"Renomear é descolonizar, é contar a história de um povo"
Transformar espaços públicos para enfrentar o passado colonial é uma maneira de formar a identidade de um país. Esse é o pensamento de Reinaldo Bolívar, ex-vice-ministro das Relações Exteriores da Venezuela para a África, e que hoje é um dos principais responsáveis por elaborar e coordenar a política de Descolonização da Memória Histórica adotada pelo governo venezuelano.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o pesquisador e professor formado pela Universidade Central da Venezuela (UCV) explica que o projeto formal existe desde 2018, mas que o país já havia começado a passar por transformações no âmbito da preservação e reconstrução da memória nacional desde que o ex-presidente Hugo Chávez chegou ao poder, em 1999.
"Para um povo, descolonizar significa valorizar sua história, sua ancestralidade e formar uma identidade nacional", afirma o ex-diplomata que hoje é diretor do Centro de Saberes Africanos, Americanos e Caribenhos e do Instituto Venezuelano de Pesquisas Estratégicas sobre África e sua Diáspora.
As ações empreendidas pelo ex-presidente Chávez e por seu sucessor e atual mandatário, Nicolás Maduro, visam incluir figuras populares no Panteão Nacional, renomear espaços públicos e retirar estátuas e homenagens que remetem ao período em que o país foi colonizado pelo império espanhol (1515 a 1811).
Dois casos emblemáticos aconteceram na capital, Caracas, onde a montanha conhecida como El Ávila, que rodeia a cidade, passou a se chamar oficialmente Waraira Repano, nome utilizado pelos indígenas para se referir ao local. Além disso, uma das principais rodovias de Caracas levava o nome do conquistador Francisco Fajardo, mas desde 2020 passou a se chamar Gran Cacique Guaicaipuro, em referência ao líder indígena que resistiu à invasão espanhola no território que hoje conforma a capital venezuelana.
"É preciso fazer com que as pessoas entendam que os povos têm direito a refletir, a se reencontrar, a serem respeitados e, sobretudo, é preciso lembrar que renomear é descolonizar, renomear é contar a história de um povo", afirma Bolívar.
O pesquisador ainda diz que esse processo iniciado na Venezuela tem relações com movimentos em várias regiões do mundo de derrubada de estátuas e monumentos de colonizadores. Um deles, inclusive, ocorreu no Brasil, quando o movimento Revolução Periférica ateou fogo em uma estátua que homenageia o bandeirante Manuel Borba Gato em São Paulo.
Para Bolívar, a posterior prisão dos líderes do movimento em SP "significou a criminalização da descolonização" e a derrubada de estátuas como a do conquistador Cristóvão Colombo se transformou em uma onda pelo mundo.
"O passado não tem que ser necessariamente ruim, mas neste caso ele representa o colonizador, o usurpador, o genocida que dizimou 60% a 80% da população dos indígenas da nossa América", diz.
Atualmente, o pesquisador está à frente de uma campanha para levar Miguel de Buría ao Panteão Nacional da Venezuela. Líder de uma rebelião de escravizados no século 16, no território que conformaria anos mais tarde a Venezuela, "Negro Miguel", como ficou conhecido, pode se tornar o próximo herói negro venezuelano a ocupar um espaço no centro de preservação mais tradicional do país.
"O Panteão deve contar a nossa história, desde antes de se conformar o Estado-nação, quando aqui viviam as comunidades indígenas. Deve contar a história da nossa luta pela independência e ali deveriam estar os indígenas que lutaram até, praticamente, 1600 e os africanos, que chegaram escravizados e lutaram ao lado de Miguel em 1552, e, é claro, as mulheres", afirma.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Em que consiste e como começou o processo de descolonização dos espaços públicos na Venezuela?
Reinaldo Bolívar: A Venezuela encarou a descolonização como uma bandeira, como praticamente uma política de Estado que começou em 1999, com a própria Constituição da República Bolivariana da Venezuela, que estabelece o princípio da multiculturalidade, o princípio da convivência de todas as etnias e religiões, mas, sobretudo, o respeito aos indígenas e afrodescendentes.
