Neste 25 de novembro, Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres, o Brasil de Fato relembra a atuação combativa de um símbolo da luta feminista no Brasil: Nalu Faria, que morreu no último mês de outubro, concedeu entrevista contundente a Amanda Harumy e Mariana Davi Ferreira no programa Diplomacia de Base, ligado ao Instituto Diplomacia para Democracia. Um importante trecho desta entrevista será apresentado aqui.
Coordenadora da Marcha Mundial das Mulheres (MMM), Nalu destacou algumas das importantes conquistas históricas do movimento, que luta pela erradicação da pobreza e da violência contra as mulheres. "Nós, enquanto mulheres, também temos que construir a nossa força política articulada a outros movimentos para fazer com que o feminismo seja uma agenda política de todos", destacou.
É importante destacar que a entrevista foi concedida em janeiro de 2022, e, com isso, algumas informações podem estar descontextualizadas nos dias atuais. Por exemplo, ainda não tinha acontecido a eleição que, enfim, tiraria Jair Bolsonaro (PL) da presidência da República, com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
A íntegra da entrevista será publicada no livro Diplomacia de Base: Internacionalismo dos Movimentos Populares, organizado por Harumy e Ferreira e pelo Instituto Diplomacia para Democracia. Com prefácio de João Pedro Stédile, coordenador do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o livro tem previsão de publicação para o próximo mês de dezembro.
Confira abaixo destaques da entrevista:
Amanda: A convidada de hoje é a Nalu Faria, coordenadora da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) no Brasil e do Comitê Internacional da MMM. Hoje é uma quinta-feira mais triste. Todos nós ficamos sabendo da morte da cantora e artista tão importante que é e foi a Elza Soares, mas acredito que tem tudo a ver com o nosso tema, o movimento de mulheres, o movimento feminista e as resistências que vêm sendo construídas. Para começarmos, gostaria que você apresentasse o movimento, que se declara antirracista e anticapitalista, e foi fundado nos anos 2000.
Nalu Faria: Bom, a Marcha surge em um momento muito parecido com o que nós estamos vivendo aqui e no mundo, que era justamente de hegemonia do neoliberalismo. Nós, aqui nas Américas, estávamos começando nossa luta contra a Alca [Área de Livre-Comércio das Américas]. A Marcha começou em formato de uma campanha que quis posicionar a luta das mulheres desde uma perspectiva mundial, porque avaliamos que, naquele contexto de globalização neoliberal, nossas respostas também tinham que ser em nível mundial a partir de uma visão crítica ao neoliberalismo e anticapitalista. Havia um debate em relação à questão econômica centrada na pobreza, onde as políticas do Banco Mundial, dos organismos multilaterais e dos governos falavam no máximo sobre mitigar a pobreza ou reduzir seus impactos.
A MMM começou se posicionando com a visão de que era necessário erradicar a pobreza e a violência contra as mulheres. Isso orientou todo o nosso projeto político. Primeiro, a ideia de que tínhamos que ser um movimento antissistêmico e que precisava ter um enraizamento de base muito grande. Ao mesmo tempo em que deveríamos ser um movimento internacional mundial, teríamos que estar conectadas aos processos da base. Nas conferências das Nações Unidas, havia todo um processo de articulação pelas cúpulas, mas não estava conectado com os movimentos de base. Então, a Marcha surge de uma visão crítica em relação a isso.
Resumindo, no nosso movimento podemos identificar três questões. A primeira é a visão política e crítica ao neoliberalismo, mas desde uma perspectiva anticapitalista e antissistêmica. A segunda questão era a compreensão da importância de disputar uma visão do feminismo pela esquerda, desde os setores populares, entendendo que havia uma disputa, com um processo de institucionalização do feminismo. Aqui nas Américas, isso era muito forte, com um rebaixamento da agenda política. Em terceiro lugar, pensar um processo organizativo baseado na auto-organização das mulheres, mas que, concomitantemente, construísse relações de aliança com os movimentos. Porque, se queremos mudar o mundo, temos que construir um processo de mobilização muito mais amplo.
