Diversos manifestantes foram feridos por balas de borracha, bombas de efeito moral e spray de pimenta, nesta quinta-feira (19), numa ação do Batalhão de Choque da Brigada Militar (BM) na ocupação Kasa Okupa Cultural Jiboia, na Cidade Baixa, em Porto Alegre. Episódio aconteceu um dia antes de uma nova reunião com a Secretaria Municipal de Cultural e os moradores que aconteceria na manhã desta sexta-feira (20).
Não é a primeira vez que a ocupação é objeto de ação da Prefeitura Municipal de Porto Alegre. No dia 4 de outubro, uma escavadeira foi ao local e derrubou parte da estrutura do muro. Na ocasião, os integrantes da Kasa Okupa Cultural Jiboia se manifestaram contra a ação e o Executivo recuou.
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Dessa vez, a ação cumpria decisão judicial para a derrubada de um muro que separava o terreno da ocupação do Museu Joaquim José Felizardo, na rua João Alfredo, Cidade Baixa. Após a demolição da estrutura, as máquinas seguiram e derrubaram parte da moradia. A situação fez com que os moradores se indignassem, o que foi seguido da ação do Batalhão de Choque da Brigada Militar (BM).
Com dois anos de existência, a ocupação Kasa Okupa Cultural funciona como moradia para mulheres e população trans. O local fica em uma propriedade privada, que de acordo com a advogada Stéphani Fleck da Rosa, que representa a ocupação, ficou desocupado por mais de 15 anos. Ela explica que o processo de reintegração de posse anterior, que não teria escritura do imóvel, foi negado. "O imóvel tem patrimônio histórico, que a ocupação preserva ao contrário do antigo posseiro, inclusive com telhados e lonas que evitaram na chuva destruição maior."
De acordo com Stéphani o processo que o município ingressou para demolir o muro lindeiro com o museu Joaquim Felizardo foi realizado de forma ilegal em decisão liminar pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), sem realização de oitiva da ocupação e nem intimação. "Apenas ficou-se sabendo quando já comunicada a decisão de derrubada em segunda instância. O que ocorreu foi a demolição do muro com base em laudo apenas realizado pela prefeitura, pois mesmo a ocupação apresentando dois laudos técnicos dizendo que não seria necessário demolir o muro e especialmente sem demolir as casas junto", relata.
Apesar de não ser uma uma ação de despejo, a prefeitura definiu que o prédio precisava ser evacuado. Segundo o procurador-geral do município, Nelson Marisco, isso seria para a segurança dos moradores.
O procurador alega que a prefeitura entrou em contato com os moradores da ocupação diversas vezes para falar sobre a necessidade de demolição do muro. Ele ressalta que todo o processo foi acompanhado por um oficial de Justiça. Afirma que as pessoas moradoras não se dispuseram ao diálogo e a iminência de queda do muro justificou a ação. "Nós reiteramos pro juiz que especialmente os engenheiros da Secretaria da Cultura nos disseram que o muro iria ruir dependendo da quantidade de chuvas."
Local de cultura e acolhimento
Conforme descreve Stéphani, a ocupação é uma casa cultural e de acolhimento a pessoas LGBT aqui de Porto Alegre e região. "Um serviço que não tem na capital gaúcha. Há muitas pessoas LGBT em situação de rua. Além disso ocorre no local atividades culturais, artísticas, educacionais, terapêuticas e alimentares. A ocupação conta com horta comunitária", expõe.
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A coordenadora estadual do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM-RS), Ceniriani Vargas da Silva (Ni), que esteve o dia inteiro no local, reforça que os moradores que vivem ali, é uma população que já vive uma série de violências e de vulnerabilidades.
"Estão construindo um espaço de resistência importante para garantir sua própria existência também, é muito doloroso ver as pessoas entrando ali e chorando. Estão tentando se proteger. Estavam construindo um lugar de proteção, o mundo inteiro persegue eles. Isso para nós é uma violação dos direitos humanos. São pessoas que vivem um cotidiano extremamente difícil e agora demoliram sua casa, tudo, até o banheiro e a cozinha. Foi uma ação totalmente arbitrária e ilegal", afirma
Moradores foram surpreendidos pela manhã
Conforme relata Ni, a ação começou por volta das 9h, quando chegaram as retroescavadeiras, e o aparato estatal. Ela ressalta que havia uma reunião marcada com representantes da Secretaria Municipal de Cultura, a ser realizada nesta sexta para tentar mediar como seria feita a demolição do muro. "Ao invés de esperar a reunião e fazer essa conversa com o pessoal, apareceram do nada lá, com as máquinas, e foi aquilo. E aí a decisão era só da demolição do muro, eles chegaram lá com a choque e tiraram o pessoal de dentro de casa."
