ações de manejo. 

“Na Amazônia, além de haver áreas de vegetação de Cerrado, há uma quantidade muito grande de áreas desmatadas onde é possível fazer queimas prescritas”, explicou à Pública Rodrigo Agostinho, presidente do Ibama. “Também temos hoje quase 600 milhões de hectares de pasto na Amazônia, algumas áreas de pastos abandonados, onde é preciso fazer esse tipo de ação.”

O MIF é aplicado em maior escala pelo Prevfogo/Ibama por meio do programa Brigadas Federais (BRIFs), que desde 2014 inclui esquadrões em terras indígenas. Os brigadistas são contratados pelo governo federal por seis meses no ano, pouco antes e durante a época seca, que varia dependendo do bioma.

Antes dessa abordagem, a política adotada pelo Ibama era a do “fogo zero”, que via o fogo como prejudicial em todas as circunstâncias e tinha como objetivo evitá-lo a qualquer custo. No entanto, com o passar dos anos, pesquisadores perceberam que alguns ecossistemas – sobretudo nos biomas Cerrado e Pantanal – são, na verdade, dependentes do fogo. 

As evidências científicas foram ao encontro do conhecimento tradicional de povos indígenas e tradicionais que há séculos faziam o manejo do fogo e eram, inclusive, repreendidos pelos órgãos ambientais. Como resultado, o MIF hoje associa as técnicas de prevenção e combate a incêndios às necessidades específicas do ecossistema e das comunidades que o habitam.