disputa de versões

Irã e uma tentativa de romper com a mirada ocidental

Na guerra das narrativas, o papel da mulher é uma das armas usadas pela mídia do Ocidente

Mashhad (Irã) |
Participantes do Festival visitam o Hospital Razavi, referência em oncologia e fertilização, em Mashhad, Irã - Nina Fideles/ Brasil de Fato

A adolescente iraniana Armita Geravand, de 16 anos, entra no metrô de Teerã sem o hijab – véu de uso obrigatório para as iranianas. Segundos depois, é arrastada desacordada para fora do trem pelos colegas que haviam embarcado com ela. Três dias mais tarde, a cena vira manchete nos principais jornais do Ocidente com uma narrativa hegemônica: Armita teria sido espancada pela polícia da moralidade iraniana.

O vídeo que circulou pelo mundo não mostra o que aconteceu no interior do metrô, mas parece ter sido suficiente para sustentar a acusação. Vários contatos do país afirmam categoricamente ser uma grande mentira. Mais uma.

Esse debate não é novo e ganha contornos quando, na mesma semana, a ativista e jornalista iraniana Narges Mohammadi ganha o Prêmio Nobel por sua luta pelos direitos das mulheres no Irã, fato que também provocou reações contrárias e levanta questões mais profundas sobre a centralidade do papel das mulheres na sociedade iraniana.

É tarefa difícil encontrar qualquer conteúdo equilibrado sobre o país persa, regiões orientais e até mesmo a Palestina – que também sofre com a postura criminosa da mídia ocidental. A notícia sobre Armita, por exemplo, cresceu a partir do que foi publicado pela Reuters e incorporado sem qualquer checagem pelas principais agências de notícias pelo mundo.

A partir da necessidade de construir contrapontos, mesmo que apontando as contradições – e aqui deixo claro que não é papel do jornalismo acoberta-las –, foi realizado entre os dias 29 de setembro e 1º de outubro, o Primeiro Festival Internacional Khorsheed, na cidade de Mashhad, a segunda maior do Irã. Estive lá representando o Brasil de Fato, junto de mais de cem mulheres comunicadoras, de 40 países de todos os continentes.

“Nossas vozes não estão sendo ouvidas, e os jornalistas podem contribuir para espalhar a verdade", resumiu a primeira-dama iraniana, Jamileh Alamolhoda, em seu discurso de boas vindas do evento que foi dedicado à memória da jornalista palestina Shireen Abu Akleh, morta pelas forças israelenses em maio de 2022, na cidade de Jenin, na Cisjordânia ocupada.

:: Um hino à resistência iraniana e à liberdade ::

Reunir mulheres representantes de veículos independentes de todo o mundo faz parte de uma estratégia de combate à narrativa hegemônica construída pela mídia ocidental sobre o país, e que tomou como central a vida das mulheres. Sendo, portanto, compreensível o anseio do povo iraniano e das organizadoras do evento de mostrar às participantes do festival o “verdadeiro Irã”.

Prisma ocidental

O esforço para enxergar uma cultura milenar sem os vícios do olhar ocidental é constante, especialmente no que diz respeito à vida das mulheres. É ainda mais difícil romper esse prisma quando falamos de um Estado teocrático como o Irã, que tem um sistema de governo submetido às normas do islamismo. 

Ainda que política e fé comumente se misturem nos países da América Latina, os Estados teocráticos estão oficialmente distantes da realidade da nossa região. 

Não são apenas questões religiosas que atravessam as versões equivocadas sobre o Irã, mas a ausência de contextos históricos. Esses dois elementos não estão dissociados, uma vez que a guerra midiática contra o país tem início em uma narrativa anti-islâmica, que se estende a outras nações, a partir, especialmente, da revolução de 1979.

O processo revolucionário que culminou na derrubada do Xá Mohammad Reza Pahlavi e que levou ao poder o Aiatolá Khomeini se contextualiza desde o pós-guerra, em 1945.

O Xá era conhecido por sua monarquia sanguinária e por seus acordos com o Ocidente, especialmente com relação às riquezas geradas pelo petróleo na região, com contratos desequilibrados estabelecidos com Estados Unidos e Reino Unido. Até mesmo um golpe foi orquestrado pelos serviços secretos desses países – CIA e M16, respectivamente – para recolocar o Xá no poder.

O Ocidente silenciou sobre as barbáries praticadas pelo Xá e estimulou uma sociedade em que uma pequena parte se beneficiava das riquezas produzidas, enquanto, do outro lado, a maior parte da população vivia em condições miseráveis. Isso, obviamente, foi a força motriz do processo que levaria à derrubada do Xá, em 1979, que reprimia com violência os protestos da população.

O véu chegou a ser proibido, e a polícia secreta, a Savak – inspirada na israelense Mossad – tinha ordens de retirar a peça à força, obrigando uma mudança brusca nos costumes. A medida gerou resistência. As mulheres se reuniam nas mesquitas e protestavam pelo direito ao uso do hijab, junto a estudantes. Todas as manifestações foram duramente reprimidas, ocasionando inúmeras mortes.

Hijab: o centro da disputa

Após a Revolução Islâmica, o Estado iraniano declarou como religião oficial o islamismo xiita. Tendo o Alcorão como base religiosa, é regra que as mulheres cubram seus cabelos com lenços – o hijab –  e contornos com roupas mais largas e de mangas longas. O uso do chador – veste feminina que cobre o corpo todo, com a exceção do rosto –  também é imprescindível, mesmo para visitantes, em espaços considerados sagrados. O uso do véu é compulsório. No Alcorão, há uma justificativa moral, mas a vestimenta perpassa também as tradições do povo persa.

