O presidente Lula utilizou as teses do julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) que considerou inconstitucional o marco temporal e outras decisões, como convenções da Organização Internacional do Trabalho, para vetar 20 artigos do projeto de lei do marco temporal. Apesar disso, o petista manteve dois artigos que, na avaliação de representantes do movimento indígena, abrem brecha para a exploração econômica de terras indígenas por pessoas que não pertencem às comunidades tradicionais.
No texto, publicado em edição extra do Diário Oficial da União na noite de sexta-feira (20), o presidente comunica ao presidente do Congresso Nacional os motivos de cada um dos vetos.
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Para especialistas ouvidos pela reportagem, ao se basear nas teses do julgamento do Supremo Tribunal Federal, Lula torna mais difícil qualquer questionamento sobre uma eventual inconstitucionalidade do texto sancionado por ele e abre a possibilidade para os representantes do movimento indígena recorrerem ao Supremo caso os vetos sejam derrubados. "O que se sinaliza é que essa discussão irá retornar para o Supremo Tribunal Federal, e já estamos analisando as ações cabíveis caso isso vá para o STF", afirma o coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Maurício Terena. Ele lembra que já há previsão de que o Congresso vote e derrube os vetos de Lula na próxima quinta-feira (26).
Vetos a teses polêmicas
Dentre os trechos vetado pelo presidente estão o artigo que traz justamente a tese do marco temporal, que considera que somente deveriam ser reconhecidas como terras indígenas aquelas que já estivessem ocupadas por indígenas na data da promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988. A tese foi reconhecida como inconstitucional pela maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal no mês passado, mas em uma afronta ao tribunal, o Congresso aprovou um projeto de lei uma semana depois do julgamento, estabelecendo a tese defendida por ruralistas. Na ocasião da votação no Senado, parlamentares da base governista alertaram que tal postura iria acabar fazendo o tema voltar do Supremo, já que Lula não poderia sancionar um projeto considerado inconstitucional pelo STF.
Dentre outros pontos polêmicos vetados estão o artigo que vedava a ampliação de terras já demarcadas e o artigo que previa que os indígenas poderiam perder sua terra caso fosse constatada a mudança de "traços culturais" destes povos, além do trecho que estabelecia que as intervenções militares em áreas indígenas poderiam ser feitas sem consulta prévia às comunidades.
Para o conselheiro da regional Sul do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Roberto Liegbott, se os vetos de Lula forem derrubados pelo Congresso a inconstitucionalidade será "plena". "Com a eventual derrubada dos vetos, todos que têm a possibilidade pela Constituição de entrar com Adin [Ação Direta de Inconstitucionalidade], poderão ingressar", afirmou. Na avaliação dele, porém, o presidente Lula manteve dois artigos polêmicos no texto sancionado que abrem brecha para a exploração econômica das comunidades indígenas por pessoas de fora.
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São eles os artigos 20 e 26. O artigo 20 prevê que "o usufruto dos indígenas não se sobrepõe ao interesse da política de defesa e soberania nacional" e o 26 estabelece que "é facultado o exercício de atividades econômicas em terras indígenas, desde que pela própria comunidade indígena, admitidas a cooperação e a contratação de terceiros não indígenas".
"Esse texto rompe com o usufruto exclusivo das terras pelos indígenas e intensificará o assédio às comunidades, suas lideranças, por aqueles setores interessados em 'acordos de cooperação', tendo em vista arrendamentos e outras formas de especulação das terras para o plantio de produtos transgênicos, criação de gado, ou ainda viabilizar a terceiros à caça, pesca, garimpo, extração de madeira”, afirma Liegbott em texto encaminhado à lideranças indígenas.
Reação de ruralistas
Os vetos de Lula desidrataram a proposta aprovada pelo Congresso com amplo apoio da bancada ruralista, que reagiu na noite de ontem ao texto sancionado com vetos. Em nota divulgada nesta sexta, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) afirmou que os vetos serão derrubados pelo Congresso Nacional e sugeriu que os vetos do presidente poderiam estimular conflitos no campo.
"Diante das decisões recentes responsáveis por estimular conflitos entre a população rural brasileira –indígenas ou não, em desrespeito à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal, a FPA não assistirá de braços cruzados a ineficiência do Estado Brasileiro em políticas públicas e normas que garantam a segurança jurídica e a paz no campo. Buscaremos a regulamentação de todas as questões que afetam esse direito no local adequado, no Congresso Nacional", diz a nota.
A frente conta atualmente com 303 deputados federais e 50 senadores em exercício, o que já é suficiente para aprovar ou derrubar a maioria dos projetos das duas casas do Legislativo.
A ex-ministra da Agricultura e também integrante da bancada ruralista, senadora Tereza Cristina (PP-MS) afirmou em seu perfil oficial no X (antigo Twitter) que o marco temporal foi destruído na prática. "O projeto da Câmara e do Senado foi, na prática, destruído, 'restaram' alguns artigos acessórios. Vamos continuar a lutar pela segurança jurídica e pela paz no campo. E já estamos unidos, trabalhando na derrubada do veto presidencial", afirmou a parlamentar.
Edição: Thalita Pires