"Não houve notificação prévia, o que é direito, de 48 horas antes de qualquer ação feita. Depois de retirar o pessoal da ocupação, começaram a demolição, diversos apoiadores e advogados tentaram dialogar com o oficial de Justiça para ele se manifestar sobre porque retiraram moradores do espaço e esse se negou ao diálogo", relatam os moradores da ocupação.
A ação foi marcada por dois episódios de tensão. "Ao meio-dia, se fez um protesto pacífico sentando na porta do museu ao que a Brigada Militar respondeu com repressão, ocasionando o ferimento de uma pessoa por bomba de efeito moral e várias por spray de pimenta", expõe.
Segundo os moradores, os manifestantes retornaram para frente da ocupação e o pessoal que estava apoiando montou uma lona para poder almoçar na sombra e logo a brigada veio provocativamente demandar que retirassem sob a desculpa de atrapalhar a rua, que estava sendo bloqueada de esquina a esquina pela polícia militar e municipal, e portanto a lona não atrapalharia nada.
"Minutos depois começaram a demolição das paredes adjacentes ao muro, as quais como grande parte do muro, não apresentavam perigo de queda, junto com a estrutura de madeira e telha que a comunidade da ocupação tinha montado meses antes, que não tinha sido afetada pela demolição e poderia ter ficado sem problema nenhum. Ou seja, o que era pra ser uma derrubada de um muro, foi a derrubada dos cômodos inteiros, sem cuidado com o que havia sido construído e utilizando duas retroescavadeiras."
De acordo com os moradores foi perdido 50m de muro e oito paredes internas, que eram uma cozinha, um banheiro, um dormitório/atelier e um espaço de convivência. "Ante tanta injustiça, as pessoas começaram a gritar contra a demolição dessas partes e algumas entraram na ocupação para registrar a perda material dos cômodos, ao que a BM respondeu com uma repressão ainda mais forte do que a anterior. Nesse momento, tentaram prender uma das pessoas moradoras, sem sucesso, e também seguiram jogando spray de pimenta, bomba de efeito moral nas pessoas que estavam presentes."
Segundo relatam os moradores, a BM teriam perseguido as pessoas pelas ruas da Cidade Baixa, fazendo revistas ilegais e sem motivo nenhum, pois apenas estavam paradas ou caminhando pelas ruas, e nisso realizaram uma prisão.
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"Fecharam a rua até o final da tarde, impedindo que as pessoas conseguissem acessar a sua própria casa, deixando um clima de mais insegurança ainda para apoiadores e moradores do espaço. Só as 17h30 liberaram a rua e a casa para que os moradores pudessem voltar. O que aconteceu na ocupação foi uma tentativa de desocupação forçada por parte da prefeitura de Porto Alegre e do museu Joaquim José Felizardo, que possuem interesse econômico no espaço. Quando retornamos, encontramos escombros, os fios de luz, canos de água quebrados e danificados. Seguimos resistindo e pedimos todo tipo de apoio."
Vinte feridos e dois detidos
Atena Beauvoir Roveda, militante do PSOL e ativista trans, foi uma das pessoas que ficaram feridas no confronto. Ela pisou em uma das bombas durante a ação policial, que explodiu na hora. Ela foi encaminhada para o Hospital de Pronto Socorro pelo SAMU.
"Eu fui até o local por volta das 10h, quando fiquei sabendo da situação. O clima era de muita tensão porque eles iam retomar a derrubada do muro sendo que existe uma negociação de mediação para sexta-feira. Tinha um caminhão do choque ali, havia uma sensação de vulnerabilidade", relata a vereadora.
Ela expõe que por volta do meio-dia quando os manifestantes e moradores se sentaram em frente ao portão da entrada do museu para evitar que outra retroescavadeira entrasse no local, um brigadiano teria mandado a tropa de choque vir para cima. "Além deles jogarem os spray de pimenta, jogaram muita bomba de dispersão e as balas de borracha. Nas bombas de dispersão eu desviei, fui para calçada e pisei em uma das bombas. Fiquei sem sentir o pé, dor na coxa."
