A crescente demanda global por fontes de energia renováveis vem impulsionando a construção de parques, miniusinas e complexos eólicos e solares ao longo do Nordeste brasileiro. A “vocação natural” da região, caracterizada pela alta incidência solar e pelo constante soprar dos ventos, consiste em uma das justificativas para a proliferação de turbinas eólicas e painéis solares que pouco a pouco vão alterando a paisagem de muitas cidades nordestinas, notadamente aquelas localizadas no semiárido.
O pano de fundo do aumento vertiginoso no número desses empreendimentos consiste na percepção das consequências (cada vez mais recorrentes) geradas pelas mudanças climáticas e no alinhamento às diretrizes internacionais estabelecidas pelo Acordo de Paris e pela Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP-26), que estabelece índices de redução das taxas de emissão de gás carbônico na atmosfera terrestre. A contínua emissão de gases poluentes na geração de energia é um dos fatores que concorrem para o aquecimento do planeta, provocando aquilo que ficou popularmente conhecido como efeito estufa.
Empenhados no desafio de escala global de promover uma transição no modelo energético - de fontes fósseis poluentes para fontes renováveis não poluentes -, governos dos diferentes países buscam soluções para promover a descarbonização de suas matrizes de energia. Embora cercado de resistências por parte de governos que utilizam fortemente fontes poluentes como o carvão, o petróleo e o gás, e dos interesses privados de grandes companhias de energia, observa-se uma corrida rumo ao carbono zero.
O Brasil conta com mais da metade da geração de sua energia proveniente da força e do volume das águas dos rios. Apesar da exigência da construção de grandes infraestruturas hidráulicas para produzir energia - que exige o alagamento de grandes áreas habitáveis (por plantas, animais e seres humanos) e cultiváveis, além do deslocamento de um contingente alto de pessoas (populações ribeirinhas, indígenas e demais povos tradicionais) - a utilização dos rios na geração de energia é considerada uma fonte de “energia limpa” por não emitir poluentes na geração de eletricidade e manter a utilização das fontes fósseis sob controle.
Atualmente, o Brasil gera aproximadamente 1/4 de sua energia por meio das matrizes eólica e solar, um número considerado baixo diante da crescente quantidade de parques e complexos instalados e do empenho de gestores estaduais e do governo federal em atrair novos investimentos no setor.
Levantamento preliminar da pesquisa Vozes Silenciadas - “Energias Limpas: o que a mídia silencia”, desenvolvida pelo Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social, a qual analisa a cobertura da mídia comercial hegemônica acerca da exploração desse tipo de energia - especialmente no que concerne ao silenciamento dos impactos socioambientais e das pautas de reivindicações dos movimentos populares de atingidos por esses grandes empreendimentos -, revela como governadores de estados do Nordeste onde há presença de empreendimentos dessa natureza vêm promovendo seus estados junto a investidores internacionais do ramo eólico, solar e de produção de hidrogênio verde (H2v) como ambientes atraentes, estáveis e seguros para a realização de negócios “verdes”.
O governo do presidente Lula ambiciona alçar o Brasil à posição de líder na transição energética mundial, convertendo o país em uma potência energética e ecológica. Mais do que isso, no maior produtor e fornecedor de energia renovável para o mundo. Para isso, conta com o apoio de governadores nordestinos que, por extensão, encaram a oportunidade de produção de energia renovável em seus estados como um indutor da industrialização na região Nordeste - promovendo o desenvolvimento econômico local, a geração de empregos (diretos e indiretos) e o aumento da renda dos habitantes. Tudo em nome do progresso.
A face oculta das energias limpas
Há uma dimensão das energias solar e eólica onde o sol não reflete e o vento não sopra. É a face oculta dos projetos de geração de energias renováveis que não aparece no discurso político, não se inscreve nos planos dos investidores e tampouco é revelada nas páginas da imprensa (com raras exceções). Ocasionando um conjunto de problemas de ordem ambiental e social que configura a sujeira gerada pelo modelo promissor de produção energética, que compõe a cadeia do que se convencionou chamar de economia verde.
A expressão “energia limpa” não dá conta da complexidade dos conflitos gerados a partir do momento que um empreendimento eólico ou solar recebe os incentivos fiscais e as licenças cabíveis para sua instalação. Em alguma medida, pode ser que a escolha do termo manifeste justamente aquilo que corporações e governos, interessados em aumentar a participação de fontes de energia renovável no parque de geração do país, tentem jogar sombra.
É indiscutível que a energia produzida a partir dessas fontes amplia a matriz energética nacional - afastando o país ainda mais do uso de fontes poluentes - e contribui para a neutralização das emissões de carbono, apontando uma saída de médio-longo prazo ao uso intensivo de combustíveis fósseis. Mas este não é o ponto em discussão. O foco da análise consiste nos impactos ignorados, deliberadamente ou não, na fauna, na flora e no modo de vida de homens e mulheres do campo.
Vejamos, para que um empreendimento se erga é necessário que haja grandes hectares de terra à disposição para a instalação das turbinas eólicas e dos painéis solares, bem como para a abertura de estradas vicinais de acesso ao local, plataformas e fundações, rede de média tensão, subestação, linha de transmissão e vão de conexão. Como a terra necessária para a exploração desse tipo de atividade é constituída por pessoas, plantas e bichos, os conflitos costumam aparecer logo de saída.
