Do Planalto até Gaza

Por que grupos neopentecostais brasileiros defendem expansão territorial de Israel

Longe de ser um grupo monolítico, os evangélicos no Brasil apresentam diversidade teológica, cultural e social

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
Apoiador de Israel, Feliciano iniciou uma movimentação inicial que logo teria forte poder na política brasileira - Marcelo Camargo/Agência Brasil

A Câmara dos Deputados em Brasília testemunhou, na terça-feira (17), discussões acaloradas que quase resultaram em agressões físicas entre congressistas. Impedidos pela Polícia Legislativa, deputados passaram a trocar xingamentos e acusações variadas, com cenas que se assemelhavam a crises nacionais anteriores, como o julgamento que resultaria no golpe contra a então presidente Dilma Rousseff.

O bate-boca, contudo, tinha motivação mais distante: deputados debatiam como o Brasil devia responder as recentes ondas de violência entre Palestina e Israel, com discordâncias que iam desde como definir o grupo Hamas, até qual seria o papel do país como presidente rotativo do Conselho de Segurança da ONU.

A entrada de discussões sobre o Oriente Médio em geral, e da Palestina e de Israel em particular, no cenário doméstico brasileiro é um fenômeno relativamente novo. Porém, compreender as razões pelas quais nações e populações tão distantes passaram a ser símbolos de organizações políticas em território nacional é uma forma importante de entender modificações na política do país, a ascensão do conservadorismo e as interações entre coletivos religiosos e grupos de poder.

Entre Teerã e Tel Aviv

O Brasil possui relações históricas com o Oriente Médio, com fluxos migratórios importantes desde o século XIX. As discussões sobre nações da região, de modo geral, ficaram concentradas em círculos diplomáticos. O Brasil manteve relações bastante amplas com a região durante a Guerra Fria - mas concentrou suas ações em movimentações econômicas e o envio de poucos observadores militares em momentos de crise, como no Suez, por exemplo. Grupos progressistas no Brasil, além disso, estabeleceram relações próximas com o movimento palestino, com apoios variados e trocas de informação.
    
A ordem de grandeza e a intensidade das relações mudou consideravelmente com os primeiros dois governos Lula. Nesse período, o Oriente Médio emergiu como um foco estratégico para alavancar o Brasil como uma figura central no palco global. A região passou a ser vista não apenas como um terreno para diversificar os laços comerciais do país  - mas também para demonstrar as novas vontades de mediação de Brasília.

Sob a liderança de Lula, a região ganhou destaque nas discussões da diplomacia brasileira, posicionando-se firmemente entre as prioridades dos países emergentes, com uma abordagem alinhada à visão Sul-Sul que caracterizou a diplomacia naquele momento. O então chanceler Celso Amorim passou a incluir capitais do Oriente Médio - como Damasco e Beirute - em suas viagens internacionais pela região, com cargos diplomáticos nesses países passando a ser disputados por diplomatas brasileiros.

 A tentativa mais potente de demonstrar os novos rumos do Brasil na região se deu com a tentativa falha de Brasília de mediar um acordo nuclear com o Irã, em conjunto com a Turquia, em 2010. As informações sobre o tema, mesmo mais de 10 anos depois, ainda não estão completamente disponíveis. Naquele momento, o Irã vinha negociando com o governo do norte-americano Barack Obama um complexo programa de retomada diplomática entre os dois países, que envolvia a suspensão das sanções econômicas estadunidenses, ao mesmo tempo em que Teerã criaria ferramentas para tornar seu programa nuclear mais transparente.

A ação brasileira, que teria o salvo-conduto dos EUA, buscava o envio de material radioativo iraniano para a Turquia, que enriqueceria o urânio e retornaria para o Irã. Com isso, Teerã não desenvolveria ferramentas tecnológicas que posteriormente poderiam ser atualizadas para o desenvolvimento de artefatos nucleares, ao mesmo tempo em que poderia empregar os produtos para questões médicas. O Brasil e a Turquia teriam conseguido convencer o Irã do acordo - mas ele teria sido boicotado posteriormente pela Casa Branca. Lula, naquele momento, fez declarações fortes contra o governo Obama e as relações entre Brasília e Washington atingiram um dos piores níveis em décadas.