Uma questão que impactou muito o início da Marcha foi posicionar as mulheres como sujeitos político-econômicos. Nós estávamos [como Marcha] discutindo o modelo econômico, apresentando alternativas a esse modelo no momento que nós, mulheres, não éramos reconhecidas como “atoras” econômicas e, no máximo, como aquelas que tinham os problemas sociais ou que eram as frágeis, as que necessitavam de auxílio, de apoio. E nós dissemos: “não, nós somos atores econômicos, construímos economia e tudo que existe nessa sociedade tem a ver com aquilo que nós, mulheres, fazemos”.
Mariana: É um elemento importante conseguir apontar que as mulheres ocupam o espaço, para além do espaço do cuidado, que também já é uma garantia das condições para que os trabalhadores consigam se reproduzir (comer, dormir). Então, queríamos que você falasse um pouco sobre como se deu esse processo de construção da Marcha como um movimento internacional e sobre as particularidades das pautas de luta das mulheres e da Marcha na América Latina, tendo em vista que existem elementos específicos dos desafios e dilemas que as mulheres têm que enfrentar cotidianamente em países de capitalismo dependente e da periferia do mundo. E, a partir disso, gostaríamos que você apresentasse as lutas históricas da Marcha, além de falar sobre as articulações internacionais das quais a Marcha participa atualmente.
Nós nos articulamos como uma campanha política de mobilização contra a pobreza e a violência, que começou no 8 de março de 2000, que era uma Quarta-Feira de Cinzas do Carnaval. Mas nós conseguimos ir às ruas aqui no Brasil e em vários lugares do mundo, até o dia 17 de outubro. Essa campanha teve um impacto muito grande. E em muitos países, inclusive no Brasil, nós falamos “não queremos que essa campanha termine no dia 17 de outubro”. No ato final, que ocorreu em Nova Iorque, na avaliação, vários países já levaram a ideia de tornar o movimento permanente. Não havia muita coisa pensada. A conjuntura era interessante porque estava se organizando o primeiro Fórum Social Mundial aqui no Brasil, que foi em janeiro de 2001. Então, nos propusemos a nos encontrar no Fórum Social Mundial.
Por termos na Marcha essa visão de aliança com os movimentos, desde o início, conseguimos ver o Fórum Social Mundial como uma oportunidade para expressarmos esse posicionamento político mais geral. Desde o primeiro fórum, com a Via Campesina, com setores do movimento sindical e outros movimentos, criamos uma Assembleia dos Movimentos Sociais. Esse processo foi extremamente importante para nós, porque contribuiu muito para a nossa construção internacional, para essa construção das alianças, e para aquilo que foi sendo a definição da nossa agenda política.
Queríamos trabalhar tanto a luta contra a violência, como a luta contra a pobreza, desde uma dimensão da transformação. Em decorrência disso, um dos aspectos que a Marcha posicionou foi uma visão sistêmica. Não tem como construir igualdade para as mulheres se não desmantelarmos todas as formas de opressão e exploração que organizam o atual modelo. Há uma imbricação e coexetensividade entre capitalismo, racismo, colonialismo, opressão da sexualidade e o patriarcado.
Nos ancoramos na discussão da economia feminista, mostrando que a economia não é só aquilo que nós produzimos (os carros, as casas, os móveis), a economia também é o cuidado, essa sustentabilidade da vida. Então, a questão do reconhecimento da contribuição das mulheres para a economia, a partir desse trabalho cotidiano, a partir do trabalho doméstico, era uma discussão antiga no feminismo que se atualizou a partir dessa visão da economia feminista, além da articulação da Marcha com a Rede Latino-Americana Mulheres Transformando a Economia (Remte) e com a Via Campesina. Isso aponta um pouco das particularidades da luta na América Latina. Essas articulações nos fizeram perceber que essa transformação da economia envolve não só o trabalho doméstico e o cuidado da casa, mas também os afetos e os vínculos. No debate sobre soberania alimentar, isso foi fundamental para pensarmos que para construir soberania alimentar também é preciso igualdade entre homens e mulheres.
Nossas pautas foram se articulando a partir dessa visão da transformação da economia desde uma perspectiva geral. Não pensando a economia só do ponto de vista do capitalismo, do que é monetário e tem valor de troca no mercado, mas pensando a economia como conjunto dos bens e serviços que precisamos para viver, da interrelação entre produção e reprodução e, portanto, está relacionado a como nos organizamos na sociedade, a como articulamos poder e política.
