“Estamos aqui, no maior evento conservador do mundo, com o próximo presidente da Argentina.” A frase premonitória foi dita pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) em junho de 2022, em Campinas (SP), durante a CPAC Brasil – a versão brasileira do evento Conservative Political Action Conference, surgido nos Estados Unidos. Dezessete meses depois, as palavras se tornaram realidade: o economista ultraliberal Javier Milei venceu o peronista Sergio Massa no segundo turno e se elegeu presidente do país vizinho, com cerca de 56% dos votos.
Apresentado na CPAC de 2022 sob aplausos a uma multidão de bolsonaristas, Milei, que à época sequer tinha certeza da própria candidatura, gritou seus jargões agressivos – como “viva la libertad, carajo!” – que o ajudariam na campanha vitoriosa do ano seguinte. No evento, ele prometeu se aliar ao grupo político do então presidente Jair Bolsonaro por um objetivo comum: “enfrentar o socialismo” na América Latina.
Os laços entre o clã Bolsonaro e o agora presidente eleito da Argentina não afrouxaram depois daquele encontro. Pelo contrário, só aumentariam: em outubro deste ano, Eduardo Bolsonaro viajou a Buenos Aires para acompanhar pessoalmente seu aliado durante o primeiro turno, quando Milei foi o segundo mais votado, atrás de Sergio Massa.
O ex-ministro das Relações Exteriores do Brasil Ernesto Araújo, integrante da ala ideológica mais radical do bolsonarismo, também compareceu, falando em “pátria e fé”. Ele retornou à Argentina no final de semana do segundo turno, quando Milei foi eleito.
Consultado pela imprensa local, Eduardo Bolsonaro comparou o economista argentino com seu pai, dizendo ver similaridades entre a Argentina de 2023 e o Brasil de 2018, ano em que Jair foi eleito. Milei facilitou as comparações, sobretudo à imprensa: também se intitulando um outsider, ou alguém vindo de fora do sistema político tradicional, o libertário viralizou nas redes sociais com uma retórica violenta, prometendo “dinamitar” a política comum e pulverizar a máquina estatal. Durante comícios, puxou gritos de apoiadores segurando uma motosserra, símbolo que durante a sua campanha virou a versão da “arma com a mão” de Bolsonaro, indicando que seria implacável contra “corruptos”.
Ainda que aliados e produtos da mesma tendência política global de direita, que desde a vitória de Donald Trump nos Estados Unidos em 2016 deu papel decisivo às redes sociais na ascensão da chamada ‘antipolítica’, Milei e Jair Bolsonaro ascenderam sob distintos panos de fundo. Se Jair, militar, surfou a onda em 2018 após servir quase três décadas como parlamentar, sendo integrante do tal “sistema” que prometia combater, Milei, por outro lado, iniciou sua carreira na política somente em 2021, quando foi eleito deputado.
Desbocado e raivoso, também passou a cativar o eleitor diante de um descontentamento crônico argentino: a economia. Enquanto um novo relatório do Banco Central argentino já projeta uma inflação de 185% para 2023, com variações mensais batendo os maiores números em mais de 30 anos, Milei diz que mandaria o mesmo Banco “pelos ares”, enxergando-o como o principal culpado pelo persistente descalabro econômico argentino. E ao passo que o peso argentino segue em queda livre e perde valor frente ao dólar, exigindo que a população use maços enormes de dinheiro no dia a dia, o político prometia dolarizar a economia local.
O aumento da pobreza também jogou a favor de Milei, que marcou bons números de votos e venceu em várias regiões mais desfavorecidas economicamente desde as primárias, em agosto.
As ideias mais extremas de Milei são, evidentemente, difíceis de colocar em prática – e ele próprio chegou a recuar em várias promessas mais radicais durante o segundo turno, inclusive a tão falada dolarização. Além disso, o futuro presidente chegará à Casa Rosada sem ter maioria em nenhuma das duas casas legislativas, ainda que tenha conquistado cadeiras em ambas.
