“Como presidente da FAFEG – Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara – sempre pugnou por medidas de ativismo subversivo entre os favelados.” Foi assim que o Departamento de Ordem Política e Social (Dops) da Guanabara descreveu a atuação de Etevaldo Justino em seu prontuário. Liderança da favela do Esqueleto, na zona norte do Rio, Etevaldo presidia a Fafeg quando, em dezembro de 1964, tentou organizar um plebiscito para demonstrar que os moradores não queriam sair do local. Etevaldo foi preso, o plebiscito não ocorreu, os moradores foram removidos à força e a favela deu lugar à Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) do Maracanã.
Com base nesse e diversos outros documentos produzidos pelas forças repressivas da ditadura militar, a Federação das Associações de Favelas do Rio de Janeiro (Faferj), que sucedeu a Fafeg, após o fim do estado da Guanabara, em 1975, demanda que o Estado brasileiro reconheça e repare a perseguição sofrida pela entidade naquele período. Nesta segunda-feira, dia 6 de novembro, no marco das atividades do Dia Nacional da Favela, comemorado no último dia 4, a entidade e a Defensoria Pública da União (DPU) ingressaram com o pedido na Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
Criada em 2002, a Comissão de Anistia já reconheceu e reparou mais de 50 mil casos de indivíduos que tiveram seus direitos violados por razões exclusivamente políticas. Esvaziada durante o governo Bolsonaro, a entidade foi reconstituída no início de 2023 e, entre as mudanças propostas, estabeleceu uma nova regra, a de que associações e coletivos também podem demandar anistia.
No primeiro pedido de reparação coletiva à Comissão de Anistia de autoria da DPU, a Faferj busca o reconhecimento de que as graves violações aos direitos humanos promovidas pelos militares não se restringiram a casos individuais e de que as violências também foram movidas contra a federação, com base em recortes de raça, classe e território. Na petição de 28 páginas, assinada pelo defensor público da União Bruno Arruda, a entidade e a DPU anexaram diversos elementos que consideram comprobatórios para sustentar o pedido e demandar um conjunto de reparações simbólicas, abrindo um novo capítulo na justiça de transição brasileira.
A política de remoções forçadas
A DPU recupera um trabalho que teve início com a Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro (CEV-Rio), que em seu relatório final, publicado em dezembro de 2015, dedicou um capítulo inteiro às violações de direitos humanos perpetradas pela ditadura nas favelas. Segundo a CEV-Rio, uma das principais formas de violência foi a política de remoções forçadas, que teria atingido mais de 140 mil pessoas entre os anos de 1962 e 1973. Para a DPU, esse processo foi “uma situação sistemática de graves violações aos direitos humanos”.
O projeto de erradicar definitivamente as favelas do horizonte do Rio de Janeiro teve início em 1962, quando o então governador do estado da Guanabara era Carlos Lacerda. “Durante décadas, entidades ligadas ao capital imobiliário e construtor elaboraram estudos para subsidiar as remoções de favelas, sempre destacando que seu foco deveria ser a zona sul e a Tijuca”, afirma o historiador Marco Pestana.
“Para que esse projeto se tornasse política pública”, destaca ele, “foi necessária uma conjuntura específica, que ocorre quando Carlos Lacerda, opositor de João Goulart, se torna governador da Guanabara”. Segundo o pesquisador, o golpe e a ditadura aprofundam e radicalizam as remoções, com mais agentes públicos e dinheiro envolvidos nessa política.
Autor do livro Remoções de favelas no Rio de Janeiro: empresários, Estado e movimento de favelados, publicado pelo Arquivo Nacional em 2022, Pestana aponta que os impactos das remoções na vida dos moradores eram diversos. “Significava a desarticulação total de um modo de vida já organizado, com a ruptura de laços sociais e familiares constituídos há gerações.” Ele destaca também o aumento do “ônus econômico”, pois as famílias tinham que pagar prestações dos imóveis para onde eram levadas e gastar mais com transporte.
Foi nesse contexto que em 1963 surgiu a Fafeg. “A proposta era construir uma entidade em que o protagonismo fosse dos próprios favelados”, explica a historiadora Juliana Oakim, que também colaborou com a CEV-Rio. “Em meados de 1962, com as mudanças na política para as favelas, a Fafeg aparece como uma tentativa dos moradores de se organizarem para fazer frente ao que estava por vir.”
Com o fim do governo Lacerda, em 1965, as remoções forçadas foram momentaneamente interrompidas. Em 1968, o ditador Costa e Silva criou a Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Grande Rio (Chisam). Vinculado ao Ministério do Interior, o novo órgão reativou o projeto. “A partir de 1968, a política de remoções deixa de ser algo apenas do governo estadual e se torna uma política do próprio regime militar”, explica Juliana, e a Fafeg responde com seu II Congresso e o lema “Urbanização, sim; Remoção, não”.
