ELEIÇÃO NA ARGENTINA

Eleições na Argentina: na reta final da campanha, peso agoniza frente ao dólar e inflação dispara de vez

Candidato mais bem cotado incentiva população a se livrar da moeda nacional, em sintonia com sua proposta de dolarização

Brasil de Fato | Botucatu (SP) |
Milei, Massa e Bullrich são os candidatos com maiores chances na disputa do primeiro turno eleitoral na Argentina - Reprodução/ Opera Mundi

A Argentina conta os dias para a eleição presidencial do próximo domingo (22) num momento em que a crise socioeconômica atinge um nível particularmente dramático, mesmo para um país habituado a conviver com esse tipo de situação.

O valor do peso despenca frente ao dólar, a inflação dispara de forma descontrolada e a população vê seu poder de compra cada vez menor. Tudo isso num contexto em que o candidato mais cotado para vencer propõe acabar com a moeda nacional e adotar de vez o dólar como dinheiro corrente, como fez o Equador.

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Javier Milei, um economista ultraliberal que venceu as primárias, é o candidato que defende a dolarização. Na última semana, ele chegou a comparar o valor do peso a “excremento”, numa das várias frases de efeito proferidas durante a campanha.

 


Apoiador de Milei durante ato de campanha: candidato ultraliberal procura capitalizar em cima da profunda crise do país / Luis ROBAYO / AFP

Seus adversários principais são o peronista Sergio Massa, atual ministro da Economia, que carrega o fardo pela situação econômica do país e tenta dividi-lo com a oponente conservadora Patricia Bullrich, da corrente política macrista, portanto aliada a Mauricio Macri, o presidente que firmou o acordo com o Fundo Monetário Internacional apontado como um dos principais responsáveis pela situação do país. Ela defende diminuir o tamanho do Estado e liberar o mercado de câmbio, que o governo atual tem tentado controlar.


Sergio Massa tenta recuperar o terreno perdido pelo peronismo no eleitorado argentino / NORBERTO DUARTE / AFP - 24/8/2023

A incerteza provocada pela situação econômica, aliada à expectativa de que uma eventual vitória de Milei possa derrubar de vez o peso, faz a população correr atrás de dólares com mais ânsia. Nos últimos dias, essa corrida cambial elevou a cotação do dólar paralelo (mercado ilegal) de uma média que girava em torno de 700 pesos, para um pico de mais de mil pesos. Com isso, o paralelo, chamado de dólar “blue”, atingiu quase o triplo do valor do dólar oficial, mantido pelo governo em 350 pesos, o que gera uma pressão ainda maior para que a gestão de Alberto Fernandez eleve a cotação oficial — só os chamados atores econômicos podem ter acesso ao dólar oficial, por causa da escassez de moeda estadunidense no mercado argentino.


A ex-ministra de Segurança de Macri, a "Bolsonaro argentina", em evento na Casa Rosada, em 2019 / Juan MABROMATA / AFP

Na última semana foi divulgada a inflação de setembro, que ficou em 12,7%, superando a de agosto e resultando num acumulado de 103,2% desde janeiro. Ou seja, do início do ano até agora, os preços, em média, dobraram. Roupas (15,7%), cultura e recreação (15,1%) e alimentos e bebidas não alcoólicas (14,3%) subiram acima da média. Esta última categoria, com aumento de cerca de 150% desde janeiro, é a que mais afeta o bolso das famílias de baixa renda, que gastam grande parte de seu dinheiro em comida. A inflação oficial, que acumula 138,3% em 12 meses, está num patamar recorde das últimas três décadas, o que remete os argentinos aos tempos de inflação descontrolada do início dos anos 1990.