Por todo esse contexto, costurar alianças regionais se mostra um elemento fundamental para que Milei possa ganhar força dentro e fora da Argentina. Para Talita São Thiago Tanscheit, professora no Departamento de Política e Governo da Universidade Alberto Hurtado em Santiago do Chile, isso é fruto não apenas de uma ascensão da ultradireita na região, mas da “consolidação de movimentos, partidos e lideranças que já conseguem competir com força na arena eleitoral”.
“Há um projeto comum e compartilhado, fundamentalmente porque esses grupos compartilham da mesma ideologia. Claro que o peso de cada elemento ideológico vai depender de cada contexto, mas são sustentados por uma mesma espinha dorsal baseada em uma agenda neoliberal – agora no caso da Argentina, ultraliberal – conservadora e pautada na mano dura [agendas duras de segurança pública]. Esses pontos em comum articulam grupos de extrema direita latino-americanos não só regionalmente, mas internacionalmente”, disse a especialista à Agência Pública.
A aliança da extrema direita na América do Sul vai além desses dois nomes: quem também esteve presente no CPAC em 2022, e afirmou enxergar um pacto regional com bons olhos, é o radical chileno José Antonio Kast. Outrora apoiado por uma parcela pequena de eleitores, com menos de 8% dos votos conquistados nas eleições presidenciais de 2017, Kast chegou ao segundo turno na votação posterior, em 2021, quando conquistou mais de 7 milhões de votos. Mesmo sem virar presidente, Kast encabeçou o avanço da extrema direita nas votações envolvendo a elaboração de uma nova Constituição no Chile e deve disputar a presidência uma vez mais em 2025, como ele próprio prometeu na CPAC brasileira.
Em agosto, publicamos uma série de reportagens sobre as articulações da extrema-direita na América Latina. Mostramos o papel de Eduardo Bolsonaro na costura de alianças no continente e a influência da ultradireita dos Estados Unidos. As reportagens fazem parte do projeto Mercenários Digitais, feito em uma aliança entre a Agência Pública, o UOL e outros 22 veículos latino-americanos.
Última ‘fronteira’ para ultradireita, Uruguai vê risco por alta da violência
Quando Jair Bolsonaro passou de um parlamentar desconhecido a uma opção nacional viável nas eleições de 2018, os clamores pela volta da ditadura civil-militar (1964-1985) tornaram-se cada vez mais comuns entre seus admiradores. Para contrapor a situação brasileira, análises usavam com frequência os vizinhos do Cone Sul – notadamente Argentina, Chile e Uruguai – para mostrar como o Brasil era o país que menos sabia lidar com seu passado político violento. Enquanto outros viravam notícia por punir seus repressores e por dar pouca vazão a militares e políticos extremistas, o Brasil parecia abraçar a causa de forma solitária.
Com a ascensão política recente de nomes como Milei e Kast, porém, nem mesmo argentinos e chilenos se mostraram imunes a essa tendência. A própria reverência explícita a Jorge Rafael Videla — o mais infame general do regime militar —, em protestos contra restrições da pandemia em Buenos Aires, mostrava esses sinais. Agora, a vice-presidenta eleita é uma viúva convicta do regime que matou e fez desaparecer 30 mil opositores e também almeja soltar repressores presos por esses crimes.
No Chile, que em 2023 recordou os 50 anos do golpe de Augusto Pinochet, a facção política encabeçada por Kast foi peça fundamental na engrenagem que barrou uma condenação mais convicta da classe política ao golpe. Diante de uma oposição de direita cada vez mais presente, o presidente Gabriel Boric, acuado por baixos índices de aprovação, cedeu às pressões de seus adversários e convidou todos os partidos a assinarem um documento que mencionava, de forma genérica, “um compromisso pela democracia”, frustrando quem desejava uma condenação enfática ao regime pinochetista – muitas vezes relativizado pelo próprio Kast. Ainda assim, a oposição se negou a participar dos eventos oficiais recordando o golpe e ressuscitou velhos argumentos justificando o fim da democracia e a repressão iniciada em 11 de setembro de 1973.
