Ultradireita

Argentina: passada a verborragia da campanha, Milei deve ceder a Macri e mercado financeiro

Economistas acham que novo governo não vai conseguir, nem tampouco precisar, implementar medidas econômicas radicais

Brasil de Fato | Botucatu (SP) |
Villarruel e Milei, no dia em que foram formalmente declarados vencedores pelo Congresso: falta maioria parlamentar para emplacar muitas propostas - Juan Mabromata/AFP - 29/11/2023

Javier Milei e Victoria Villarruel, personagens recém-chegados à política e que até pouco tempo viviam numa certa marginalidade ideológica por suas posições radicalizadas em matéria econômica e de memória histórica, foram eleitos presidente e vice da Argentina com a maior votação desde a redemocratização, em 1983.

Num país mergulhado em aguda crise socioeconômica, o radicalismo de comparar o peso a um “excremento”, de propor a adoção do dólar como moeda do dia a dia soou como um tango bem afinado para boa parte dos argentinos, habituada a conviver com inflação de 140% ao ano e um nível de pobreza que atinge 40% da população. E como um ruído desesperador para outra parte.

Concluída a primeira missão da dupla ultraliberal, que era derrotar os candidatos da chamada política tradicional e vencer a eleição, a melodia começou a mudar. Faltando oito dias para o novo governo assumir seus postos na Casa Rosada, um discurso mais suave em alguns aspectos e as indicações para o ministério, com destaque para Luis ‘Toto’ Caputo na Economia, dão sinais de que Milei deve fazer uma gestão mais convencional do que prometia.

As privatizações de empresas públicas continuam no radar, assim como o corte de gastos públicos e a redução do tamanho do Estado, simbolizada, num primeiro momento, pelo arranjo ministerial. Mas a dolarização e o fechamento do Banco Central, propostas que desagradam o ex-presidente Mauricio Macri (2015-2019), principal fiador da vitória de Milei, e boa parte da sociedade, da classe política e do mercado financeiro, não estão mais na ordem do dia, pelo menos não publicamente.

“O candidato desce do palanque e começa a se tornar presidente”, resume André Roncaglia, economista e professor da Unifesp, para quem o governo eleito deve usufruir uma lua-de-mel com o mercado no início do mandato e, dependendo de quanto durar e de que efeitos propiciar aos indicadores socioeconômicos, pode propiciar tempo suficiente para que as medidas mais radicais sejam empurradas “com a barriga” com o argumento de que não são mais necessárias.

“A dolarização poderia trazer um efeito benéfico no curto prazo, que é acabar com o contexto de inflação elevada”, afirma Bruno De Conti, professor do Instituto de Economia da Unicamp. “Mas ao longo do tempo, as consequências negativas seriam muito ruins, porque a Argentina perderia a soberania monetária, a possibilidade de fazer política cambial”.

O Brasil de Fato ouviu os dois especialistas sobre suas primeiras impressões e expectativas para a gestão econômica do novo governo argentino. Abaixo, suas considerações divididas por temas.


Medidas radicais como a dolarização

Roncaglia

Existe uma sinalização de moderação por parte do Milei. O candidato desce do palanque e começa a se tornar presidente. As indicações para a equipe dele sugerem uma forte influência do Macri, então tem tudo para ser uma reedição do governo Macri (2015-2019). Tende a ser um governo mais moderado do que o discurso, mas mais radical do que seria adequado para um ajuste gradual da economia argentina.

O governo vai avançar no sentido de diminuir o tamanho do Estado na economia, de unificar vários ministérios das áreas de educação, saúde e trabalho dentro do Ministério do Capital Humano. Mas a tendência é não ter nada muito drástico, a não ser a proposta de cortar os gastos públicos em 15% do PIB, que é um corte draconiano mesmo se dividido em quatro anos, um ajuste fiscal muito duro. Talvez ele tenha bastante dificuldade de implementar essa medida por causa dos interesses, que estão bastante arraigados na Argentina. E muita dificuldade de aplicar grande parte da agenda mais radical, principalmente o fechamento do Banco Central e a dolarização da economia.

De Conti

Já é meio consensual que ele não consegue fazer tudo. Há paralelos com o governo Bolsonaro, em que o Paulo Guedes vocalizava esse radicalismo liberal e não conseguiu fazer muitas coisas que tinha proposto. E ainda bem que o Milei não vai conseguir implementar toda a agenda. As duas frentes de resistência são o Congresso, onde não tem maioria, e a outra é a resistências nas ruas. O povo argentino, embora o tenha eleito, tem uma tradição de manifestação sindical e de ocupação dos espaços públicos para manifestações.

A dolarização poderia trazer um efeito benéfico no curto prazo, que é acabar com o contexto de inflação elevada, mas ao longo do tempo, as consequências negativas seriam muito ruins, porque a Argentina perderia a soberania monetária, a possibilidade de fazer política cambial, como por exemplo poder desvalorizar a moeda para estimular exportações. A política fiscal também fica comprometida porque seria uma moeda que o país não tem condições de emitir. Já vimos em países como o Equador e acho uma péssima ideia.