Aqui na América Latina, a nossa participação na campanha contra a Alca e nas campanhas contra a OMC foi muito forte. Nossa particularidade foi o envolvimento com o conjunto das lutas daquele momento, com o fortalecimento das alianças. Isso se deu não só nos espaços gerais de articulação, mas também nos nossos territórios, dos nossos países, nos nossos movimentos de base e, claro, em toda a experiência da América Latina, de como atuamos com os processos de educação popular e de formação. Como vivemos na América Latina, nos anos 2000, o processo do ciclo dos governos progressistas nos colocou outros desafios. Como, a
partir dos movimentos, da nossa autonomia e da nossa visão de transformação, era possível atuar para que os governos pudessem efetivar o máximo possível de políticas de transformação?
Nós, enquanto mulheres, também temos que construir a nossa força política articulada a outros movimentos para fazer com que o feminismo seja uma agenda política de todos. Isso também é fundamental: não queremos fazer o feminismo em separado das outras lutas, mas garantir que a perspectiva feminista atravesse e constitua o nosso programa de transformação. Queremos um programa de transformação construído por sujeitos plurais.
Amanda: Passamos por uma catástrofe que aprofunda a crise econômica, mas também uma crise social, uma crise política. Desde o início da campanha, o presidente Bolsonaro já tinha as mulheres como um alvo comum na construção da própria personagem. Tivemos Damares como ministra, que representou de uma forma muito desproporcional a realidade da luta das mulheres no Brasil. Minha pergunta é: como se dá esse processo de resistência do movimento feminista em relação à crise que deixa a vida das mulheres ainda mais difícil. Vocês tiveram algum espaço para denúncia internacional das infrações do governo Bolsonaro em relação à vida das mulheres no Brasil?
Nós já refletíamos antes do governo Bolsonaro e antes do golpe sobre essa reação conservadora nos setores de direita. Por mais que tivéssemos governos progressistas ou buscando empurrar pautas mais democráticas, havia já toda uma articulação da direita, tentando limitar as ações do governo, mas também no conjunto da sociedade. Esse processo de conservadorismo vem sendo constituído há algumas décadas, e é uma resposta a esse processo de organização das mulheres, dos povos negros, dos povos indígenas e assim por diante. Nesse sentido, a Damares é o contrário do que é a luta feminista. Bolsonaro não queria ter uma ministra da mulher para representar as lutas das mulheres. Era o contrário: uma ministra para demonstrar que o Estado, a partir de agora, iria, de forma incisiva, fazer política antimulher, anti-igualdade das mulheres. Ela, de maneira nenhuma, é uma representante às avessas ou não à altura do movimento de mulheres. Ela está do lado do patriarcado. Isso, inclusive, é um elemento bastante forte para pensarmos e avaliarmos como lidamos com a dimensão dessas disputas.
Nós, na Marcha, trabalhamos muito com a ideia de agudização do conflito capital x vida. Vemos isso em todos os momentos: nas políticas do agronegócio, das mineradoras, de precarização da vida, por meio do genocídio das populações negras e a reação frente aos migrantes que tentam chegar em várias partes da Europa pelo Mediterrâneo e assim por diante. Então, vivemos uma crise extremamente profunda. A pandemia aprofundou e escancarou as desigualdades que estávamos vivendo.
Olhamos essa questão por duas dimensões. Primeiro, como o sistema organiza as relações é voltada para a utilização do trabalho, do tempo das mulheres como recursos inesgotáveis. Nos momentos de crise, isso é muito visível porque é sobre os ombros das mulheres que recaem mais trabalho, a necessidade de mais tempo para o cuidado, a responsabilidade da busca pela sustentação da vida. Na pandemia, as mulheres estão trabalhando mais, “esticando o orçamento”, “esticando o tempo”, inclusive em um ambiente de forte pressão com o aumento da violência doméstica, das tensões e dos medos. Além disso, há aquelas que estavam na linha de frente do combate ao vírus nos serviços de saúde. Mas vimos, também, o outro lado: as ações de solidariedade. As respostas a esse momento de crise também são protagonizadas pelas mulheres. Somos nós, as mulheres, que estamos à frente disso.
