Após o governo federal reinstalar, na última quarta-feira (8), a Comissão Nacional de Enfrentamento à Violência no Campo, lideranças de entidades civis demandam políticas estruturantes que possam fazer frente à onda de assassinatos que tomou conta da zona rural nos últimos anos. Somente na Amazônia legal os conflitos por terra aumentaram 33% entre 2021 e 2022, enquanto o crescimento ao nível nacional foi de 16,7% no mesmo período. Foram 47 assassinatos ano passado em todo o país, sendo 34 deles somente na região amazônica. O segmento pressiona por mais atenção da gestão à agenda social e política do campo.
Vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), a recém-recriada comissão, que foi instituída por meio do Decreto nº 11.638/2023, propõe-se a mediar casos de conflitos no campo, além de fazer estudos a respeito do tema e produzir um plano anual de trabalho, estabelecendo metas e prioridades na área. O colegiado terá reuniões mensais e prevê a apresentação de um relatório de atividades a cada semestre. O documento deverá ser apresentado aos órgãos que compõem a comissão.
A lista inclui os Ministérios dos Direitos Humanos e da Cidadania, da Igualdade Racial, da Justiça e Segurança Pública, do Meio Ambiente, das Mulheres e dos Povos Indígenas, bem como a Secretaria-Geral da Presidência da República (SGP), o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), a Advocacia-Geral da União (AGU) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (Condraf).
O líder do MST José Damasceno de Oliveira avalia que a atual gestão tem se pautado, até agora, em medidas “mais paliativas” para o combate à violência. O militante diz que uma agenda voltada a esse fim carece de ações mais estruturais.
“É ótimo que a gente tenha a comissão pra ajudar a minimizar a situação porque a violência está se agravando, mas o combate à violência no campo precisa ser uma política efetiva de Estado. Nós estamos num patamar, principalmente desde o último governo pra cá, em que a violência se intensificou no campo e na cidade. As milícias, que aparentavam ser só no Rio de Janeiro, se nacionalizaram. Essa comissão vai cumprir um papel importante, mas ela não dará conta dos conflitos, do tanto de assassinatos que há no campo brasileiro, [afetando] lideranças sem terra, indígenas, quilombolas.”
Oliveira aponta que o caminho para um enfrentamento substantivo ao problema demanda maior estruturação das ações de combate à epidemia de violência. “Tem uma questão que é de fundo: a história da terra no Brasil, a história de como se conformou o latifúndio foi toda na base da violência. Então, essa violência é histórica e estrutural. A gente precisa de uma política contundente pra enfrentar a cultura agrária brasileira. Toda e qualquer medida é importante, porém é preciso avançar mais, com um serviço de inteligência para a prevenção do problema.”
“O Estado brasileiro precisa assumir essa responsabilidade de colocar os agentes federais pra cuidarem e combaterem inclusive a violência de Estado, praticada pela Polícia Militar, por exemplo, que age de forma muito truculenta, muitas vezes junto com pistoleiros e fazendeiros. É por isso que as ações precisam ser de responsabilidade do Estado brasileiro, com condenação e prisão dos assassinos”, continua o líder.
Na mesma sintonia, Jesus Gonçalves Fiel, da Campanha Contra a Violência no Campo, destaca a preocupação com a impunidade no campo e cita que somente 1% dos mandantes de crimes são condenados. A dirigente cita a preocupação com a morosidade da Justiça brasileira em avaliar e julgar casos do tipo.
“Há anos a CPT contabiliza as pessoas vitimadas no campo e a gente acompanha ao nível nacional essa dificuldade do Brasil em punir as pessoas que cometem crimes contra defensores de direitos humanos. Pra se ter uma ideia do nível de impunidade, no dia 13 de dezembro vai fazer um ano que um dos intermediários do assassinato do Dezinho foi julgado. Só que o Dezinho foi assassinado dia 21 de novembro de 2000, então você tem aí 23 anos pra se chegar ao julgamento,” exemplifica.
Outra preocupação de lideranças do segmento é a falta de orçamento para políticas do setor. Para Jesus, a assimetria na distribuição das verbas públicas é um fator de preocupação. As lideranças da área consideram fundamental o investimento na agricultura familiar e na política de reforma agrária, mas se queixam de falta de priorização para essa agenda.
“O governo brasileiro destinou cerca de R$ 360 bilhões pro agronegócio em incentivo de crédito, etc. Na Amazônia, o Pronaf é plantação de dendê. Isso não é investir na agricultura familiar. Destinaram R$ 10 milhões pra reforma agrária e tem mais R$ 50 milhões na diretoria fundiária, mas que são pra fazer outras coisas, não necessariamente pra reforma agrária.”
A Campanha Contra a Violência no Campo tem pressionado para que o governo Lula injete mais verbas em autarquias federais cujo trabalho se relaciona com o tema. “A gente ainda não viu o investimento do governo nos órgãos. Você chega no Incra, não tem dinheiro. Chega no Ibama, não tem dinheiro. A gente tem um governo que se diz com boa vontade pra combater a violência no campo, fazer a reforma agrária, mas os órgãos não têm orçamento pra isso. Fica contraditório. A gente tem visto isso com preocupação.”
Governo
O Brasil de Fato tentou ouvir o Ministério do Desenvolvimento Agrário a respeito da criação da comissão e da situação das políticas para o setor, mas os pedidos de entrevista foram ignorados pela assessoria de imprensa da pasta, que não deu resposta até o fechamento desta matéria.
Edição: Rodrigo Durão Coelho