Isso vai se aprofundando ao longo do tempo quando o então presidente Hugo Chávez questiona a toponímia [estudo dos nomes de localidades] de alguns lugares. Por exemplo, o caso da emblemática montanha El Ávila, em Caracas, cujo nome originário era Waraira Repano, que significa "grande terra firme", "grande montanha", "montanha da paz". Ele começa a explicar isso e, mais tarde, o presidente Nicolás Maduro faz outra proposta de mudança de nome de uma rodovia emblemática de Caracas que levava o nome de um colonizador, conquistador e invasor. O nome muda para "Guaicaipuro".
Depois disso, surge um estudo sobre a toponímia, feito por nós, e o manual, que se tornou um livro e se chama: Manual para a Descolonização da Toponímia na Venezuela. Tudo isso é aprofundado em um encontro, em 2018: "Encontro de Reparações" e depois o "Encontro para a Descolonização da Memória Histórica". Há dois anos, criou-se também na Venezuela a Comissão da Verdade Histórica para a Descolonização na Venezuela, que vem trazendo propostas de políticas públicas sobre o tema.
Em termos práticos, no dia a dia, o que significa para um país como o seu ter a oportunidade de descolonizar os espaços? Qual é a importância desse processo para o povo venezuelano?
Para o povo, significa valorizar a história, valorizar sua ancestralidade e suas tradições. E o objetivo, estabelecido no Plano da Pátria 2012-2019 e agora no Plano da Pátria 2019-2025 é o objetivo histórico de uma identidade nacional e uma identidade grã-nacional. O povo entendeu isso muito bem.
Por exemplo, foi feito um processo, através da UNESCO [Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura], para que nossos patrimônios históricos sejam reconhecidos, assim como a Festa de San Juan, as danças, o Carnaval El Callao, ritmos como o joropo, instrumentos como o cuatro, que são próprios da identidade nacional, os bailes, as danças, os patrimônios que a UNESCO chama de "imateriais".
O povo vai se identificando com isso porque sente que sua tradição, suas expressões, sua identidade com o patrimônio estão sendo valorizadas e tomando corpo. Isso gera um orgulho nacional que motiva e une as pessoas como nação.
Você mencionou o caso da troca de nome do Waraira Repano e da rodovia Francisco Fajardo, que agora se chama Guaicaipuro. Qual foi a importância dessas mudanças e o que elas significam na história da Venezuela?
Vou contextualizar. Há alguns dias, estávamos apresentando o nosso livro Manual para a Descolonização da Toponímia e dissemos que nomear e renomear foi uma política da invasão europeia. Nas "Capitulações de Santa Fé", assinadas por Cristóvão Colombo e pelos reis católicos, eles ordenam que qualquer terra que ele pisasse deveria ir recebendo nomes católicos ou da realeza.
Por exemplo, Colombo chega a umas ilhas do Caribe e, imediatamente, chama uma de "El Salvador" outra de "Fernandina", em homenagem à filha dos reis, outra de "Isabela", em homenagem à rainha, e "Santiago León", que é um nome que se repete. Os próprios invasores podiam colocar seus nomes, que eram nomes de santo, normalmente. Outra política dos invasores era se casar com lideranças indígenas para, dessa maneira, levar junto bandos de indígenas sob o comando de cacicas.
Foi o caso da cacica Isabela, da Venezuela. Foi chamada de "Isabela" por eles, em homenagem à rainha. Era uma indígena Guaiqueri, que se casa com Francisco Fajardo pai. Assim nasceu Francisco Fajardo filho, que esteve a serviço dos espanhóis.
Essa prática se multiplicou por toda parte, inclusive no México. Os invasores se casavam com líderes indígenas ou suas filhas. É o caso da filha de Montezuma no México. Então, Fajardo filho é um mestiço, filho de espanhol com essa mulher indígena que se entregou e traiu a causa.
Francisco Fajardo filho assassina muitos indígenas em Caracas e, estranhamente, parte da história venezuelana o considerou um exemplo de unidade entre os povos. Era um assassino, um genocida, mas deram seu nome à principal via de Caracas, com 40 km, que vai de oeste a leste da cidade.