Reforma do Estado

Roncaglia

A reforma do Estado vai ser focada em corte de gastos e tentativa de reverter subsídios, o que é muito difícil de fazer; em privatizar parte da Previdência, algo que ele alega que vai fazer, mas vejo muitas resistências políticas, dado que não tem maioria no Congresso; e na privatização de estatais, a parte em que vai conseguir avançar mais porque muitas decisões são executivas, não dependem do Congresso.

Algum corte, alguma racionalização é bem-vinda, mas da maneira genérica como ele aponta, fica difícil saber qual vai ser a sequência. E a sequência de redução da atuação do Estado é quase tão importante quanto o tamanho dela, porque há setores estratégicos, que caso sejam ou reduzidos ou deslocados para o setor privado, precisam passar por uma adaptação. A eventual privatização da YPF — empresa petrolífera estatal — precisa ser coordenada dentro de um plano em que haja garantia de abastecimento interno. Num contexto de volatilidade dos preços no mercado internacional, o país precisa garantir sua segurança energética.


Privatização de estatais

Roncaglia

Ele fala sobre o anseio de privatizar, mas a Argentina é um país heterogêneo e ainda há muita incerteza. O governo Bolsonaro (2019-2023) começou nessa mesma toada, de privatizar geral, mas quando chega no dia a dia da economia, a gente vê as coisas diferentes. Um exemplo foi a privatização da Eletrobrás, feita com muitas ilegalidades e desequilíbrios. Depois tiveram que pensar a criação de uma estatal para dar conta das partes do setor elétrico que não foram privatizadas. É muito mais fácil falar que vai privatizar do que fazer. Nesse sentido, acho que é preciso esperar mais um pouco.

De Conti

Acho provável que consiga privatizar algumas coisas, mas vai ter resistência. Os trabalhadores das estatais e a população devem se mobilizar, o que pode servir de pressão também sobre o Congresso, para que não aprove o pacote completo.

Acho uma catástrofe a ideia de privatizar, então vejo com bons olhos que haja resistência. No mundo inteiro, as privatizações já mostraram os mil problemas associados. Quando os serviços públicos essenciais se tornam um negócio, dá problema. De cara porque os preços se elevam, porque a lógica passa a ser a do lucro. Mesmo que haja um controle por parte de agências, há uma pressão grande por parte do capital privado para que as tarifas sejam elevadas. Basta ver os pedágios no caso do Brasil. Outra coisa é precarização do serviço. Há modernizações de fachada, mas ao fim e ao cabo, as empresas seguram os investimentos. As crises hídricas em São Paulo são um bom exemplo. As empresas entram na bolsa de valores e, em vez de reinvestir (lucros e dividendos), elas distribuem, o que gera danos para a população por falta de investimento.
 

Obras públicas exclusivamente com dinheiro privado

Roncaglia

Vejo uma reedição do governo Macri, muito ligado aos interesses de empreiteiras. O Milei vai sujeitar esse amplo leque de investimentos ao setor privado e a toda sorte de corrupção e instabilidade, e vai tentar vender isso como aumento da eficiência. Sem fazer um investimento forte nas agências reguladoras e no controle de contas públicas, é muito difícil. Ele vem dando sinais fortes de austeridade, o que significa gastar pouco com funcionalismo público principalmente em monitoramento e controle. De nada adianta terceirizar se não tiver monitoramento adequado. E monitoramento adequado é incompatível com o cenário de corte de 15% do PIB.

De Conti

Em qualquer lugar do mundo, os investimentos são alavancados por dinheiro público. Se deixar só para a iniciativa privada, pode até funcionar em alguns setores, mas colocando tarifas exorbitantes, porque a lógica é do retorno do investimento. E alguns setores, como saneamento básico, em que é difícil aplicar tarifas elevadas, ficariam sem investimento.
 

Reação do mercado financeiro à vitória de Milei

Roncaglia

Foi uma resposta ambígua, porque da mesma forma que teve uma certa pressão sobre o câmbio, as ações argentinas na bolsa de NY valorizaram mais de 30%. Ainda é um cenário de incerteza, em que não se sabe o que o governo vai fazer, então essa volatilidade é esperada. Mas havendo moderação nas ações do presidente, o mercado deve oferecer uma lua-de-mel para dar tempo ao governo de implementar reformas, e talvez a Argentina sinta um período de bonança.

De Conti

A inflação deve dar uma acelerada até a posse e aí vamos ver o que ele vai fazer em relação à dolarização, que não é algo trivial porque passa pelo Congresso e exige que haja dólares para fazer a economia girar.

 

Expectativa para o início do mandato

Roncaglia

Tenho impressão de que, por ser um governo novo, com muita esperança por causa da ampla margem da vitória, é bem possível que num primeiro momento haja um efeito positivo, com atração de capitais, apreciação cambial, certa melhoria nos índices de inflação. Sempre que tem mudança profunda num caminho conservador, os mercados costumam gostar, e a agenda do Milei é interessante para os capitais estrangeiros, no sentido de abrir a economia, tirar controles, reduzir subsídios. Então o efeito pode ser tão positivo a ponto de o Milei levar com a barriga a ideia da dolarização, afirmando que a economia já está estabilizada e não é preciso tomar medidas drásticas. Agora a questão é saber se ele vai ter habilidade política para garantir estabilidade na relação com o Congresso e legitimidade perante a população, e se isso vai permitir a ele sustentar essa política feijão com arroz enquanto ele corta o tamanho do Estado.


 

Edição: Leandro Melito