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Em 1991, o governo neoliberal do presidente Carlos Menem (1989-1999) implantou a convertibilidade, pela qual cada peso valia um dólar, naquela que foi a penúltima grande mudança de modelo macroeconômico do país. Foi uma forma eficaz de estabilização da economia. Mas, dez anos depois, o nível de pobreza era tão grande que resultou nos protestos massivos que forçaram a queda do governo de Fernando de la Rúa (1999-2001). Na esteira dessa crise, veio o modelo kirchnerista, que hoje está em crise.

“Estamos diante da possibilidade de uma nova quebra de sistema macroeconômico, num esquema parecido ao dos anos 1990, só que mais radical”, analisa o jornalista Mario Santucho, editor da revista Crisis, ao Brasil de Fato. “Boa parte da população sente que este regime atual não dá mais e é preciso mudar. Milei se apoia nisso, é um economista ultraliberal. Por isso é bastante preocupante essa crise, que chega justo no momento em que precisamos votar”.

Além de criticar e inclusive xingar a moeda argentina, Milei tem sugerido abertamente que os argentinos adotem o dólar. Seus adversários rebatem, dizendo que são declarações irresponsáveis. O governo o denuncia judicialmente por "intimidação pública", alegando que suas palavras causaram uma queda adicional no valor do peso. Mas Milei não se intimida e rebate dizendo que o governo não pode se isentar de culpa pelo que chama de “modelo econômico empobrecedor”. Critica também economistas que falam para as pessoas usarem pesos, mas só acumulam em dólares, segundo ele.

O que Milei está fazendo, nesse contexto de catástrofe cambial e inflacionária, é mera estratégia eleitoreira ou está de acordo com seu programa de governo? Santucho acha que a situação atual convém ao candidato nos dois sentidos: para deteriorar o governo, e portanto seu adversário Sergio Massa, e porque seu plano de dolarização precisa que o peso se deteriore cada vez mais.

Massa tem buscado deter a corrida cambial com novas restrições de compra de dólar nos mercados autorizados e com operações policiais em locais de câmbio ilegal. Em um comício na última quinta-feira, Massa afirmou que prefere perder a eleição, "mas mandar os que brincam com as economias dos argentinos para a prisão". "Ontem, já tivemos seis detidos. Preparem-se para ver a miséria daqueles que especulam", afirmou o candidato, segundo o jornal El País.

Dois cambistas foram detidos com cerca de 100 mil dólares em dinheiro na Calle Florida, a principal área comercial do centro de Buenos Aires. No bairro de Belgrano, outro homem foi detido com 400 mil dólares amarrados nas pernas e no abdômen. Nos últimos dias, com forte presença policial, os cambistas, conhecidos como "arbolitos", desapareceram da Calle Florida.

No caso de Massa, o que ele está fazendo para combater a corrida cambial seria obrigação de uma gestão pública responsável ou, acima de tudo, estratégia eleitoral? “O governo usa medidas desesperadas para mostrar que existe uma autoridade que não vai deixar a situação sair do controle. Mas, em nível estrutural, não são medidas fortes, são mais performativas, imediatistas, apenas para chegar até a eleição sem que a coisa desande completamente. É um governo débil, sem dólares para lidar com a corrida cambial”, opina Santucho.

Perspectiva para domingo

Segundo as pesquisas eleitorais, o cenário de três terços revelado pelas eleições primárias se mantém, com os três principais candidatos recebendo cerca de um terço dos votos e, portanto, com chances de disputar o segundo turno — com ligeira vantagem para Milei, seguido por Massa e depois por Bullrich. No entanto, Santucho acha que Milei pode ter crescido um pouco além do que as pesquisas estão captando, algo que já aconteceu nas primárias, quando ele foi além dos 20% previstos e recebeu cerca de 30%. “É possível que Milei esteja sendo subestimado de novo."

Se algum candidato receber 45% dos votos válidos, ou 40% com pelo menos 10 pontos percentuais de vantagem sobre o segundo colocado, será eleito no primeiro turno, no próximo domingo. Caso contrário, competirá contra o segundo mais votado no segundo turno, em 19 de novembro.

 

Edição: Leandro Melito