Já o grande cacique Guaicaipuro, que eu considero o primeiro chefe de Estado da nação venezuelana, uniu 19 povos indígenas para combater o invasor, combater o espanhol, e quase conseguiu derrotá-los até que uma traição o leva à morte. Um dos que perseguiam Guaicaipuro era Francisco Fajardo. Então, Guaicaipuro, que pode ser, para nós, a origem da nação como tal, o principal chefe político unificador, é assassinado, enquanto o genocida é homenageado. Isso só acabou nos governos de Chávez e Maduro, nessa nova etapa da Venezuela. No ano de 2020, precisamente com uma proposta minha, a rodovia passou a se chamar "Gran Cacique Guaicaipuro, Jefe de jefes".
Também houve o caso da estátua que estava no Paseo Colón, em Caracas. Em 2004, movimentos sociais derrubaram essa estátua e, hoje, há uma estátua de Guaicaipuro, certo?
Sim, Colombo foi derrubado na época do presidente Chávez e isso se multiplicou em outros lugares, nos EUA, Colômbia, México. O passado não tem que ser ruim, mas neste caso representa o colonizador, o usurpador, o genocida que dizimou 60% a 80% da população indígena da Nossa América. E Colombo é o principal, é quem comandou tudo isso.
Em torno dele haviam criado uma imagem de homem bom. Os maus eram os que vieram depois dele, mas os próprios "Diários de Colombo", nos livros de Bartolomeu de Las Casas, mostram que Colombo era um homem ambicioso, ávaro, que não hesitou em capturar e escravizar indígenas para mandá-los como troféu à Espanha.
Era um homem tão mau, que seus próprios conterrâneos o prenderam e levaram algemado à Espanha, tirando dele todos os privilégios que tinha naquele momento. Ou seja, quem primeiro derrubou Colombo foi a própria Espanha.
Atualmente, você lidera uma campanha para levar Miguel de Buría, conhecido como "Negro Miguel", ao Panteão Nacional. Quem foi esse personagem histórico? e por que deve ter um espaço no Panteão da Venezuela?
Há personagens históricos que, à medida que vão sendo estudados, aparecem e reaparecem mais. Por exemplo, vocês, no Brasil, têm Zumbi dos Palmares, que também admiramos muito. Miguel com certeza tinha outro nome, mas foi rebatizado como "Miguel" e lhe deram o sobrenome de um escravagista.
Ele foi um dos primeiros escravizados a chegar à Venezuela, por volta de 1530. Foi levado com outros 80 para o oeste venezuelano para procurar ouro e tudo o que os conquistadores sempre queriam, ouro, prata, pérolas. Miguel se rebelou contra os escravagistas, fez uma aliança com os indígenas da região, que eram os caciques Jirajara, casou-se com Guiomar, que, segundo os estudos, poderia ser uma afroindígena ou indígena Jirajara, e nas minas de Buría, no estado de Yaracuy, no oeste venezuelano, fez um levante contra os conquistadores e os colocou em xeque a tal ponto que, em 1552, aderiram à rebelião centenas de indígenas.
Eles invadem cidades vizinhas como Barquisimeto e essa primeira rebelião ocorrida na Venezuela, talvez a primeira rebelião afroindígena da nossa América, é tão forte que os espanhóis procuram todas as autoridades, que, coincidentemente, se chamavam Diego. Havia cinco "Diegos" vindo da região oeste, centro e norte da Venezuela, todos levam suas forças a Barquisimeto, no estado de Lara, até conseguirem vencer e assassinar Miguel de Buría. Essa figura voltou a surgir na Venezuela e já, há alguns anos, estamos pedindo que seja levada ao Panteão Nacional.
O Panteão é o templo ou altar máximo das heroínas e heróis e das pessoas com suficientes virtudes e talentos que serviram à pátria. Por isso, iniciamos essa campanha para levar Miguel de Buría e o Conselho do estado de Yaracuy, de onde ele vem. Os conselhos municipais de todo o estado de Yaracuy, o próprio estado de Lara e as correntes afrodescendentes da Venezuela também vêm aderindo a essa importante campanha
A ideia é levar ao Panteão tanto Miguel como sua esposa Guiomar, porque ele se proclamou rei. Seus companheiros o nomearam rei. Por que fizeram isso? Porque ele dizia: "Se os espanhóis dizem que sua autoridade é o rei da Espanha, e nós não reconhecemos outro rei senão nosso próprio rei, nem outro deus, senão nossos próprios deuses, seremos proclamados rei e rainha de Buría".