:: Após denúncia do Brasil de Fato, editor-chefe da EBC é demitido por negar a ditadura militar ::
Em janeiro de 1969, tiveram início as remoções mais emblemáticas do período, como as das favelas localizadas no entorno da lagoa Rodrigo de Freitas, área atualmente com apartamentos avaliados em milhões de reais. Comunidades como a da Ilha das Dragas, a da Catacumba e a da Praia do Pinto foram extintas, levando ao deslocamento forçado de milhares de pessoas. Foi nesse contexto que uma segunda investida contra a Fafeg e suas lideranças aconteceu.
Em fevereiro daquele ano, os dirigentes da associação de moradores da Ilha das Dragas foram sequestrados e dados como desaparecidos. A Fafeg se mobilizou e ligou os sequestros à resistência dos moradores, e quatro de seus líderes foram presos: Vicente Ferreira Mariano, Abdias José dos Santos, José Maria Galdeano e Ary Marques de Oliveira. Além de prisões, a violência estatal passou a incluir incêndios, como o da favela da Praia do Pinto, no Dia das Mães de 1969, que abriu caminho para a remoção integral da comunidade.
Controle da federação
As prisões de dirigentes de associações de moradores e da Fafeg que resistiam aos despejos levaram a uma escalada da repressão ditatorial. Documentos anexados à petição indicam que mesmo após as grandes remoções a perseguição à entidade continuava.
Naquele momento, lideranças tentavam reativar a federação aproveitando a abertura política e a ascensão de movimentos sociais em todo o país. Um desses líderes foi Irineu Guimarães, eleito para presidi-la em 1979.
A repressão ganhou novo alvo. O Dops chamava Guimarães de “ativista – revoltado contra o atual regime constituído”. Ao descrever por que ele era uma ameaça, o Dops apontava informações como: “periodicamente realiza reuniões na ‘Comissão de Luz’ e na Associação dos Moradores, incitando a população”.
:: Movimentos fazem ato diante do antigo Dops para lembrar o AI-5, que agravou a ditadura no país ::
O Dops registrou inúmeras movimentações de Guimarães: “o prontuariado esteve presente à concentração popular nas escadarias da ALERJ, contra o terrorismo de direita e pelo desmantelamento dos órgãos de repressão, mencionando o nome do DOI/CODI”, aponta um relatório policial. Em julho de 1980, Guimarães foi preso e respondeu a inquérito policial.
Em 2012, Guimarães foi declarado anistiado político pela Comissão de Anistia. No relatório do voto que aprovou a reparação, o órgão atestou que ele havia sido alvo de perseguição política. Assim como ele, outros dirigentes da Faferj ingressaram individualmente na Comissão de Anistia e foram reconhecidos como perseguidos políticos: Etevaldo Justino, preso em 1964, e Abdias José dos Santos, detido em 1969, tiveram suas demandas reconhecidas.
Anistia coletiva
Agora, a Faferj, no ano que marca os 60 anos da entidade, busca o reconhecimento de que a federação foi alvo do regime. “É muito importante para nós que a história da luta e da resistência da Faferj possa ser cada vez mais conhecida e contada”, explica Derê Gomes, coordenador de relações institucionais da organização.
“As favelas não costumam aparecer nas páginas dos livros didáticos, na historiografia mais consolidada e nas memórias oficiais”, ressalta Derê, que é historiador e esteve à frente da elaboração do pedido à DPU. “Por isso, é fundamental que uma instância do Estado brasileiro possa declarar oficialmente que a ditadura reprimiu de forma sistemática os moradores de favelas e suas iniciativas de auto-organização, como a Faferj”, conclui.
O instituto da anistia coletiva é uma novidade no regimento da Comissão de Anistia, e até hoje nenhum pedido foi a julgamento. Eneá de Stutz e Almeida, nomeada no início do ano como nova presidenta do órgão, explica que essa ideia já era discutida antes de 2016, em casos de territórios indígenas, mas a mudança só veio este ano, com a retomada, de fato, da comissão. “A ideia”, explica Eneá, “é demonstrar que o Estado autoritário não só perseguiu indivíduos, mas também elegeu determinadas coletividades como inimigas”. Para ela, esses processos deverão comprovar o “quão sistematizada foi a perseguição da ditadura”.
