“As portas estavam fechadas, mas a fumaça tinha entrado e parecia que tinha um monte de ‘neblina’ dentro da minha casa. Quase não conseguia enxergar”, descreveu a recepcionista Carla Bindá, 21 anos, moradora do bairro Novo Aleixo, sobre como teve que lidar com o volume de fumaça de queimadas que tomou Manaus (AM) no dia 12 de outubro, quando a cidade virou destaque internacional e atingiu o terceiro pior nível de ar no mundo. O nível atingido é considerado “perigoso à saúde”, segundo a IQAir, base de dados colaborativa que registra as condições do ar. O problema segue sem controle neste mês de novembro, quando a cidade voltou a ser tomada por fumaça.
Neste ano, que teve o outubro com mais queimadas em 15 anos, a população teve que lidar com o ar poluído em mais da metade dos dias. Dos 31 dias corridos, 16 foram considerados com algum nível de risco à saúde, sendo oito deles classificados como “insalubres” ou “muito insalubres” – e apenas um dos dias teve qualidade do ar considerada “boa” pela IQAir. A iniciativa classifica a situação a partir dos critérios adotados pela Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos, relacionando a concentração de poluentes no ar com possíveis agravos à saúde.
“Tive crises de asma e fiz uso de bombinha e fisioterapia pulmonar para conseguir respirar. Só conseguia andar na rua com um pano de algodão molhado no rosto. É muito ruim você querer respirar e não conseguir”, completou Carla a respeito dos momentos de “sufocamento”, descrição que encontrou eco nas redes sociais de moradores da região.
Pesquisadores ouvidos pela Agência Pública explicam que, apesar da diminuição do desmatamento durante 2023, a conjunção de aquecimento global e El Niño, que levou a uma estiagem extrema na região amazônica, contribuiu para um aumento alarmante dos focos de incêndio.
De acordo com a pesquisadora do Laboratório de Física Atmosférica da Universidade de São Paulo (USP) Luciana Rizzo, a intensa nuvem de fumaça que sufocou a cidade foi resultado de dois fatores principais: a seca severa na Amazônia e as queimadas na região metropolitana de Manaus, especialmente nos municípios de Careiro e Autazes, nas proximidades da BR-319.
“A região tem passado por uma seca muito severa decorrente do El Niño de grande intensidade. A gente tem visto os rios supersecos batendo recorde [de níveis baixos], a precipitação está muito abaixo da média. Quando você tem esse tempo muito seco, qualquer fagulha de fogo, ainda que tenha começado legalmente, numa região onde seria permitido usar fogo para manejo de agricultura, é muito fácil descontrolar”, explica.
A maior parte do fogo se dá, porém, como a etapa final do processo de desmatamento. Em 2021 e 2022, a derrubada da floresta cresceu no Amazonas, fazendo o estado chegar à segunda posição como o mais desmatado na Amazônia. A mudança de cenário motivou um posicionamento do presidente Lula, nesta quarta-feira (1º).
“O governo federal reduziu o desmatamento em 49,5% em 2023, no comparativo com o mesmo período do ano passado, mudando a tendência depois de anos de descaso com o meio ambiente na gestão anterior. Durante as queimadas que deixaram o Norte sob a fumaça, os brigadistas do Ibama e do ICMBio têm reforçado o combate aos incêndios feitos pelos estados, reduzindo os focos em 78% na terceira semana de trabalho”, escreveu Lula em uma rede social. Os relatos de moradores de Manaus e os dados já disponíveis, no entanto, mostram que ainda não há muito o que comemorar.
Segundo pesquisadores, o aquecimento global e o El Niño levaram a uma estiagem extrema na região, contribuindo para o aumento dos focos de incêndio
Queimadas seguem sem controle, apesar da desaceleração do desmatamento
De acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o número de focos de queimadas registrado no Amazonas em outubro deste ano foi o maior para este mês em toda a série histórica, iniciada em 1998. Foram computados 3.858 focos de incêndio, 70% deles apenas entre os dias 1º e 12 de outubro. O recorde anterior era de 2009, com 2.409 focos. No bioma Amazônia, foram 22.061 focos no mês.