Assim foi dado um importante passo, a contextualização de um Estado, de uma cidade-Estado, Cumbe de Estado que começa com Miguel e Guiomar, que têm até gabinete, um bispo e todo tipo de coisa para dizer aos espanhóis: "Nós mesmos podemos nos governar".
A campanha para levar "Negro Miguel" e outros heróis e heroínas negros e negras ao Panteão Nacional pode servir como instrumento concreto na luta contra o racismo no país?
O Panteão Nacional da Venezuela, no início da década de 2000, tinha 143 ou 147 pessoas, se não me engano. Em primeiro lugar, havia muito poucas mulheres. Um número ínfimo.
Em segundo lugar, havia poucos indígenas ou simplesmente não havia. O primeiro indígena incluído é Guaicaipuro, com o presidente Hugo Chávez. E, se havia pessoas negras ou afro é porque eram heróis da independência, como o caso de Rondón, Infante.
Mas as figuras emblemáticas que não eram militares ou eram militares de baixa patente, como Pedro Camejo, o "Negro Primeiro", ou a primeira professora de Simón Bolívar, como foi Matea Bolívar, ou sua mãe negra, Hipólita Bolívar, estavam relegados e havia quem dissesse que, se não eram militares ou se não tinham méritos acadêmicos, não podiam estar no Panteão.
Então era um caso de discriminação contra os povos indígenas, o povo afro e também contra as mulheres. Isso muda quando as pessoas percebem que o Panteão Nacional é onde está Simón Bolívar. Chávez ampliou o Panteão ao construir um mausoléu, uma estrutura impressionante, onde está o libertador.
A partir daí, o Panteão se popularizou. O Panteão deve contar a nossa história, desde antes de se conformar o Estado-nação, quando aqui viviam as comunidades indígenas. A história da nossa luta pela independência. E nossa história independente. Ali deveriam estar os indígenas que lutaram até, praticamente, 1600 e os africanos, que chegaram escravizados e lutaram ao lado de Miguel em 1552, e, é claro, os pardos, as mulheres.
Vem sendo estudada a participação delas na independência, como o caso das negras Matea e Hipólita, ou Juana La Avanzadora, que estão no Panteão, da indígena Apacuana, por exemplo. Há pouco tempo, entrou Ana María Campos. O Panteão é muito respeitado na Venezuela. É muito admirado porque o povo entende que ali estão, realmente, os heróis e heroínas. É um símbolo do fim da discriminação ou de que o fim está próximo. Todos somos iguais e todos contribuímos na construção da pátria venezuelana.
No ano passado, a cidade de Caracas mudou seus símbolos oficiais, eliminando o escudo do leão, uma herança colonial, e adotando um símbolo que representa os indígenas, os negros e o libertador Simón Bolívar. No entanto, houve críticas de alguns setores da sociedade civil que diziam que essas mudanças queriam "apagar" a história. O que você pensa sobre isso?
Infelizmente, na Venezuela, a polarização política, às vezes, se expressa com críticas ao nacionalismo. Os governos de Hugo Chávez e Nicolás Maduro são nacionalistas, principalmente. São governos que vêm dando lugar à história insurgente, a verdadeira história.
Essa história estava oculta, não havia sido registrada e era ensinada parcialmente. Nos nossos livros, não apareciam os heróis e heroínas negras, os indígenas eram tratados como incivilizados a quem os espanhóis vieram trazer cultura. Foi ensinado assim não só na Venezuela, como em outros lugares.
Sempre uso o exemplo de países africanos como Moçambique, onde todos os símbolos dos invasores portugueses foram retirados do espaço público e levados a museus, respeitados. Permitiu-se devolver alguns aos portugueses, mas o resto está nos museus, exibido como parte da história.
Também foi criado um espaço para essas estátuas ou símbolos que foram derrubados, e as pessoas podem vê-los, fazem parte da história. Mas o que deve simbolizar a nação é precisamente a história insurgente. Quando derrubaram o Cristóvão Colombo, o próprio presidente reconheceu e pediu que levassem a um museu para não ser maltratado, porque é querido pelos espanhóis.
Mas a grande luta, o mais importante em tudo isso, é mostrar essa história, fazer os venezuelanos e venezuelanas verem que temos pais e mães indígenas e afro, que temos uma mistura de tudo isso, o próprio Simón Bolívar, os libertadores e libertadoras. É uma tarefa difícil, porque é preciso desmontar essa culturalização que todos os povos da Nossamérica viveram.