Hoje já não se pode mais ignorar o protagonismo das mulheres nas resistências e nas lutas por transformação. Há alguns anos, em todas as eleições, o problema era como fazer as mulheres votarem na esquerda, porque a maioria das mulheres estava votando na direita. Hoje o debate é outro. Somos nós, as mulheres, que saímos às ruas pelo “Ele não”. Fomos nós que votamos menos no Bolsonaro. Durante todo o período do governo Bolsonaro, em todas as pesquisas de avaliação da gestão, as mulheres eram as mais críticas.
Desde o começo da Marcha percebemos isso: quando chega esse ataque às bases da vida, são as mulheres que estão mais atentas à comida, à água, à necessidade de saúde e de remédios e assim por diante, não como uma questão biológica, essencialista. Agimos assim porque cumprimos nossa parte na divisão social e sexual do trabalho. Ao mesmo tempo, as mulheres confiam menos no mercado, em parte por termos sido excluídas, e consequentemente conhecermos menos como ele funciona. As companheiras do MAB [Movimento dos Atingidos por Barragens], por exemplo, dizem que quando havia processos de negociação e de indenização da terra, as mulheres resistiam mais e os homens rapidamente queriam aceitar o dinheiro. Eles pensavam coisas como “com esse dinheiro eu vou para a cidade, abro um negócio, vou crescer”. Enquanto isso, as mulheres pensavam: “não, a única coisa que eu tenho é a terra, daí que eu tiro o sustento dos meus filhos. Esse dinheiro não vai ficar na minha mão, esse dinheiro vai desaparecer”. Ocorre o mesmo com as práticas agroecológicas. Por que quando vemos o movimento agroecológico e de soberania alimentar, as mulheres estão mais abertas à agroecologia? Porque as mulheres nem sequer foram incorporadas pela revolução verde. Elas foram excluídas.
Então, o que conhecemos são as formas de produção históricas, tradicionais e ancestrais, o que a agroecologia propõe. Essa dimensão de que as mulheres têm menos conhecimento, no sentido de experiência em relação ao mercado, também nos leva a pensar alternativas e ampliar o debate. As mulheres não estão dizendo que querem ser parte do mercado, que querem ser parte dessa economia capitalista. Não interessa que tenhamos mulheres executivas, não interessa esse feminismo liberal que fica medindo quantas mulheres executivas existem. Nos interessa que deixe de ter empresas capitalistas e que pensemos em outras formas de produzir: cooperativas, estatais, formas de articulação dos comuns e não de empresas capitalistas, onde eu meço o progresso das mulheres avaliando se elas estão ou não nos espaços de gestão do capital. Mulheres gerindo o capital são mais mulheres atuando contra os interesses da grande maioria de nós.
Mariana: Vivemos um aprofundamento dessa crise, com a questão da covid-19, e, em paralelo, uma rearticulação da extrema-direita em diferentes lugares do mundo, no qual o fundamentalismo religioso faz com que o Estado tente retomar a tutela sobre os corpos das mulheres. Nesse momento, se torna ainda mais atual a frase de Simone de Beauvoir: “Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes”. As mulheres precisam se manter vigilantes para que esses direitos conquistados não sejam retirados. Observar o impacto das várias dimensões da crise na vida das mulheres é uma forma de estarmos atentas ao que deve conduzir as nossas lutas, inclusive na perspectiva do internacionalismo. Nesse sentido, vivemos uma conjuntura de crise do neoliberalismo em todo o mundo, no qual se explicita o impacto desses acordos na vida das mulheres. Você poderia falar um pouco sobre a questão da luta da MMM contra os acordos de livre comércio, como a campanha contra o acordo entre a União Europeia e o Mercosul?