:: Relatório da CPMI do 8 de Janeiro é aprovado sob gritos de 'sem anistia' ::
Especialistas na temática da justiça de transição concordam com a ampliação desse escopo das políticas de reconhecimento e reparação do Estado brasileiro. “Até aqui, as políticas de reparação no Brasil se limitavam ao reconhecimento individual dos danos. Essa dimensão é fundamental, mas incapaz de abarcar a diversidade de grupos que foram atingidos pelas violações de direitos humanos naquele período”, afirma o jurista Paulo Abrão, ex-presidente da Comissão de Anistia. “A violência que o regime perpetrou nas favelas, no campo e nas terras indígenas, por exemplo, acabou sendo muito pouco tematizada no curso da justiça de transição brasileira”, atesta.
Atualmente, Abrão preside o Conselho Diretor da Coalizão Brasil por Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia, entidade que participou das articulações entre a DPU e a Faferj para a realização do pedido. “O instituto da anistia coletiva abre caminho para que, finalmente, o Estado brasileiro reconheça e repare essas violações”, explica. “O reconhecimento de que o Estado violou sistematicamente os direitos de moradores de favelas ajuda a consolidar uma memória sobre a ditadura que inclui a dimensão de raça e de classe”, conclui.
Ao contrário dos processos individuais que tramitam na Comissão de Anistia, os pedidos de anistia coletiva não implicam nenhum tipo de indenização, mas apenas formas simbólicas de reparação. Em seu pedido, a Faferj demanda o “reconhecimento público das violações de direitos humanos perpetradas às comunidades periféricas, representadas neste ato pela perseguição política que atingiu a FAFERJ” e um “pedido de desculpas oficiais do Estado brasileiro à FAFERJ e aos moradores de favelas do Rio de Janeiro, pelas perseguições políticas cometidas no período ditatorial brasileiro”.
O defensor público Bruno Arruda, autor do pedido de reparação coletiva para a Faferj, sabe da importância da medida. “Estamos mobilizando o Estado para discutir, rememorar e reparar a violência causada a uma coletividade inteira por meio de uma política pública dirigida ao silenciamento de demandas sociais”, diz.
Para ampliar a atuação, Arruda criou na DPU o Observatório de Memória, Verdade e Justiça. O caso da Faferj é o primeiro trabalho da equipe do observatório. “Há ainda bastante espaço para avançar sobre o tema da justiça de transição no Judiciário”, destaca, “e o observatório permite estabelecer parcerias ainda mais substanciais e permanentes da DPU com a sociedade civil para reforçar a tração aos debates necessários ao avanço da justiça de transição brasileira”.
:: Filho converte casa do pai guerrilheiro em um espaço de memória e cultura ::
A militarização do cotidiano e as permanências da violência
“Eu passei muito tempo interrogando presos de favelas […]. Então a gente vai pegando prática. Eu tinha experiência.” Com essas palavras, o major da Polícia Militar do Rio de Janeiro Riscala Corbage narrou ao Ministério Público Federal (MPF) como se dava sua atuação no DOI-Codi do estado. O trecho, citado no pedido da DPU, está vinculado a um segundo eixo constante da peça: a militarização do cotidiano dos moradores de favelas e periferias naquele período.
Para além da perseguição política aos dirigentes da associação, a DPU e a Faferj apontam para o fato de que “a militarização ostensiva é um legado da ditadura na arquitetura institucional da segurança pública”. Não à toa, para além do reconhecimento simbólico, a Faferj pede que a Comissão de Anistia recomende ao Estado brasileiro, como forma de reparação, que sejam adotadas diversas medidas para a redução da letalidade policial no presente.
Tomando por base a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) na ADPF das Favelas, a Faferj indica como prioridades ações como a implementação das câmeras nos uniformes das polícias, a autonomia das perícias, o reforço do controle externo da atividade policial pelo Ministério Público, a regulamentação do uso de helicópteros em operações policiais e a priorização das investigações de casos em que crianças e adolescentes sejam vítimas, como prevê a lei estadual Ágatha Félix.
“Enquanto o restante da sociedade comemorava o retorno da democracia, as favelas seguiram vivenciando uma realidade de violações de direitos humanos”, aponta Derê Gomes. “Chamar atenção para o que foi a perseguição nas favelas durante a ditadura é uma forma de mostrar que, para nós, a violência de Estado é a regra, não a exceção. Por isso, é fundamental conectar o atual genocídio da juventude negra e favelada com o que ocorreu em outros períodos históricos”, defende o historiador e atual dirigente da Faferj.
A presidenta da Comissão de Anistia torce para que novos pedidos do tipo sejam protocolados. “Esperamos que os diferentes coletivos que foram perseguidos no período ingressem com esses pedidos e ampliem as demandas de reparação simbólica”, afirma Eneá. “Isso é importante para que a sociedade como um todo entenda o quão perigoso é esse flerte com o fascismo, com um Estado autoritário e com as possibilidades de tentativa de golpe de Estado”, conclui.