Se a expansão diplomática do governo brasileiro, naquele momento, gerou repercussão internacional, com debates globais sobre a razão do insucesso do protagonismo de Brasília, no campo doméstico a situação foi ainda mais conturbada. Deputados da oposição passaram a criticar abertamente a política externa do governo, com notável centralidade em congressistas ligados a grupos neopentecostais.

O deputado e pastor Marcos Feliciano, por exemplo, passou a dedicar seus discursos para apontar o que seria uma decisão temerária do Brasil, se imiscuindo em conflitos que não nos diziam respeito. Ao mesmo tempo, reforçava que uma aproximação com o Irã significaria dar as costas à suposta única democracia da região: Israel. Feliciano, que continua reforçando seu apoio a Israel ainda hoje, representava uma movimentação inicial que logo teria forte poder na política brasileira: a combinação do movimento neopentecostal e suas interpretações sobre o mundo. Esta evolução religiosa e política no Brasil, marcada por líderes como Feliciano e seu apoio inabalável a Israel, preparou o terreno para uma profunda transformação na paisagem espiritual e política do país. Em meio à variedade cultural e religiosa do Brasil, um fenômeno notável começou a se desenrolar.

Mudança de fé

Apesar de ser uma das nações com a maior população católica romana do mundo, o Brasil tem visto uma transição religiosa acelerada. Nos anos 1970, impressionantes 92% da população se identificavam como católicos. No entanto, em 2010, essa porcentagem caiu para 64%.

Paralelamente a essa queda no catolicismo, houve um crescimento marcante nas organizações evangélicas, especialmente entre os frequentadores de igrejas pentecostais e neopentecostais. Em 2010, estas denominações já representavam mais de 22% da população brasileira.

Este crescimento não se limitou apenas ao aspecto religioso, mas também transbordou na esfera política. Desde 1986, os evangélicos pentecostais têm buscado consolidar sua presença crescente na sociedade através da representação política e do acesso a esferas de poder. Este movimento para a política foi impulsionado pela crença de que a política precisa de uma forte moralidade pública e que as crenças, valores e símbolos religiosos devem ter um papel ativo na política.

É imperativo ressaltar que o universo evangélico é vasto e multifacetado, abrangendo uma miríade de denominações, crenças e práticas. Longe de ser um grupo monolítico, os evangélicos no Brasil apresentam uma diversidade teológica, cultural e social que reflete a riqueza e complexidade do próprio país. Portanto, qualquer análise que busque compreender o impacto ou influência deste grupo na sociedade brasileira deve abordá-lo em sua totalidade, considerando suas nuances e particularidades. Subestimar ou generalizar essa complexidade seria não apenas um equívoco, mas também uma falha em reconhecer a profundidade e variedade de vozes dentro desta comunidade.

Na interseção entre reflexões sobre Israel e o campo neopentecostal, as relações estão notadamente centralizadas em grupos como a Igreja Catedral do Avivamento, do já citado Feliciano, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, do pastor Silas Malafaia e a Igreja Universal do Reino de Deus, do bispo Macedo. Representantes de um campo específico da fé neopentecostal, pastores, lideranças políticas e fiéis de tais denominações passaram a constituir Israel e seus símbolos como elementos centrais para a sua teologia e prática religiosa. Nesse contexto, Israel não é apenas uma localidade geográfica, mas também uma representação espiritual e teológica que ocupa um lugar de destaque na cosmovisão neopentecostal de certos grupos. Esta conexão com Israel vai além do mero simbolismo; é manifestada em peregrinações a locais sagrados, na incorporação de símbolos judaicos nas práticas litúrgicas e até mesmo na adoção de rituais e festividades.

O apoio a Israel, para essas denominações, é visto não apenas como uma questão de alinhamento teológico, mas também como uma extensão de sua missão divina. A interpretação escatológica de certas passagens bíblicas, particularmente aquelas relacionadas ao fim dos tempos e ao papel de Israel na consumação dos eventos proféticos, é central para essa relação.