No Brasil, um movimento popular chamado "Revolução Periférica" ateou fogo em uma estátua que homenageava o bandeirante Manuel Borba Gato e os líderes do movimento acabaram presos. Poderíamos dizer que se tratou de um caso de criminalização da descolonização?
Sim, com certeza. Já que você trouxe exemplo, me lembrei do caso de George Floyd, que foi assassinado nos EUA. Isso gerou uma avalanche mundial, na Inglaterra, Colômbia, México e EUA de derrubada de estátuas e manifestações e também de perseguição contra esses manifestantes.
Aqui na Venezuela, a opinião pública, sobretudo da direita, condena fortemente pessoas que levantam a voz para dizer que é preciso descolonizar. Eu mesmo me tornei um alvo nas redes sociais por minha postura sobre a mudança dos nomes, a toponímia.
Me perguntaram por que me chamo Reinaldo, por que não mudo meu nome. No Zimbábue, um dos primeiros decretos de Robert Mugabe foi permitir às pessoas que se sentiam desconfortáveis com um nome de colonizador. Isso se espalhou por toda a África. Porque nossos nomes também são herança dessa mudança operada pela Conquista. Os nomes indígenas foram se perdendo.
Na Espanha, ao redor de 1900, se criou uma lei para renomear seus espaços e permitir apagar os nomes dos árabes que estavam ali havia 700 ou 800 anos. E há pouco tempo iniciou a mudança de nome de todos os lugares que faziam referência à ditadura de Franco.
Na Catalunha, retiraram os nomes ligados ao rei João Carlos I, que consideram indigno. É uma corrente internacional. Há alguns meses, a Índia disse que se chama República de Bharat, porque o nome da Índia alude à Conquista. É toda uma tendência mundial. E é preciso fazer com que as pessoas entendam que os povos têm direitos a refletir, a se reencontrar, a ser respeitado por isso. E, sobretudo, que nomear é descolonizar, renomear é descolonizar, renomear é contar a história de um povo.
Em outros países, essa onda é liderada por movimentos populares e sociais, mas na Venezuela há um papel importante do Estado nesse processo. Como funciona a relação entre o Estado e o povo no processo de descolonização? Essas mudanças são demandas populares ou são decisões estatais?
Através do Executivo e da Assembleia Nacional, o Estado vem criando instâncias, como a Comissão para a Descolonização e a Verdade Histórica, composta tanto por figuras da Assembleia Nacional, quanto do Executivo, das universidades, do povo. Eu faço parte da comissão e não sou funcionário público.
Lá tem gente dos movimentos negro e indígena, que vão fazendo propostas, estudos. Já entregaram dois estudos, um em outubro de 2021 e um em outubro de 2022. E, em fevereiro ou março de 2024, se bem me lembro, entregarão conclusões. Além disso, o Estado promoveu comissões como o Conselho Nacional das Comunidades Afro, composta pela sociedade civil e pelo poder público.
E os movimentos têm muita participação em congressos, como o Congresso das Reparações e o Congresso da Descolonização. Isso faz com que haja instâncias de participação e debate, e não simplesmente manifestações esporádicas. A todo momento se está discutindo, avaliando, fazendo propostas para a descolonização da memória histórica. Então, algo muito importante é levar essa discussão, esses ensinamentos às escolas, ao ensino fundamental II e médio, e à universidade para dar esse debate.
Aqui, na Venezuela, a partir de uma proposta nossa, foi feita uma pesquisa sobre os nomes das escolas. Porque algumas têm nome de invasores, e quando digo "invasor" me refiro a quem causou danos. Podem haver nomes de europeus que sejam nossos amigos, ou estadunidenses etc. Por exemplo, Campo Elias era espanhol, mas estava do nosso lado. Então, com essa proposta, foi-se alterando os nomes das escolas. Às vezes, elas nem tinham nome, era "Escola nº 1", "Escola nº 593". Decidiu-se que era hora de renomeá-las para que essas escolas contem a história e os e as estudantes delas saibam quem é a figura que dá nome à sua região, à sua escola, à sua comunidade, à sua rua.
Edição: Rodrigo Durão Coelho