Após dificuldades do Conselho de Segurança da ONU em aprovar uma resolução para o conflito entre Israel e Palestina, a incompatibilidade de interesses em relação a crise no Oriente Médio ficou ainda mais acentuada no plano internacional. A crise foi inflamada pela dura retórica de países da região, como Irã e Turquia, em defesa da Palestina, e pelo início da invasão terrestre em Gaza e intensificação dos bombardeios de Israel contra Gaza.
Entre as potências do Conselho de Segurança, a divergência consiste fundamentalmente na recusa dos EUA, que reiteram um apoio irrestrito a Israel, de propor e aprovar um cessar-fogo imediato na região, fazendo apelo ao "direito de defesa" de Israel. Em contrapartida, os EUA e Reino Unido vetaram a resolução russa, que pedia "o estabelecimento imediato de um cessar-fogo humanitário" e condenava "toda a violência e hostilidades contra civis".
"[A resolução dos EUA] continua não contendo um apelo a um cessar-fogo. Não condena os ataques arbitrários contra civis e bens civis em Gaza. Não há nenhuma rejeição a quaisquer ações que visem garantir a movimentação forçada de civis. Este documento extremamente politizado tem claramente um objetivo: não salvar civis, mas reforçar a situação política dos EUA na região através da fixação de rótulos", declarou Vassily Nebenzia, representante da Rússia na ONU.
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No dia seguinte, enquanto o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, fazia um pronunciamento na quinta-feira (26) dando sinal verde para a ofensiva terrestre em Gaza, uma delegação do grupo Hamas realizava uma visita a Moscou. Apesar do Kremlin não dar detalhes sobre a inesperada visita, a mídia estatal russa relatou que a reunião teve como pauta a libertação dos reféns estrangeiros, capturados pelo grupo palestino no ataque a Israel em 7 de outubro.
O Hamas, por sua vez, comunicou que, durante uma reunião com o vice-ministro das Relações Exteriores da Rússia, Mikhail Bogdanov, foi apreciada a posição do presidente russo, Vladimir Putin, sobre o conflito palestino-israelense e os esforços da diplomacia russa. "A delegação do movimento apreciou muito a posição do presidente russo, Vladimir Putin, bem como os esforços da ativa da diplomacia russa", disse o Hamas em comunicado.
A recepção gerou duras críticas por parte da diplomacia israelense, que classificou o convite de altos funcionários do Hamas a Moscou como "um passo indigno" de apoio ao terrorismo. Vale lembrar que a Rússia – assim como o Brasil e a China – não classifica o grupo Hamas como organização terrorista.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o chefe do Centro de Análise e Previsão Política da Bielorrússia, Pavel Usov, observa que a relação favorável à Palestina por parte da Rússia tem um lastro histórico e que a posição é reforçada estrategicamente com o atual conflito.
"A União Soviética, e a Rússia nos últimos tempos, sempre manifestou uma posição anti-Israel, sempre apoiou países árabes por entender que Israel é uma presença estratégico-militar dos EUA na região. E agora a presença militar [norte-americana] na região está sob forte ameaça", afirma.
Segundo o analista, há um "entendimento no mundo árabe da fraqueza dos EUA, da sua incapacidade de reagir a ameaças" e isso poderia ter justamente motivado "em algum grau" a intervenção do Hamas em 7 de outubro.
O cientista político utiliza essa lógica para fazer um paralelo com a guerra da Ucrânia, no sentido da percepção de uma suposta fragilidade dos EUA em reagir por parte da Rússia: um diagnóstico da "crise na política externa norte-americana".
"Apesar da ajuda à Ucrânia ter em algum grau estabilizado a influência dos EUA, o fato de que o Ocidente permitiu a guerra da Ucrânia também é um atestado de sua fraqueza, pois a princípio ela foi possível porque a Rússia estava certa de que o Ocidente não reagiria - e o ataque do Hamas também foi o resultado da certeza dos países árabes, sobretudo o Irã, de que o Ocidente não será capaz de reagir", analisa Usov.
