A sensação de que entramos em um filme distópico é avassaladora, mesmo para quem nos últimos anos alertou para a relevância épica de uma formação política de ultradireita que pela primeira vez em nossa história sintonizou com o mal-estar dos setores populares e conseguiu expressar o desejo de mudança de uma juventude sem horizontes. Estamos diante de uma mudança histórica de consequências inesperadas.
Basta um único dado para ter dimensão da magnitude do acontecimento: a fórmula integrada por Javier Milei e Victoria Villarruel, dois personagens recém-chegados à política e que até pouco tempo atrás se movimentavam em espaços de forte marginalidade ideológica por suas posições radicalizadas em matéria econômica e de memória histórica, acabam de se tornar os mais votados da etapa democrática que começou em 1983.
Os 55,7% obtidos pela Liberdade Avança superam inclusive os 54,11% obtidos pelo Frente para a Vitória (de Cristina Fernández de Kirchner e Amado Boudou) em 2011. Os mais de 14 milhões de votos obtidos pelos ultraliberais (contra menos de 12 milhões do kirchnerismo em seu melhor momento) conferem a legitimidade popular para tentar fazer de tudo. E algo mais: apesar das alianças e manobras discursivas de última hora, a ultradireita conseguiu chegar ao mais alto do poder institucional sem moderar substancialmente seu discurso, nem renunciar a seu programa maximalista.
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É verdade que a comparação não é totalmente legítima porque o triunfo do peronismo em 2011 foi em primeiro turno, enquanto o estrondo de ontem surge de um segundo turno. Mas tem a virtude de nos colocar diante de uma evidência indiscutível: algo anda muito mal nesta democracia que, em seu quadragésimo aniversário, entrega as rédeas do Estado a quem o despreza.
A partir de agora, só saberá defendê-la com eficácia quem assumir a inadiável necessidade de recriar suas bases de sustentação. Quem se atrever a democratizar de verdade, sem medo de enfrentar os poderes que a parasitam. Basta de real-politik. Nunca mais ao simulacro de uma narrativa que se enfeita com os mais nobres valores, mas na prática se declara impotente para transformar a realidade e submete o soberano à miséria.
Dos balões à motosserra
A vitória de Milei teve em Macri um fator chave. O resultado do segundo turno surge da soma quase perfeita entre os votos que obtiveram A Liberdade Avança e Juntos pela Mudança no primeiro turno. Obviamente, a política nunca é matemática e certamente a conta implica outro tipo de aritmética. Mas o relevante é a reunião em torno de uma mesma oferta eleitoral de dois universos distintos: o antiperonismo ancestral representado pelos apoiadores do Juntos pela Mudança; e uma nova força social de claro tom plebeu e juvenil, com uma surpreendente voracidade de oposição.
As dinâmicas que definiram a disputa foram se sobrepondo, com diferentes camadas de profundidade: em primeiro lugar, o voto punitivo contra um governo péssimo que acabou se escondendo de maneira indigna; em segundo lugar, o voto de raiva que apontou para o coração do status quo progressista que ousou tornar independente sua sorte da realidade das maiorias; e a emergência de uma utopia ultracapitalista que conseguiu catalisar a ruptura, dissolvendo a ameaça do medo.
O desfecho confirma o pior final para o ciclo inaugurado em 2001, quando a resistência popular à crise do neoliberalismo deu lugar a um esquema de governabilidade baseado na contestação do ajuste e da repressão. A apropriação libertária dos cânticos emblemáticos daquelas inesquecíveis jornadas de começos do século, “que se vão todos” e “vem aí a explosão”, insinuam no plano simbólico uma virada de 180 graus na configuração ideológica que a partir de agora será propagada pelas instituições estatais. Outro slogan entoado pela multidão indica que o revisionismo aponta mais longe e tentará reformular os consensos básicos da democracia: “Massa, lixo, você é a ditadura”. E a apelação permanente ao retorno de uma “Argentina potência” por parte do presidente eleito, fala inclusive da pretensão de refundar os pilares do projeto nacional.
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É possível que o novo governo fracasse de maneira estrondosa e tudo isso não seja mais que um pesadelo de mau gosto. Um acidente histórico sem sentido nem destaque. Mas é preciso avaliar a possibilidade de que estejamos diante de algo mais do que um tropeço eleitoral. Que nos toque enfrentar uma derrota política como a que experimentaram gerações anteriores em 1976, ou em 1989. Assumir com sinceridade o desafio que nos cabe é chave para relançar com ímpeto e inteligência uma nova aventura emancipadora. Desta vez, sem meias medidas.
Não vamos saber tudo
A derrota, quando sobrevém, envolve a todos os que nos sentimos parte de um campo político. Os de esquerda e os de centro, os trotskistas e os pragmáticos, progressistas e nacional & popular, feministas, ambientalistas, desenvolvimentistas, cínicos ilustrados. É um sujeito histórico que deve recompor suas forças, reorientar suas estratégias, recriar suas linguagens. Ninguém se salva. E não vale levantar o dedinho acusador. Há que aguentar e ao mesmo tempo ir a fundo na autocrítica. Aguentar a tempestade com dignidade, mas também libertar a imaginação das amarras e dos erros que nos levaram ao fracasso.
Algumas configurações da etapa que se fecha têm que mudar sem remédio. Comecemos pelo mais imediato: a ideia de que “o pior dos nossos é melhor que o melhor deles”, porque é capaz de fabricar uma enorme máquina de fumaça que em definitivo só narcotiza nossas próprias ânsias de algo melhor. Para dizer com nome e sobrenome: Sergio Massa não conquistou a sobrevida que prometeu, e na tentativa de chegar à presidência sem economizar recursos favoreceu a ascensão da ultradireita e nos conduziu a um penoso conformismo com este presente de injustiça. Basta de confiar nosso destino aos profissionais de um pragmatismo sem resultados.
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O tapa eleitoral de ontem também impacta em cheio na cara da cúpula kirchnerista, definitivamente em retirada. Mais uma vez o esquema hierárquico que exige subordinação e valor, e dissolve qualquer debate, nos conduz a um beco sem saída. A desorientação e o esgotamento são muito evidentes. Mas o mais chamativo é a falta de ideias, a pouca disposição para construir futuro. Basta de se fascinar com o poder e de apostar tudo em sua conservação, custe o que custar. Faz falta mais generosidade e escuta, menos amos-libertadores e jogadores de pôquer. Às forças esotéricas do céu, devemos opor o poder de uma comunidade telúrica que cresce a partir de baixo e supera os seus próprios ídolos.
Aqueles de nós que se sentem parte de uma ampla e diversificada rede de experiências de base cujo principal intuito é contribuir para a constituição de um sujeito popular, transformador e democrático, também devemos planejar novamente boa parte dos pressupostos que nos guiaram durante a fase que se conclui. O fetichismo do estado, a busca de reconhecimento institucional como medida do sucesso, a integração de uns poucos que insensibiliza ante o sofrimento da maioria, a aceitação resignada do mal menor para evitar a catástrofe, o gozo por um debate taticista, sem estratégia de médio prazo.
Os próximos meses - talvez sejam anos - vão ser duros. Mas cada época tem seu encanto. A resistência é um enorme campo de aprendizagem e no desespero germina uma inédita lucidez. Agora não se trata de voltar melhores. Já não há margem para a nostalgia. Nem desculpas que nos proíbam compor as novas canções da revolução que está por vir.