De acordo com a advogada da ocupação, 20 pessoas ficaram feridas e duas detidas. Segundo Atena, algumas pessoas foram agarradas pela blusa, jogadas no chão e outras pessoas que foram defender levaram balas de borracha. "A gente esperava que o desfecho fosse comunicação com a prefeitura. Eles ultrapassaram os limites com os direitos humanos e têm que ser responsabilizados. Boa parte das pessoas que estavam ali eram pessoas trans, no país que mais mata pessoas trans eles fazerem isso é uma tentativa de massacre."
Ao Sul21, o subcomandante do 9º BPM, Major Riccardi, que coordenou a ação, disse que a polícia foi alvo de hostilização pelos manifestantes que não aceitaram o pedido de saída do local. "Quando eu vi, estava bastante cheio aqui, com hostilização, principalmente para a Brigada Militar. Nós estamos aqui para garantia da ordem. Eles não permitiram o acesso da máquina e foi feita mais uma vez uma verbalização, da minha parte, como o comandante da operação, para que se retirassem. Então foi montada a linha do nosso pelotão de controle de distúrbios. Foi feita a utilização do gás, que é o primeiro instrumento de uso da força", expôs
"Depois começou a hostilização com apedrejamento contra o efetivo do Batalhão de Choque, então foram utilizadas todas as técnicas de controle. Eles invadiram um perímetro isolado por nós. Eu mesmo fui objeto de hostilização física, a tropa teve que agir mais uma vez", declarou, sobre a segunda ação de repressão. Segundo ele, um policial foi ferido por uma pedra.
A advogada da ocupação ressalta que mesmo com a ordem judicial ter sido postergada pelo juízo de primeiro grau, a ação desta quinta-feira ocorreu por um policial e não oficial de Justiça, com uso máximo da força, especialmente quando moradores da ocupação tentaram retornar para sua moradia. "Foi impedida a entrada para retirada de seus pertences. Foram demolidos, além do muro, telhados, portas, janelas, paredes das casas, canos, pias. A luz ainda está desligada."
Sobre a ordem Judicial
A decisão judicial desta quarta-feira (18) exige a reconstrução imediata da estrutura, o que deve ser feito na sexta-feira (20). "Após a derrubada, caberá à municipalidade providenciar a imediata reconstrução do muro do imóvel lindeiro, em material original ou similar, e, ainda, acompanhado de responsável técnico para tanto", diz o documento.
No entanto, as paredes da casa não serão refeitas, segundo o PGM. O procurador destaca que já havia um processo do proprietário pedindo a desocupação do imóvel e acrescenta que depois desta quinta-feira o município também entrará com pedido pela reintegração de posse.
"O imóvel não é da prefeitura. Como é que eles vão entrar com a reintegração de posse?", questiona Ceniriani. "A prefeitura não tem poder de Justiça. Eles não podem tomar uma decisão dessa de tirar as pessoas, com polícia e tudo, e não deixar voltar. Uma tentativa de reintegração de posse totalmente ilegal. Eles não tinham autorização pra tirar as pessoas à força de dentro de casa com a choque e derrubar a casa das pessoas. É uma população que já vive vulnerável, que sofre crimes de ódio todo dia na rua. E a prefeitura que deveria proteger essas pessoas vai lá e faz essa violação gigantesca de direitos humanos", complementa
Conforme observa Stéphani, não foi uma reintegração de posse, mas destruíram a moradia. "Não teve defesa pela ocupação. Agora a defesa será no sentido de garantir a reconstrução do muro e de parte da habitação destruída. Que o município seja responsabilizado. Que a Brigada Militar seja responsabilizada pelo abuso de autoridade e violência extrema, que feriu muitas pessoas moradores e LGBT."
A vereadora Atena explica que os moradores da ocupação tem legalmente a posse do espaço. "O próximo passo é fazer uma força tarefa para que se reconstrua o espaço da cozinha, do dormitório e fazer um mutirão muito grande para gente auxiliar eles e elas. Vamos ter que dar conta desse jeito e vai dar certo", conclui.
A comunidade criou uma vaquiinha virtual para a reconstrução do espaço. Para contribuir acesse esse link.