Um grupo de pesquisadores do Brasil e do exterior publicou um artigo em 16 de outubro alertando que, após a recente queda nos índices de desmatamento no bioma Amazônia, as queimadas passaram a figurar como a principal ameaça à biodiversidade da região. Gabriel de Oliveira, pesquisador da Universidade do Sul do Alabama e primeiro autor do artigo publicado na revista Nature Ecology and Evolution, afirma que o aumento das queimadas pode ser explicado pelo alto índice de desmatamento registrado nos anos anteriores, “principalmente durante o governo Bolsonaro”.
Ele ressalta que, geralmente, as áreas desmatadas em um ano não são queimadas no mesmo período.
“Necessita a área estar seca o suficiente para ser queimada”, o que demora um tempo para acontecer, já que “a Amazônia é uma região úmida”. “Embora historicamente raras, secas e ondas de calor agravadas pelas mudanças climáticas – combinadas com desmatamento e fragmentação da floresta impulsionados em grande parte pelo agronegócio – transformaram o fogo numa das principais causas de degradação e perda de floresta”, afirmou.
“Essas queimadas ainda são um resultado das ações do desgoverno anterior, mas também das condições secas e quentes anômalas do El Niño deste ano”, explicou à Pública o pesquisador da Universidade do Sul do Alabama.
Ele afirmou, ainda, que as queimadas são responsáveis por uma perda dos serviços ecossistêmicos prestados pela Amazônia, como a “captura” de gás carbônico e a formação de chuvas. “De modo geral, uma floresta primária na Amazônia serve como um sumidouro de carbono, uma área que está absorvendo mais carbono do que emitindo. Quando a gente tem o desmatamento e o fogo, o carbono que está armazenado dentro da biomassa das florestas acaba sendo lançado para atmosfera”, disse.
A evapotranspiração da floresta, que lança água para a atmosfera, também é prejudicada pelas queimadas, conforme explicou Gabriel de Oliveira. Assim, a precipitação regional, já impactada pela seca atual, fica ainda mais afetada, em um ciclo de degradação e estiagem.
Ação política mudou, mas impactos ambientais seguem avançando
Resgatando o histórico de dados produzidos pelo monitoramento do Inpe, o texto destaca que houve uma queda de 42% nos alertas de desmatamento da Amazônia entre janeiro e julho deste ano em comparação com o mesmo período de 2022, o que os autores atribuem às ações de fiscalização realizadas pelo governo federal, principalmente a retomada do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia (PPCDAm).
Apesar dessa diminuição, os incêndios no Amazonas no primeiro semestre subiram 10% em relação ao ano passado. De acordo com o Inpe, sob presidência de Jair Bolsonaro, a Amazônia registrou um aumento de 59,5% da taxa de desmatamento em relação ao governo anterior (Dilma e Temer). Foi a maior alta percentual durante um mandato presidencial desde o início das medições por satélite, em 1988.
Os dados consolidados do Inpe mostram que, nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro, a taxa de desmatamento na Amazônia Legal Brasileira (ALB) foi de 10.129 e 10.851 km², respectivamente. Em 2021, a área desflorestada subiu para 13.038 km², a maior durante o mandato. Já em 2022, o desmatamento atingiu 11.594 km². Apesar da queda de 11,08% em relação a 2021, foi a segunda maior taxa em 13 anos.
Procurada pela Pública, a prefeitura de Manaus informou que lançou, em junho, uma campanha de conscientização intitulada “Manaus sem Fumaça”, de combate às queimadas urbanas. Segundo a administração, a ação vem surtindo “efeito positivo”, já que “quase a totalidade das queimadas não tem origem em Manaus”, mas nos “61 municípios interioranos”, embora a fumaça seja “trazida para Manaus pelos ventos”. Disse ainda que, apesar disso, foram implementadas ações para evitar focos de incêndio “que podem surgir da combustão natural”, como a irrigação de canteiros e entornos de parques da cidade por carros-pipa.
No dia 13 de outubro, o presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Rodrigo Agostinho, anunciou o deslocamento de 149 brigadistas de outras regiões do país para o combate dos incêndios na Amazônia, além da disponibilização de dois helicópteros e da intensificação de ações de fiscalização e responsabilização dos infratores e dos proprietários das terras queimadas.