Por outro lado, a própria guerra da Ucrânia é um fator que dá um equilíbrio à posição de Moscou em relação à crise no Oriente Médio. Apesar dos gestos favoráveis à Palestina, a Rússia mantém uma posição ponderada no conflito, diferente de países do Oriente Médio, que condenam veementemente Israel por crimes contra os palestinos. Para o vice-diretor do Instituto de História e Política da Universidade Estatal Pedagógica de Moscou, Vladimir Shapovalov, isso se deve a um caráter particular das relações de Moscou com Tel Aviv.
"Um dos fatores muito importantes é que Israel é um dos poucos aliados dos EUA que consistentemente não adota sanções contra a Rússia. É claro que a Rússia não gosta do fato de que Israel simpatiza com o regime de Kiev na Ucrânia, mas ao mesmo tempo Israel mantém um distanciamento de um envolvimento ativo na coalizão anti-russa. A relação com Israel tem um papel importante para a Rússia", diz o analista ao Brasil de Fato.
Segundo ele, a divisão do conflito entre Israel e Palestina é tanta que, na prática, de um lado, todos os adversários da Rússia estão do lado de Israel, e, por outro lado, os países amigáveis e parceiros da Rússia defendem a Palestina. "Isso dá a impressão de que a Rússia deve estar de um lado da barricada, mas isso não acontece. A conjuntura que define isso, além das relações ímpares com Israel", acrescenta.
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Vladimir Shapovalov também destaca que, para a Rússia, há uma perspectiva estratégica em relação ao conflito Israel-Palestina de intensificar um "cansaço do Ocidente em relação à Ucrânia". De acordo com o analista, este desgaste já estava em curso, "mas agora o conflito entre Palestina e Israel torna-se um gatilho da aceleração do processo de regressão do apoio à Ucrânia".
"Isso não significa que essa ajuda será interrompida, mas ela terá um caminho descendente. O que esse fator representa para a Rússia? Nós vemos o quanto o Ocidente é negligente em suas avaliações e posições e está disposto a fechar os olhos para esses e aqueles crimes de guerra cometidos por Israel, e isso também é um importante trunfo para a Rússia em seu confronto informacional com o Ocidente", completa.
O cientista político Pavel Usov corrobora com as vantagens que Moscou pode obter com a escalada da crise no Oriente Médio. "Quanto mais a guerra no Oriente Médio durar, maior a probabilidade de que o conflito na Ucrânia seja congelado, e isso quer dizer que a Rússia deve vencer. Hoje a avaliação geral já é de que, apesar da Ucrânia ter recebido mísseis americanos de médio alcance, a continuação da contraofensiva claramente não está trazendo êxitos", argumenta.
Novo eixo geopolítico: Rússia-China-Irã
Entre os países vizinhos do Oriente Médio, o impasse internacional foi reforçado por contundentes declarações do Irã em apoio ao Hamas. O chanceler iraniano, Hossein Amir Abdollahian, fez um alerta na última quinta-feira (27) de que o conflito pode se espalhar pelo Oriente Médio.
"Se a operação de genocídio [de Israel] continuar, não iremos apenas assistir. Os Estados Unidos não serão poupados de fogo", disse o chanceler.
Abdollahian acrescentou que Teerã pede o fim imediato dos "crimes de guerra e genocídio" na Faixa de Gaza, o fornecimento de ajuda humanitária e o fim do deslocamento forçado da população do enclave palestino. "Isso pode ser incluído em qualquer resolução das Nações Unidas”, completou.
Os riscos de uma expansão do conflito na região revelam um redesenho de alianças e esferas de influência na política internacional em níveis globais. É o que aponta o cientista político Pavel Usov. Segundo ele, "hoje nós já podemos falar em um novo eixo geopolítico: Pequim-Moscou-Teerã".
"É um novo triângulo geopolítico que vai determinar processos globais no futuro próximo. Apesar de certas divergências nas relações entre Irã e Rússia, essas divergências ficaram quase nulas, considerando a ajuda militar que o Irã fornece à Rússia. Por isso essa atual tríade será um desafio-chave para os países do Ocidente", completa.
Edição: Thalita Pires