Análise

Da celebração à vigília: parece haver sabedoria suficiente para evitar uma catástrofe na Argentina

Quem sabe, o primeiro passo seja focar no que poderia ser um movimento tectônico na subjetividade popular

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Sergio Massa e Javier Milei vão disputar o segundo turno nas eleições presidenciais na Argentina, em novembro - JUAN MABROMATA, Tomas CUESTA / AFP

Quando o assunto é política, a Argentina é uma verdadeira caixinha de surpresas. E, quando está em crise, mais parece uma montanha-russa vertiginosa. O resultado das eleições gerais do último domingo (22) deixou, mais uma vez, conhecidos e desconhecidos perplexos. Começando por nós mesmos, que não esperávamos aquilo. E significou uma reviravolta em relação às primárias de agosto. Uma mudança de tendência, em grande parte positiva. Um poderoso suspiro de alívio democrático. Um acontecimento repleto de significados que precisam ser interpretados.

A mensagem mais importante das urnas é a estagnação do desempenho eleitoral de Milei. A onda libertária freou de repente. E isso aconteceu enquanto a aceleração da crise social oferecia um terreno fértil para um crescimento exponencial.

O segundo fato que ninguém previu foi o despertar do gigante peronista, pela enésima vez. Desta vez ele conseguiu o milagre de deixar em segundo plano as agruras econômicas da maioria, para dar a vitória ao ministro-candidato Sergio Massa. E garantir ao governador Axel Kicillof uma reeleição confortável.

A terceira conclusão, sim, era previsível, mas ainda assim causa impacto por sua contundência: o fracasso da coligação macrista, incapaz de ler as movimentações no cenário de conflito atual, o que poderia levar à sua desintegração.

Mas, para compreender os motivos dessa notável alteração no campo de batalha, talvez seja necessário olhar além da prateleira de ofertas eleitorais. E, quem sabe, o primeiro passo seja focar no que poderia ser um movimento tectônico na subjetividade popular.

A primeira interpretação, oferecida pelos meios de comunicação, garante que o medo venceu a pulsão de mudança. Poderíamos ir um pouco mais longe e arriscar a hipótese de que um sentimento ancestral de autopreservação coletiva foi ativado. Ninguém ignora que o presente é calamitoso, mas ainda parece haver sabedoria suficiente para evitar uma catástrofe. Não é pouca coisa, neste mundo cruel, reafirmar a fé num axioma fundamental da política democrática, em sua acepção mais plebeia: o povo nunca se engana.

Contra todo e qualquer triunfalismo

Há muitos motivos para passar rapidamente da celebração à vigília. O primeiro e mais urgente: no próximo dia 19 de novembro haverá segundo turno e, por enquanto, nada está definido. Acabou a eleição dos terços, em que o fundamental era manter um piso elevado. E vem aí a final, em que vencerá quem conseguir furar o teto. Nesse contexto, a soma dos votos da direita (Milei + Bullrich) ultrapassa os 50%. E o partido de situação precisa crescer pelo menos 13 pontos para aspirar a continuar governando.

:: Vitória de Massa e derretimento de Milei: tudo pode acontecer no segundo turno da Argentina ::

Serão quatro semanas de guerra aberta para ver quem consegue desestabilizar o rival. O novo ídolo peronista é um político profissional, demonstra uma sede desenfreada de poder e está a um passo de coroar sua ziguezagueante carreira política; para isso não hesitará em usar toda a sua artilharia. Ele possui também uma fonte inesgotável de recursos, não só porque controla o aparato estatal, mas também porque é respaldado pelo núcleo duro do poder econômico local. E conta ainda com sólidos pontos de apoio no cenário internacional, como os governos do Brasil e dos Estados Unidos.

É um instrumental considerável para persuadir ou, caso não seja possível, extorquir os terceiros em disputa, a começar pelo cordobanismo de Juan Schiaretti (6,78%), seguido pelos pombos do Juntos por el Cambio (e por alguns falcões também). A pressão pode perfurar até mesmo a coligação La Libertad Avanza e forçar rupturas nas fileiras inimigas. No entorno do ministro da Economia, há quem insinue a possibilidade de que o candidato ultraliberal imite o seu admirado Carlos Saúl Menem e desista do segundo turno.

Acabou a eleição dos terços, em que o fundamental era manter um piso elevado. E vem aí a final, em que vencerá quem conseguir furar o teto. Nesse contexto, a soma dos votos da direita (Milei + Bullrich) ultrapassa os 50%. E o partido de situação deve crescer pelo menos 13 pontos para aspirar a continuar governando. 

As forças de Javier Milei sabem que as chances dele dependem de sua capacidade de aprofundar a deterioração da governabilidade e assim convencer a metade mais um da necessidade de mudança, mesmo que dolorosa. A principal arma para esta nova etapa da campanha poderia ser Mauricio Macri, que seria capaz de convencer um segmento considerável do establishment de que a doença é pior do que o remédio. Não devemos descartar o apelo à violência para configurar um cenário caótico.

Além dessa disputa que veremos se desenrolar nos submundos da política, já foram lançadas as cartas retóricas para convencer os eleitores: a proposta de um governo de unidade nacional, contra a tentativa de união da oposição em torno do clichê do antikirchnerismo visceral.

Memória e equilíbrio

O resultado de domingo poderia muito bem ser interpretado como um acontecimento que colocou em xeque uma afirmação que parecia ter se tornado óbvia: "a sociedade enveredou pela direita". Apesar do imenso e justificado mal-estar com um progressismo que não conseguiu resolver problemas – e até os agravou –, a cidadania conseguiu evitar que esse descontentamento fosse manipulado para destruir conquistas históricas de forte teor democrático e popular.

De imediato, tirou de Milei aquela aura de presidente inevitável que lhe concedia o poder de destruir a moeda argentina e preparar o terreno para a terapia de choque. E, em sua primeira leitura do resultado, obrigou o ultraliberal a dizer que não planejava revogar direitos. Mesmo que se trate de uma promessa bastante inverossímil.

O resultado de domingo poderia muito bem ser interpretado como um acontecimento que colocou em xeque uma afirmação que parecia ter se tornado óbvia: "a sociedade enveredou pela direita".

Pois bem, mas o que definitivamente se deslocou à direita foi o sistema político. Basta dar uma olhada na entrada massiva de figuras de extrema direita no Congresso Nacional. E tem mais: para aqueles de nós que acreditam que a democracia só pode ser consolidada com transformações profundas na atual estrutura de poder, não é aconselhável alimentar esperanças em uma eventual presidência de Sergio Massa, que representa o setor mais conservador do peronismo.

Contudo, a vitória categórica de Kicillof na estratégica província de Buenos Aires representa um contrapeso promissor que dinamiza a situação e reabre o horizonte para novas composições de uma justiça social que não pode mais continua sendo sacrificada nos altares do possibilismo e da mediocridade.

Os resultados do dia 22 de outubro foram um respiro, quando tudo parecia indicar que a angústia iria nos derrubar. Esperemos que sirva para compensar o tempo perdido e colocar de volta no centro da mesa as reservas democráticas que permanecem latentes no seio de uma comunidade agoniada.