Quando começamos esse debate contra os acordos comerciais, no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, toda a discussão estava dentro da ideia de livre mercado. A primeira coisa que fizemos foi desconstruir o argumento, para demonstrar que não era uma ideia de livre mercado ou de liberdade que estava em pauta. Era um projeto de controle e de imposição de normas que iriam garantir que alguns ganhassem e os outros perdessem. Entretanto, mais do que uma intervenção de compra e venda de mercadorias, foi muito forte na análise da Marcha sobre a Alca, demonstrando que o que estava se passando era uma expansão de mercantilização da vida e da natureza. Eles não queriam vender mais e comprar mais de forma mais simples; queriam expandir o processo de mercantilização. Foi nesse contexto que criamos uma consigna na Marcha Mundial das Mulheres, que ficou muito conhecida e foi incorporada em diversas lutas: “A nossa luta é todo dia! Somos mulheres, não mercadoria”.
Nesse contexto também estava o processo de mercantilização dos nossos corpos e de nossas vidas, tanto do ponto de vista desse uso intensivo do nosso trabalho, como das nossas dores: “Basta tomar uma pílula, um ansiolítico”. E ainda pela imposição de padrões de beleza a partir da venda de cosméticos, serviços e cirurgias plásticas. Então, fomos mostrando como isso estava sempre vinculado a mais trabalho e mais responsabilidade na dimensão do cuidado para as mulheres. Principalmente para as mulheres mais pobres, porque o mercado estabeleceu: “quem tem dinheiro paga, quem não tem dinheiro, trabalhe para acessar”.
Isso tudo se conecta com a diminuição do número de escolas, de creches e de serviços públicos que possam responder às necessidades da reprodução social e dar suporte à vida das mulheres. Então, nós quisemos mostrar como a dimensão patriarcal era estruturante desse modelo de livre mercado no projeto da Alca, com a utilização dos corpos e da vida das mulheres para sustentar esse modelo da precarização da vida, gerando aumento da prostituição, do trabalho doméstico e da carga de cuidado para as mulheres.
A proposta de tratado da União Europeia e Mercosul não é nova e vimos que era tão maléfico quanto a proposta da Alca. Tinha uma maquiagem, trazia elementos da participação da sociedade civil, outros condicionantes ambientais que faziam parecer que a coisa não é tão ruim. Mas, na essência, ia provocar as mesmas coisas que uma Alca provocaria, inclusive destruição de parte da nossa indústria, da nossa agricultura, dos nossos produtos agrícolas, dos nossos queijos, dos nossos vinhos. Seria só um processo de imposição imperial e neocolonial sobre os povos do Sul para favorecer algumas empresas.
E há uma renovação do poder das transnacionais, tanto do ponto de vista econômico, como no campo político, com leis que garantem a sua impunidade. As empresas hoje tentam, sob esse rótulo de responsabilidade social, parecer que são elas que têm uma agenda social. Do ponto de vista do Estado, há incremento de mais parcerias público-privadas (PPPs). Portanto, privatizando cada vez mais os serviços que devem ser públicos, os processos democrático e assim por diante. Há uma intensificação dos ataques e da ocupação dos nossos territórios favorecida pela financeirização, que utiliza a cooptação dos movimentos ou tenta dividir as populações.
No caso das mulheres, fundações empresariais apoiam projetos chamados de empoderamento econômico feminino, utilizando um discurso assimilado por setores do feminismo e tentando banalizar o que são os nossos
conceitos. Não se fala mais em “direitos”, mas em “acesso”, não fala mais de “trabalho”, se fala de “empoderamento individual” e de “empreendedorismo”. Numa situação de crise e de muita vulnerabilidade, esses recursos e esses editais de projetos representam sobrevivência. Só que, ao mesmo tempo, vão impondo uma agenda, seus produtos, e minam a força de resistência dos movimentos. No nosso caso, das mulheres latino-americanas e das africanas, uma das estratégias dessas empresas é na área da saúde reprodutiva, com campanhas pelas pílulas anticoncepcionais ou pelas abortivas. Esses projetos vêm via fundações, como uma forma de controle do corpo das mulheres e de imposição dos seus produtos farmacêuticos e não de garantira de autonomia. Vivemos um momento de reatualização desses mecanismos de controle de financeirização.
Amanda: Agora, gostaria que você contasse um pouco sobre qual é a perspectiva de luta para 2022 numa perspectiva de avanço do movimento feminista no Brasil, fruto de algumas experiências que tivemos da América Latina, avanços em relação à descriminalização e à legalização do aborto em alguns países. Quais são os principais desafios e temas em que devemos buscar avançar no Brasil em 2022?