Dentro dessa lógica, a experiência Israelense se manifesta politicamente com o apoio de tais políticos às pautas caras a Tel Aviv em território nacional, como na já mencionada disputa com o Hamas - mas principalmente na constituição e adoção de características que seriam tipicamente Israelenses e que deveriam ser adotadas pelo Brasil. Em uma lógica de “Israel imaginada”, a nação do Oriente Médio é homogeneizada e simplificada, reforçando características que tais denominações consideram caras. No que podemos chamar de  sionismo cristão, adota-se uma postura política e religiosa que advoga pela força militar de Israel e da sua expansão territorial. Essa perspectiva é fundamentada na crença de que Israel não só possui um papel central nas profecias bíblicas, mas também deve ser protegido e fortalecido como um bastião da fé judaico-cristã. Muitos defensores do sionismo cristão veem a segurança e prosperidade de Israel como intrinsecamente ligadas ao cumprimento de promessas divinas, e, por consequência, acreditam que apoiar Israel é uma extensão de sua fé e missão religiosa. Essa postura tem influenciado decisões políticas, alianças internacionais e a forma como certos grupos no Brasil percebem e interagem com o cenário geopolítico do Oriente Médio.

A ascensão de Jair Bolsonaro ao poder no Brasil intensificou a notoriedade do apoio dos grupos neopentecostais a Israel. Bolsonaro, que contou com o respaldo significativo de líderes e fiéis dessas denominações religiosas, consolidou sua relação com Israel de maneiras simbólicas e práticas. Um dos gestos mais emblemáticos de seu compromisso com Israel foi o seu batismo nas águas do Rio Jordão, um ato que ressoou profundamente com sua base evangélica. Além disso, Bolsonaro estabeleceu uma relação próxima com o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, sinalizando uma aproximação política e ideológica entre os dois líderes e seus respectivos países.

O governo Bolsonaro chegou a sinalizar a intenção de transferir a embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém, emulando um movimento similar feito pelos Estados Unidos sob a presidência de Donald Trump. Tal decisão, embora não concretizada, demonstrou o alinhamento do Brasil com uma visão particular de Israel, que enfatizava três características homogeneizantes: o já mencionado sionismo cristão e a proteção da religião, o militarismo da sociedade e uma economia de cunho neoliberal.

A tríade referida é composta, primeiramente, pelo judaísmo e a proteção da religião, que destaca a importância da fé como pilar central da identidade e cultura israelenses. Em seguida, o militarismo da sociedade israelense, que é percebido tanto em sua história quanto em sua realidade atual, com o serviço militar obrigatório e a constante necessidade de defesa frente a ameaças regionais. Por fim, a economia neoliberal, de um pais que se orgulha de ser denominado uma nação startup e que enfatiza a desregulamentação e a promoção do livre mercado como meios de garantir o crescimento e a prosperidade. Essas características, quando observadas em conjunto, formam uma imagem de Israel que ressoa com as aspirações e valores de certos segmentos do eleitorado brasileiro, particularmente aqueles alinhados ao governo Bolsonaro e aos grupos neopentecostais que o apoiam.

A aliança entre grupos neopentecostais no Brasil e Israel, particularmente evidenciada durante o governo Bolsonaro, revela não apenas a complexidade das relações entre religião, política e identidade nacional, mas também a construção de uma "Israel imaginária". Esta visão homogeneizante e idealizada de Israel, muitas vezes descolada da realidade multifacetada do país, é construída a partir de certos símbolos e narrativas que ressoam profundamente com esses grupos religiosos.

Com a volta de Lula e do PT ao poder, o governo brasileiro agora enfrenta o desafio de equilibrar suas ambições diplomáticas internacionais com as realidades políticas domésticas. Ao buscar atuar como mediador no Oriente Médio, Lula não só terá que navegar pelas complexidades geopolíticas da região, mas também considerar o impacto de tais decisões no cenário interno. As alianças estabelecidas e os sentimentos cultivados em relação a Israel durante o governo Bolsonaro ainda ressoam em setores significativos da população, especialmente entre os grupos neopentecostais. Qualquer movimento no cenário internacional que possa ser percebido como um desvio dessas alianças anteriormente estabelecidas certamente terá repercussões políticas em casa. Portanto, a diplomacia de Lula no Oriente Médio não será apenas um jogo de equilíbrio entre nações, mas também um exercício cuidadoso de gerenciamento de expectativas e sensibilidades nacionais.


* Fernando Brancoli é professor de Geopolítica na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e autor de “Bolsonarismo: The Global Origins and Future of Brazil’s Far Right” (Rutgers University Press, 2023).

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato

Edição: Leandro Melito