Uma das partes mais gostosas da casa do terreiro é a cozinha
No candomblé, a dança circular do xirê é uma forma de louvar e evocar os orixás. Entre cânticos, movimentos e ritmos, a comida também faz parte da ligação entre o Aiyê (terra) e o Orún (céu).
"O espiritual, o orixá, as divindades africanas, dizem para entendermos a comida como um ponto forte, que vai saciar a sua fome - que é a questão do imediato -, mas essa comida também lhe faz comunicar também com a sua divindade", explica o babalorixá [sacerdote do candomblé, conhecido popularmente como pai de santo] Wesley Máximo, do terreiro Ilê àse Alakatu Oju Oniê.
As culturas de raízes africanas definem a comida como cura do corpo e do espírito. Alguns exemplos são os preparos de acarajé, feijoada, padê de exu, caruru de ibeji e vatapá.
Dessa forma, nos terreiros de candomblé, a cozinha é vista como um lugar especial, de afetos, memórias e saberes.
"Eu acho que uma das partes mais gostosas da casa do terreiro é a cozinha. A cozinha de um terreiro, de um Ilê, é muito boa porque são vários aromas, são vários sabores. E sabores que muitas vezes a gente não encontra no nosso dia a dia, no nosso cotidiano", diz Mãe Rebeca, do Terreiro Arauara, localizado no Recife (PE).
Para valorizar esses saberes e sabores de essência milenar, a capital pernambucana sediou a primeira Mostra de Gastronomia Ajeun. O evento foi realizado em setembro deste ano, no Pátio de São Pedro, no centro do Recife. Para celebrar a comida de axé, dez terreiros da Região Metropolitana levaram um pouco dos sabores que pedem licença aos orixás.
"A Mostra Recifense de Gastronomia Ajeun nasceu de uma inquietação a respeito das discriminações e preconceitos relacionados às comidas de terreiros, as tradições dos terreiros de candomblé. Então a nossa ideia fundamental é popularizar, apresentar, combater o preconceito e discriminação relacionadas à culinária de terreiros em Pernambuco", detalha o produtor cultural Ailson Barbosa.
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De origem iorubá, a palavra Ajeun significa "comer junto", sejam as pessoas na terra ou no plano espiritual. Essa é uma forma de conectar o alimento com as forças que vem da natureza, da terra. Nesse sentido, a Mostra Ajeun montou um grande banquete, aberto à população recifense.
"Como consultor, achei de grande importância esse evento para mostrar e desmistificar. Os terreiros de candomblé abrem suas portas para mostrar, entre as comidas sagradas com os insumos já usados no nosso cotidiano. Mostrando também que comida sagrada só precisa ser sacralizada. O ato de oferecer, de ofertar, seja como cânticos, alimentar o corpo e a alma e depois agradecer", afirma Mauro.
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O "comer junto" do Ajeun envolve também um aspecto social. Entre leituras e releituras seculares, a comida dos terreiros envolveu - e permanece envolvendo - a organização popular contra as violências da colonialidade.
"Quando você pensa em alimento, você pensa, inclusive, em fome. E aí quando você entende o Brasil, de acordo com as suas necessidades, a divisão geográfica, a arrumação política, você entende que o povo africano quando veio para cá, no processo da diáspora involuntária, inclusive, ele tentou de alguma forma se organizar politicamente, e foi o terreiro que fez o processo de manutenção desses valores culturais", defende Wesley.
A organização do Ajeun destaca que é preciso reconhecer o valor da comida de terreiro como patrimônio de luta e resistência. Isso levando em conta que há séculos, os povos originários e do continente africano guardam suas ancestralidades, vidas e sonhos também no preparo dos alimentos.
"Essa gastronomia tem traços do período colonial e do período que a gente estava colonizado, mas fala também do processo de enfrentamento, sabe. Porque é isso, enquanto você estava escravizado, o que era lhe negado? A comida. Negado a dormida, a moradia. Então essas duas tendências, esses dois povos, fazem justamente o movimento de acolher os seus, de juntar os seus, de fazer um movimento de luta e alimentar", explica Wesley.
Edição: Nicolau Soares