Em 2022, não teremos como não articular a nossa agenda de luta com o processo da disputa eleitoral. Antes, os movimentos ficavam mais separados, não se envolviam tanto. Mas, agora, frente a nossa luta para derrotar Bolsonaro, esse processo eleitoral se insere na continuidade da campanha “Fora Bolsonaro”. Retomando um pouco daquilo que falei antes, é muito importante garantir no nosso campo de articulação dos movimentos a incorporação das demandas feministas. Descriminalização e legalização do aborto, luta contra a violência, política pública de cuidados baseada na socialização de parte do trabalho doméstico, estruturada a partir das políticas sociais de educação, de saúde e de creches. Nas nossas plataformas coletivas, esses temas estão presentes.
Vai ser extremamente importante ter uma vitória da esquerda. Nós só vamos avançar na luta pelo aborto, por exemplo, se conseguirmos derrotar o fascismo e o conservadorismo, que toma a iniciativa de pautas que criminalizam mais o aborto. E o que nós fazemos? Resistimos. Então, temos um duplo desafio. O primeiro é recuperar a legitimidade desse tema com as mulheres e com a população em geral, porque esse trabalho conservador de imposição da maternidade como destino e de criminalização do aborto tem impacto nas consciências. Por isso, é importante que essa reflexão seja incorporada pelo conjunto dos movimentos, para não parecer que é uma pauta só das feministas. É uma questão de direito e de reconhecimento da maternidade como uma decisão e não como uma imposição. Isso faz parte dos nossos desafios dentro dos movimentos e na sociedade. O segundo é ganhar as eleições, derrotar o projeto do Bolsonaro é fundamental para podermos avançar nessa luta da descriminalização e da legalização do aborto.
Também não podemos desvincular nossa luta da luta contra a precarização do trabalho. Não temos como constituir igualdade para as mulheres, se não desconstruirmos a divisão sexual no trabalho. A ideia de que o trabalho das mulheres é separado do trabalho dos homens, de que o trabalho das mulheres vale menos que o trabalho dos homens, de que nós somos as únicas responsáveis pelo trabalho doméstico e de cuidados. Sempre me lembro da economista feminista, Cristina Carrasco, que afirma: “O cuidado é tão importante e é tão necessário que nós não achamos que ele tem que ser feito só por nós, mulheres”.
Na Marcha, temos discutido que qualquer novo modelo de uma nova sociedade tem que estar baseado em dois princípios. O primeiro é a nossa ecodependência, nós precisamos da natureza e temos que estar em harmonia com a natureza. O segundo princípio é o da interdependência. O cuidado não é só uma coisa para as crianças, para os idosos ou para os doentes; todos os seres humanos necessitam de cuidados ao longo de sua vida, em alguns momentos mais, e em outros menos. Temos que pensar o cuidado a partir da interdependência e, portanto, da reciprocidade. Nós não temos só que cuidar, mas também ser cuidadas. Como vocês sabem, esse tema do cuidado está na agenda por conta da pandemia. E quando ele se torna um tema na agenda do conjunto, é muito importante afirmar que estamos trabalhando o tema cuidado desde a perspectiva feminista. Há muitos anos temos uma discussão ancorada em toda a nossa análise sobre o que é a sociedade patriarcal, sobre o que significa isso no capitalismo. Então, a nossa luta deve ser estruturante do modo como lidamos com a reprodução da vida e, portanto, do cuidado; não é uma questão setorial.
Mariana: Sua fala nos ajuda a pensar como o feminismo e as mulheres organizadas podem pensar, debater e tentar contribuir com a construção de uma agenda de política externa, seja com a inserção de mais mulheres no Itamaraty, seja com a luta contra esses acordos ou então de entendimento de como esses acordos de livre comércio vão impactar as nossas vidas. Também nos ajuda a fazer o debate de como o Estado brasileiro, o Itamaraty e a política externa e os servidores públicos, que estão vinculados à política externa, sejam chanceleres ou diplomatas, conseguem mediar esses processos que vão trazer impactos para a nossa vida. Então, isso pressupõe pensar a dimensão econômica, a dimensão da regulamentação da entrada de empresas internacionais na economia brasileira. Esse debate está mostrando que essas pautas, que parecem ser muito mais amplas e distantes, têm uma conexão com a vida das mulheres no Brasil. Esse é um elemento que fica de contribuição dessa entrevista: o diálogo sobre a política externa presente nos programas dos candidatos e candidatas virão disputar as eleições presidenciais de 2022. Dito isso, uma pergunta enviada pela audiência: como se dá a intersecção do feminismo negro na Marcha Mundial das Mulheres?