Dados revelam tormento da população e impactos na saúde
Segundo Jesem Orellana, epidemiologista da Fiocruz Amazônia, há uma falta de coordenação entre as bases de dados das diferentes esferas governamentais, o que impede a aferição do impacto real das queimadas na saúde dos manauenses. “Em geral, emitem alertas tardios e genéricos, além de omitirem informações sobre o agravamento de uma série de problemas de saúde em épocas de alta ou descontrole nas queimadas, por exemplo”, denunciou. Para ele, é a “mesma tática suja” empregada na falta de transparência de dados da pandemia de covid-19.
Nos dias 10 e 11 de outubro, dados coletados pela IQAir classificaram a qualidade do ar em Manaus como “muito insalubre”. Nessas condições, toda população pode apresentar agravamento de sintomas respiratórios, especialmente grupos mais vulneráveis, como idosos ou crianças. Já nos dias 12 e 13 de outubro, o cenário foi ainda mais dramático, atingindo o nível mais baixo de qualidade, quando o ambiente fica, na prática, tóxico. Nesse cenário, há sérios riscos de manifestação de doenças respiratórias e cardiovasculares em toda a população, além de aumento de mortes prematuras.
Além da exacerbação de sintomas respiratórios, como tosse seca, irritação de nariz e olhos e desconforto ao respirar, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a exposição à poluição do ar pode levar a outras implicações graves, principalmente em crianças e idosos. O material particulado, especialmente o PM 2,5, consegue penetrar profundamente nos pulmões e na corrente sanguínea, causando impactos cardiovasculares, cerebrovasculares (AVC) e respiratórios. O órgão estima que a exposição à poluição do ar cause, anualmente, 7 milhões de mortes prematuras em todo o mundo.
Um estudo realizado em parceria pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps), Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e Human Rights Watch estimou que, em 2019, houve 2.195 internações devido a doenças respiratórias atribuíveis a queimadas associadas ao desmatamento na Amazônia brasileira. Setenta e dois por cento das internações envolveram bebês ou pessoas idosas, sendo 467 bebês de até 12 meses e 1.080 pessoas com 60 anos ou mais.
Naquele ano, o estado do Amazonas havia registrado 12.676 focos de incêndio, o que é associado a um total de 6.698 dias de internações de pacientes em hospitais. Em 2023, até outubro, o número de incêndios, segundo o Inpe, já é de 18.594.
Questionada pela Pública a respeito de quais medidas foram tomadas para controlar o impacto da fumaça na saúde da população, a prefeitura de Manaus informou que adiou duas importantes festividades que seriam realizadas neste mês de outubro: a Maratona Internacional de Manaus e a Feirinha do Tururi com o Boi Manaus. Além disso, disse a administração, a Secretaria Municipal de Saúde (Semsa) orientou a população a evitar exposição à fumaça, fechar as janelas das casas e se hidratar.
A OMS estima que a exposição à poluição do ar cause, anualmente, 7 milhões de mortes prematuras em todo o mundo
Problema pode ser ainda maior do que parece
A falta de transparência em relação aos dados de saúde e de monitoramento do ar impede a visualização da dimensão real do problema e a proposição de medidas mais efetivas de contenção da grave situação enfrentada por Manaus.
A Pública solicitou à Secretaria Municipal de Saúde de Manaus (Sesma) e à Secretaria de Saúde do Amazonas (SES-AM) dados referentes à frequência de internações por doenças respiratórias, asma e doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) em 2023, mas não obteve resposta.
Embora, há mais de três décadas, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) tenha editado uma resolução que prevê a implementação de uma Rede Nacional de Monitoramento da Qualidade do Ar, esse projeto ainda não se concretizou. Segundo o Plano de Ação Qualidade do Ar, produzido pela Secretaria de Qualidade Ambiental do Ministério do Meio Ambiente em 2022, apenas 13 estados realizam monitoramento automático da qualidade do ar em seus territórios.