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Tradição essa que é ignorada em países como a França, que proibiu, em 2004, o uso de hijab e de outros símbolos religiosos visíveis nas escolas públicas por jovens em idade escolar. Uma legislação de 2010 determinou que "ninguém pode, em um espaço público, usar nenhum artigo de vestimenta concebido para ocultar o rosto". A determinação afeta justamente quem usa véus como o niqab. Outros países europeus também têm restrições regionais ao uso do véu islâmico.


O uso do hijab é obrigatório para as mulheres no Irã / Nina Fideles/ Brasil de Fato


Na guerra das narrativas, o papel da mulher é uma das armas usadas pela mídia ocidental. Não à toa o uso do hijab tem se tornado central nessa disputa e fomentado inúmeras discussões.
 
“Eles querem nos dizer o que está certo e o que está errado, e o papel da mídia independente é muito importante. Aqueles que entendem o que está acontecendo no mundo têm um papel difícil: publicar a verdadeira notícia e combater as fake news”, sinalizou o presidente do Irã, Ebrahim Raeisi, na recepção às participantes do festival em Teerã.

A partir de um recorte pessoal da minha visita ao Irã, muito restrito ao tempo e espaço, digo que certamente há contradições e questões com relação ao uso do hijab. Pelas ruas de Teerã, muitas mulheres abrem mão do uso do véu, mas a repressão da polícia não foi algo que presenciei – o que não quer dizer que ela não exista. 

Ao dialogar com mulheres iranianas, é possível perceber que há uma forte convicção religiosa e de identidade no uso das vestes tradicionais, como o chador e o hijab. Ao serem questionadas, elas respondem com firmeza que as razões do hábito passam pela fé – o que deve ser respeitado.

Por outro lado, é legítimo que as mulheres possam questionar e decidir sobre as regras impostas. Mas é preciso romper com a ideia –violenta– de que as iranianas necessitam que o Ocidente as salve desse “mundo opressor”. Isso, sim, posso afirmar que é um equívoco. 

Inclusive, valeria um texto especialmente para essas mulheres que reafirmam que o chador não as definirá. 

Cultura, tecnologia e mulheres em postos de comando

Além dos hijabs, o Irã também é o país das mulheres doutoras, poliglotas, produtoras, jornalistas… elas se destacam nas universidades, na produção científica e estão em postos de comando nas mais diferentes áreas. 

Elas são médicas e estão em posições de liderança no moderno Hospital Ravazi. A instituição multiespecialidades conta com equipamentos de última geração para atendimento em oncologia, cardiologia, estética, radiologia e é referência no tratamento de fertilidade.
 
Na faculdade de arquitetura que visitamos, elas também se destacavam. Eram nove dentre os dez alunos que estavam em uma sala por onde passamos. O único aluno homem era de origem afegã. Nossa tour pelo país do Oriente Médio contemplou ainda um planetário desenvolvido pelos próprios alunos e um parque para mulheres e crianças, onde elas podiam retirar seus véus e seguiam conversando e/ou rezando. 

De uma população orgulhosa de sua cultura, a tradição persa é muito valorizada e tem uma personalidade como referência no país: Ferdowsi (940-1020). O nome dele está em praças, prédios, universidades, e seu feito foi culturalmente importante para os iranianos. 

O poeta é considerado o recriador da língua persa, o farsi. Graças à sua obra os iranianos podem dizer que conseguiram manter parte da literatura pré-invasão dos árabes. Shahnameh, O livro dos Reis, é o maior conto épico de todos os tempos, com mais de 60 mil versos.

Conhecer o cotidiano da população iraniana contribui para romper com olhares pré-estabelecidos a partir do Ocidente. Nos tradicionais mercados, de mais de 300 anos, além de véus, também são vendidos sutiãs e calcinhas de renda. 

A visita ao Santuário de Imam Reza, em Mashhad, reverberou e impôs aos olhares do Ocidente o esforço de romper com os preconceitos sobre a religião islâmica e compreender a sua história. Construído em 818, o vasto complexo tem uma área de quase 600 mil metros quadrados, o que coloca esse templo como o maior do mundo. 


Santuário de Imam Reza, maior templo do mundo, em Mashhad, fica aberto 24 horas todos os dias da semana e reúne milhares de pessoas de todo o país e muitos visitantes estrangeiros. / Nina Fideles/ Brasil de Fato


São sete gigantes pátios, inúmeros locais de oração e diversas instalações, como a Universidade de Ciências Islâmicas, seminários, cemitério, museus e diversos pontos de chá, que são distribuídos gratuitamente, 24 horas por dia, por um grande corpo de voluntários. Uma beleza indescritível e que nenhuma imagem é capaz de captar. Foi nesse local que todas nós buscamos dialogar na mesma língua, sem palavras. Nem inglês, nem espanhol, nem farsi.

A viagem chegou ao fim com muitas informações a serem digeridas e um olhar mais qualificado sobre a cultura iraniana. Me parece ainda mais urgente e necessário questionar a forma como a mídia ocidental constrói suas narrativas sobre o Oriente Médio. É preciso romper com a cobertura enviesada, que ataca valores e se apropria de elementos culturais e religiosos para justificar ações violentas, racistas e sanguinárias – vide o genocídio praticado por Israel contra o povo palestino. 

E, para aqueles que atuam com o jornalismo, é necessário ter ainda mais responsabilidade e que não deixemos de nos posicionar perante as injustiças e inverdades. Obviamente, não é uma tarefa fácil. O poder da mídia ocidental é estridente, mas não devemos – nem podemos – nos calar.

Edição: Geisa Marques e Rodrigo Chagas