Assim como o Chile em anos recentes, o Uruguai testemunha uma escalada vertiginosa na insegurança para seus padrões, com um aumento de 25% nos homicídios em 2022 em relação ao ano anterior. A onda de violência, atribuída à expansão de grupos narcotraficantes e à disputa que travam por território, também tem gerado cenas mórbidas pouco comuns ao imaginário uruguaio: no ano passado, um corpo desmembrado foi encontrado pela polícia boiando na orla da capital.
A possibilidade de que se abram brechas para a penetração de nomes mais radicais na política também passa pela crise vivida pelo governo atual. Em 2019, o Uruguai encerrou um ciclo de 15 anos de governos de centro-esquerda da coalizão Frente Ampla (FA) e elegeu o liberal de direita Luis Lacalle Pou. O Uruguai não permite a reeleição consecutiva, o que exigiria que Lacalle Pou indicasse sucessores para disputar as eleições em 2024, porém os nomes mais fortes do governo atual caíram em sucessivos escândalos de corrupção e tráfico de influência. Segundo pesquisas, metade dos uruguaios ainda vê com bons olhos a volta da centro-esquerda, hoje na oposição. Nessa incerteza, nomes mais radicais podem ganhar espaço. Entre eles está o militar Guido Manini Ríos.
Senador e atual líder do partido radical e militarista Cabildo Abierto, Manini Ríos recentemente colocou em dúvida a manutenção da coalizão informal da qual seu partido compõe com Lacalle Pou após disputar as eleições presidenciais de 2019, quando impressionou ao alcançar mais de 11% dos votos.
Ríos preenche a cartilha da extrema direita que ganhou destaque no continente em anos recentes, sobretudo pelas polêmicas e pela relação que tem com os anos de repressão. Em 2018, quando ainda era comandante do Exército, foi punido pelo então presidente Tabaré Vázquez com 30 dias de detenção por criticar uma reforma de pensões militares, violando um princípio constitucional de não interferência de oficiais da ativa em assuntos políticos. Pouco adiantou: no ano seguinte, o chefe das Forças Armadas foi demitido por Vázquez por seguir se posicionado contra questões governamentais e por anunciar suas intenções de ingressar na política.
O general também já havia sido denunciado por organizações de direitos humanos em anos anteriores por dar informações falsas sobre o paradeiro dos restos mortais de uma pessoa desaparecida durante a ditadura. Ativo nas redes sociais, também gerou discussões no país ao homenagear familiares de ex-ditadores.
“É importante lembrar que parte desse ressurgimento das direitas radicais latino-americanas está relacionado ao insucesso da direita tradicional, que tem se mostrado incapaz de se conectar com parcelas mais amplas do eleitorado, sobretudo porque a oferta programática dessas direitas ‘mainstream’ é muito limitada, centrando-se apenas numa divisão Estado-mercado, sem considerar outros tipos de agenda sociais e políticas que a ultradireita foi capaz de ativar e inserir no debate público”, explica Tanscheit.
“Diferentemente do que se viu em outros países da região, Luis Lacalle Pou teve a astúcia de se aliar à ultradireita, justamente para impedir que ela cresça e ganhe expressão”, completa a especialista. Mas essa contenção do extremismo no Uruguai também pode cair por terra se o cenário continuar delicado para o atual governo. Citando “erros” da atual administração, incluindo um escândalo que este mês levou à renúncia de pelo menos dois ministros por conta da emissão de uma passaporte para um narcotraficante procurado pela Interpol, Manini Ríos já indicou que pretende tentar novamente uma candidatura própria em 2024. E explica de forma didática: com a direita “moderada” em crise, ele cogita se lançar justamente pelo risco de uma derrota conservadora no próximo ano.