Ente os parlamentares presentes na ação estavam o deputado estadual Matheus Gomes (PSOL) e o deputado federal Dionilso Marcon (PT).
O que diz a prefeitura
Na manhã desta quinta-feira (19), foi concluída a demolição de muro vizinho ao Museu Joaquim José Felizardo (rua João Alfredo, 582 - Cidade Baixa) que estava ruindo. O museu é um dos equipamentos culturais da cidade e pertence ao município de Porto Alegre. A Procuradoria-Geral do Município (PGM) acompanhou o cumprimento do mandado judicial que autorizou a derrubada. A decisão liminar foi do desembargador Paulo Sérgio Scarparo, da 17ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça.
O imóvel onde estava localizado o muro é inventariado e encontra-se invadido. A demolição iniciou no último dia 4 de outubro, mas teve que ser interrompida porque os ocupantes do imóvel mostraram-se contrários.
De acordo com o procurador André Marino Alves, a ação foi ajuizada porque os proprietários e ocupantes do imóvel não tomaram providências com relação ao muro, que apresentava risco aos ocupantes do imóvel e aos visitantes do Museu. Laudo da Defesa Civil demonstrou que o muro estava prestes a cair. O Secretário municipal de Cultura e Economia Criativa, Henry Ventura, e o procurador André Marino Alves acompanharam o trabalho de demolição.
Abaixo a carta pública divulgada pelos moradores da ocupação
A Ocupação Jiboia, espaço de luta e de moradia de mulheres e pessoas LGBTQI+ em Porto Alegre, vem sendo ameaçada e as pessoas que vivem nesse espaço vêm sofrendo violação de seus direitos sistematicamente durante todo o processo que envolveu a demanda por remoção do muro lindeiro ao Museu de Porto Alegre, que está sob gestão do prefeito Sebastião Melo, um inimigo dos movimentos populares e da luta por moradia na cidade.
É importante que se diga, as pessoas que vivem na ocupação constroem uma luta que é a luta diária pela vida das mulheres e das pessoas LGBTQI+ em todo o país, uma luta pelo território e por moradia, pelo direito à cidade e à vida, à educação, saúde, transporte, uma luta pelo direito de ser quem se é numa das cidades do RS onde mais pessoas são mortas por defenderem viver como são.
Esse espaço é espaço de construção diária de política pública para parte da nossa população que, no geral, não tem acesso a políticas públicas, justamente porque se tornou território e moradia dessas pessoas que, na falta de habitação, ocuparam um espaço vazio como vários que existem na região central da cidade, para construírem um espaço coletivo seu, para terem onde viver em segurança.
A ameaça ao espaço e às pessoas vem se intensificando nesta semana, principalmente no dia de ontem, quando, alegando terem ordem judicial para assim proceder, uma equipe responsável da prefeitura entrou com uma retroescavadeira pelo portão do museu e demoliu parte do muro que divide o território do museu com o território da ocupação, sem notificação, mandado específico, e sem garantir qualquer direito das pessoas que ali residem, ao serem acordadas na primeira hora da manhã com o muro sendo derrubado por cima do seu espaço.
No momento, abrir esse processo para mediação é uma saída para fazer cessar os abusos, o tensionamento com a guarda municipal que aconteceu durante todo o dia de ontem e as violações de direitos contra as pessoas que ali vivem.
Sabemos que essa é uma prática de expulsão de comunidades usada mais de uma vez contra o povo pobre e trabalhador da cidade, e que faz parte da forma como o governo Melo tem tratado as mulheres e a população LGBTQI+ durante anos. Em linhas gerais, enquanto a população luta para reconstruir cidades devastadas pelas enchentes, incluindo Porto Alegre, o prefeito avança com uma retroescavadeira contra o espaço da comunidade, que sem seu território teria ficado sem proteção contra o ciclone e as chuvas. Uma prefeitura que não constrói política pública e expulsa dos espaços quem busca saída para essa situação.
Mas a cidade é nossa! É do povo trabalhador, das mulheres, da população LGBTQI+ que constrói seus espaços com luta e trabalho todos os dias e ainda tem seus direitos negados sistematicamente por governos que apenas conhecem a lei da especulação imobiliária e do lucro acima da vida e a todo custo. Ocupação Jiboia resiste!
* Com a colaboração de Maria Helena dos Santos e informações do Sul 21 e GZH.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Katia Marko