De um lado, governantes e empresários argumentam que a transição energética é um imperativo urgente; por outro lado, agricultores rurais e pescadores, apoiados por ambientalistas e defensores dos direitos humanos, compreendem a urgência climática, mas defendem que os empreendimentos sejam construídos longe de suas terras e locais de trabalho e sustento.
Configurado o impasse e dada a assimetria de forças em jogo, prevalece o ditado popular que diz que a corda arrebenta sempre do lado mais fraco. Os empreendimentos vêm sendo tocados à revelia dos moradores dessas regiões, que retiram seu sustento da terra e sofrem com os assédios para arrendar – mediante pagamento de um determinado valor estabelecido pelas empresas - parte de suas propriedades à construção dos parques de energia.
Não demora para que os efeitos sejam sentidos por todos. Nesse modelo corporativo de manejo da luz solar e dos ventos para a geração de energia, os contratos estabelecidos são negociados pelas empresas individualmente com cada família, resguardando o sigilo das cláusulas e valores a serem pagos. Essa medida consiste em uma tentativa de impedir que as famílias compartilhem as informações entre si e se organizem no intuito de obter contratos mais vantajosos. Além de obscuros, os contratos de arrendamento são de longa duração e podem ser renovados permanentemente, configurando uma transmissão dissimulada da posse da terra às empresas que administram o negócio, comprometendo o direito à terra das gerações futuras dos agricultores.
Não obstante, uma vez em funcionamento, as turbinas eólicas produzem um ruído constante, resultante do movimento diuturno das hélices, que prejudica as pessoas expostas a ele. A ausência de silêncio – mesmo à noite – e o abafamento dos sons naturais – e agradáveis - do campo vem causando problemas na saúde mental das pessoas que passam a apresentar quadros de sofrimento psíquico e transtornos mentais, forçando-os muitas vezes a abandonarem suas terras, casas e cultivos em função da insalubridade do ambiente. A websérie “Para Quem Sopram os Ventos?”, da Cáritas Brasileira, evidencia essa realidade.
A vegetação nativa também sofre com os impactos da atividade energética, visto que é preciso realizar a supressão da área vegetal para a construção das instalações e vias de acesso aos parques e complexos. Contribuindo para o crescimento do desmatamento na região da caatinga, onde estão instalados grande parte dos empreendimentos e em que há espécies proibidas de corte, a exemplo do licurizeiro e do umbuzeiro. Para se ter uma ideia da magnitude do problema, alguns parques solares são tão extensos que ocupam áreas que cruzam diferentes municípios vizinhos.
Outro problema ambiental comum é a repercussão na fauna local, sobretudo em aves e pássaros que correm o risco de colidirem contra as turbinas instaladas em rotas migratórias – o caso da arara-azul-de-lear, espécie endêmica na região do Raso da Catarina e ameaçada de extinção, é exemplar. Além disso, o sombreamento intermitente provocado pelo movimento das hélices desorienta os bichos. A falta de estudos de impactos ambientais que levem em consideração áreas de alimentação e reprodução de espécies põe em risco esses animais e provoca seu desaparecimento da paisagem nativa.
No radar de empresários, investidores e governos, a exploração de energia eólica offshore (em alto mar) ainda não dispõe de regulamentação no país, o que impede, por ora, a instalação de turbinas eólicas em águas marítimas. No entanto, paralelamente a isso, já existem memorandos de entendimento (MoU, na sigla em inglês) firmados e projetos de licenciamento ambiental em andamento que envolvem cifras de investimentos astronômicos e potencial energético na casa dos gigawatts, pressionando o Congresso e o governo na aprovação do marco legal.
Caso essa nova fronteira de exploração receba o sinal verde para operar no Brasil, os impactos já estão precificados: na vida marinha, com a destruição de berçários de peixes e recifes de corais para a instalação das estruturas de suporte das turbinas no leito do mar; na atividade pesqueira, com a diminuição do número de peixes e a interdição de acesso a locais de pesca próximos das torres.
Energias supostamente limpas
Diante do quadro exposto é, no mínimo, incoerente continuar a qualificar essas energias como limpas. Expressão que, em última instância, transmite a ideia de um ramo de atividade inofensivo, em que só há aspectos positivos envolvidos, escamoteando processos perversos e prejudiciais. Como toda atividade econômica, este também é um domínio em que benefícios e desvantagens devem ser avaliados e levados em consideração pelos agentes envolvidos.
O terreno de disputas em torno da geração de “energia proveniente do sol” e da “energia proveniente dos ventos” - expressões com maior conformidade com a exploração deste ramo econômico - também implica o campo semântico, uma vez que a linguagem constitui um instrumento de transmissão de conceitos e de compreensão e interpretação da realidade.
Revelar os efeitos deletérios da corrida energética que se julga limpa é como descobrir o outro lado da lua, a metade oculta desses empreendimentos, onde não reflete a luz do sol.
* Iury Abreu Tavares Batistta é pesquisador, especialista em História da Bahia (UEFS), mestre em Estudos Étnicos e Africanos (UFBA) e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social
** As opiniões do autor não refletem necessariamente as do jornal Brasil de Fato
Edição: Rodrigo Durão Coelho