Nenhum estado da região Norte faz esse acompanhamento governamental. O que existem são algumas iniciativas privadas ou lideradas por pesquisadores. É o caso da plataforma SELVA, criada por acadêmicos da Universidade Estadual do Amazonas (UEA), que monitora a qualidade do ar por meio de sensores de baixo custo e disponibiliza esses dados, em tempo real, em um aplicativo.
“Nosso histórico de não monitoramento da qualidade do ar na região é de décadas. As consequências são incalculáveis e a população segue pagando a conta com a redução de sua expectativa de vida, por viver em um ambiente com atmosfera poluída”, disse à Pública um dos criadores da SELVA, o pesquisador Rodrigo Souza.
Na avaliação da professora Luciana Rizzo, essa deficiência acontece porque a montagem e manutenção de uma estação de monitoramento requer um investimento alto e os equipamentos utilizados na aferição não são produzidos no Brasil. Mas, para o pesquisador do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP (IAG-USP) Marco Aurélio Alvarenga, há outro fator importante envolvido: a falta de interesse político.
“A implementação de uma rede de monitoramento é algo que leva muito tempo. É um projeto de médio e longo prazo. Não é um projeto de curto prazo. E requer planejamento, requer alocação de recursos. Requer uma organização que muitas vezes o governo do estado não tem esse interesse momentâneo. Então, ele fica postergando isso para o próximo, e isso nunca é implementado”, explicou.
O próprio Plano de Ação Qualidade do Ar assume que a falta de redes de monitoramento gera lacunas em relação ao conhecimento da situação da qualidade do ar e avaliação das medidas adotadas para controle, prejudicando também a prestação de informações à sociedade. “Sem informações sobre o cenário relativo à qualidade do ar, não é possível conduzir ações de planejamento a curto e longo prazo para controle e mitigação da concentração de poluentes na atmosfera”, afirma trecho do texto.
Política nacional pode mudar algo?
O grave problema enfrentado por Manaus será um desafio para a Política Nacional de Qualidade do Ar, atualmente em tramitação na Comissão de Meio Ambiente (CMA) do Senado.
A proposta do ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Paulo Teixeira (PT-SP), quando ainda deputado federal, e sob relatoria do senador Fabiano Contarato (PT-ES), o Projeto de Lei (PL) 3.027/2022 estabelece diretrizes para o monitoramento e gestão da qualidade do ar no Brasil, bem como medidas para o controle da emissão de poluentes.
O texto propõe que o Conama estabeleça os padrões nacionais que podem ser regulamentados pelos estados, desde que de forma mais restritiva. O monitoramento ficará a cargo dos órgãos e instituições estaduais integrantes do Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama), que deverão divulgar os dados em linguagem acessível para a população.
De acordo com o relator, o entendimento é que, apesar de não imediatos, os efeitos da poluição ambiental são prejudiciais a longo prazo, sendo capazes de reduzir a qualidade de vida da população e ameaçando a integridade física e a saúde das pessoas. Por isso, além da busca por responsabilizar autores de crimes ambientais, o projeto visa estimular o uso de tecnologias limpas, a redução de poluentes atmosféricos, além do monitoramento e gestão do ar em tempo real.
“Passou da hora de as autoridades darem uma resposta eficiente e efetiva para resolver os crimes envolvendo poluição ambiental. A Lei de Proteção Ambiental [9.605/98] até trouxe inovação com a possibilidade de responsabilidade penal de pessoa jurídica, mas não podemos só depender da lei após o crime. Temos que trabalhar na prevenção para evitar que o crime ocorra”, afirmou o senador Contarato.
Para o deputado federal Amom Mandel (Cidadania-AM), o atual cenário de Manaus se deve a falhas nas políticas públicas de prevenção das queimadas e à falta de mobilização política pela qualidade do ar. Segundo ele, para que a situação não se repita, a “responsabilização dos gestores” deve ser o principal ponto da discussão.
Além disso, o deputado defendeu uma articulação política da bancada federal do Amazonas para conseguir a relatoria do PL nas comissões temáticas. “Para que a gente possa tentar acelerar a tramitação desse projeto e, se possível, evitar que ele vá ao plenário”, explicou.