Sobre o seu comentário, nos anos 2000, debatemos sobre a política externa na América Latina e Caribe, a partir da ideia de integração dos povos. Nós afirmamos que queríamos uma integração em que os governos atuassem desde a redistribuição, da solidariedade e da complementaridade das nossas economias e da nossa sociedade. A nossa referência na Alba tem muito a ver com isso, pois lá a cooperação não foi só por trocas monetárias. Outros mecanismos foram desenvolvidos nas políticas de cooperação: a ida dos médicos cubanos para a Venezuela enquanto a Venezuela fornecia petróleo para Cuba, por exemplo. Temos que retomar esses debates e refletir a partir da integração dos povos, como orientação para políticas diplomáticas e externas dos nossos países.
Sobre o feminismo negro, desde o início e por ser um movimento popular, a base da Marcha sempre foi muito negra. Então, desse ponto de vista, sempre buscamos atuar, olhando a questão da desigualdade racial, problematizando a relação das lutas antirracistas com a nossa luta feminista. Por exemplo, uma das primeiras grandes lutas que tivemos no Brasil foi pela valorização do salário mínimo. Nós afirmávamos naquele momento e continuamos afirmando que a valorização do salário mínimo é uma luta extremamente feminista e antirracista, porque nós, mulheres, em particular as mulheres negras, somos a maioria das que ganham menos de um salário mínimo ou até um salário mínimo.
Temos que pensar a luta antirracista, olhando essas questões que alteram as condições concretas de vida articuladas com o movimento negro e o que as mulheres negras trazem. Era importante reconhecer que nós somos atores da economia e isso se conecta à dimensão da luta antirracista. Esse é um elemento extremamente forte, não olhar as mulheres negras como as “coitadinhas”, as “sofredoras”. São mulheres exploradas, oprimidas, mas são as que mais contribuem para a construção dessa sociedade. Não é só porque fazem o trabalho mal pago, o trabalho doméstico e o trabalho de cuidados. É pelo seu conhecimento ancestral, pela sua espiritualidade, pela sua história e pela história de resistência.
A nossa força está na nossa resistência. Discutimos muito isso na América Latina. As populações indígenas da América Latina também trazem esse legado da resistência. Se nós estamos aqui, é porque nós lutamos e resistimos à nossa história de violência, de estupro, de matança, de genocídio. Nesse sentido, as mulheres negras têm uma força. É muito importante se colocar no lugar das mulheres negras e reconhecer sua contribuição. Hoje, muitas das coisas que defendemos no movimento em geral, aprendemos com as mulheres negras. A dimensão dos comuns, dos vínculos da comunidade, da solidariedade. Nós também temos que pensar que isso é parte da história de todos os oprimidos e oprimidas; das mulheres indígenas, das mulheres pobres do mundo.
No Brasil, temos um grande desafio: enegrecer os nossos movimentos. Isso significa incorporar as pautas, ter a presença permanente das mulheres negras nos espaços de representação, atuando como vozes públicas, mas também na forma de nos organizarmos, porque a maioria de nós foi socializada sob uma perspectiva muito racista, muito branca, muito cristã. As próprias músicas que escutamos. Vemos o conflito cultural de uma pessoa que foi educada com referenciais brancos ocidentais quando se encontra na cultura negra, porque são dois mundos diferentes com dificuldades de se fundir. Mas, por outro lado, o Brasil é um país, pela resistência do povo negro, cheio desses processos de fusão, cheio desses processos de contaminação, por mais que o racismo continue existindo. É a força da luta negra que garante que enfrentemos o racismo que está em nós.
Edição: Vivian Virissimo