A vereadora Giorgia Prates (Mandata Preta – PT), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal, aborda, em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato Paraná, o tema dos desafios da luta por moradia. Entre várias pautas, o olhar de Giorgia tem dado destaque para essa luta, que faz parte de sua própria história – da infância na periferia de São Paulo ao trabalho fotográfico em ocupações. Confira abaixo a entrevista completa:
Brasil de Fato Paraná - Como vereadora, você atua em várias pautas, mas parece ter uma ênfase na luta da moradia, que você já trazia isso da sua atividade repórter fotográfica. Qual é o seu envolvimento com a luta por moradia e por quê?
Giorgia Prates - A luta por moradia sempre foi da minha pauta tanto jornalística como de vida mesmo. Quando a gente não tem moradia não tem absolutamente nada, então é onde está a ausência completa dos direitos e da política pública. É um dos temas mais relevantes. Eu nunca estive nessa situação, mas já vi muita gente passando por ela, onde eu morava, na periferia de onde eu vim, em São Paulo. Então, essa temática para minha mãe (líder comunitária) também sempre foi muito cara. (…)
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Obviamente, temos que fazer disso uma pauta de vida, de luta e de mudança também. Com o fotojornalismo, nas ruas, isso sempre foi para mim uma nuance muito importante, então eu sempre acompanhei as questões das ocupações, da entrada no terreno à desocupação violenta. E aquelas áreas que conseguiram se constituir. Como elas conseguem se organizar, nesses momentos, nessa luta, e aí é só aprendizado. Todo mundo precisa conhecer e precisa entender o que significa mesmo estar nessa luta por moradia.
No bairro onde você morava, em São Paulo, na sua infância, sua família tinha um acesso à moradia e você percebia no contexto do bairro essa luta? Podia contar mais?
Exato. É ali onde eu morava, no Jardim São Carlos, na periferia de São Paulo, o espaço onde eu morava já era consolidado, mas o entorno foi se formando através de ocupações. Assim, já aparece um grupo, depois outro e vai se formando um bairro mesmo muito grande e tal. Então, assim, desde as primeiras casinhas que chegaram ali perto, também eram crianças que acabavam sendo matriculadas na mesma escola que a gente. Então, era uma questão que sempre esteve assim próxima. E aí muitas vezes também que acontecia da polícia aparecer, enfim, fazer a reintegração de posse da mesma forma violenta como é hoje ainda, infelizmente, e aí minha mãe acompanhava muito isso.
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Na comunidade, ela era uma grande líder comunitária, então ela sempre esteve envolta ali nas temáticas de toda população ali, tanto em relação à moradia, como também das pautas dos animais, enfim, das crianças, principalmente. Então, ela sempre esteve muito envolvida com tudo isso e a gente participava. E aí eu lembro de algumas cenas. Uma que ela sai de casa correndo, está tendo uma desocupação, até pegou o cabo de vassoura e foi marchando lá para junto das pessoas e a gente acompanhando ela ali, sabe? São cenas que voltam fortemente para mim hoje, e justificam muito o fato de eu acompanhar. Enfim, tem isso, uma parte da essência mesmo. De entender que são pessoas. Assim, como todo o mundo, precisam de um espaço de moradia, de segurança.
Você poderia falar da questão dos despejos forçados, que você já vivenciou algumas vezes. O que significa para você?
E isso é algo muito ruim, porque quando a gente fala da questão da reintegração de posse, ela nunca vem só com um documento, ela já vem acompanhada da imposição, da violência. Uma das piores que eu acompanhei foi a do Caiuá (CIC, 2020). As pessoas entraram no terreno e logo já foram evadidas, com violência extremamente brutal, teve até uso de arma de fogo ali. E foi algo muito assustador, o tanto que as pessoas foram violentadas e não respeitando o fato de haver mulheres, crianças, idosos ali, num terreno que praticamente não tinha muito para onde correr.
As lutas da campanha, estadual e nacional, Despejo Zero propiciaram uma mesa de negociação com órgãos públicos e com a Comissão de Conflitos Fundiários do Tribunal de Justiça. Mas a prefeitura tem sido uma ausência sentida. Como você vê isso?
Sim, existe um silêncio e uma ausência da prefeitura que é muito expressiva. E aí acaba culminando nesse lugar, de novo, do desrespeito. Porque quando a gente fala sobre a questão da ocupação, a gente está falando de um projeto de prefeitura que não existe, sobre projetos de moradia ineficazes, por mais que exista um setor que seria para cuidar disso, que é a Companhia de Habitação Popular de Curitiba (Cohab). Mas não há esse planejamento para a moradia na cidade, então você vê que essa deficiência já existe a partir dali. E aí você vê também que as pessoas estão lutando. Nós estamos cobrando a prefeitura pela participação, pelo envolvimento na discussão e não se tem esse retorno. É algo muito assustador, né? Porque se o próprio poder Judiciário está colocando: ‘Olha, para ter reintegração é preciso ter um planejamento’ de despacho e moradia para essas pessoas. E aí a prefeitura ainda se mantém no silêncio? Então, assim, é de se preocupar.
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Eu não acho que exista um planejamento mesmo, não acho que exista nenhum plano de ação, não acho que existe nada que configure em algo que vá somar nesse debate, que a gente tem feito sobre a questão da moradia, por parte da prefeitura e a gente já fez isso várias vezes. A gente pede, cobra, enfim eu aqui mesmo tenho feito isso muitas vezes, né? De pedir até assim as informações e acabam vindo são as mesmas. 'Ah, porque falta verba?' Falta isso, falta aquilo, mas para mim falta realmente a vontade mesmo de lidar com o tema, de entender que é um tema de extrema importância, principalmente de extrema urgência. E até tive, vou ser sincera, uma esperança de que em vista da eleição se aproximando, a gente fosse ter um olhar um pouco mais cuidadoso para isso. A gente tem o governo federal também que tem possibilitado algumas questões, tem trazido também esse debate, mas ainda não vejo, por parte da prefeitura, essa movimentação. Então, fica nesse lugar, mesmo que a gente tem que cada vez mais se fortalecer para fazer essa cobrança, insistir que isso aconteça.
O papel de vereadora te coloca num lugar importante para a luta por moradia, na relação com os movimentos populares? No episódio da Tiradentes II, você teve acesso a informações e pressão sobre o aterro da Essencis.
Eu acho que ajuda para principalmente introduzir mais o debate. Antes, nós tínhamos muito esse lugar, assim, de ser uma pauta política. Quando a gente fala de moradia ou questão de negros e negras, são pautas políticas que, no dia a dia mesmo, a gente não sentia nenhuma diferença. É óbvio que a gente está numa Câmara que ela é diferenciada por si só. Ela tem a maior parte de vereadores que não são da esquerda, que não trazem esse debate de moradia com a firmeza que a gente tem feito. E existe já a dificuldade natural de se debater isso aqui de maneira a preservar e falar dos direitos humanos.
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Quando você cita a Tiradentes II, já na iminência de ocorrer a reintegração de posse, aqui consegui, por meio da Comissão de Direitos Humanos, dialogar com outros vereadores que também precisam fazer parte desse debate, trabalhar essa temática na cidade. E levá-los para conhecer a Essencis e entender a pauta, o que foi importante. Uma possibilidade do fato de eu estar aqui é que consegui trazer as pessoas da comunidade para dentro da Câmara, para falar sobre essas temáticas, sobre as suas problemáticas e, principalmente, para elas mesmas oferecerem a solução. Isso tenho feito com muita frequência e, por outro lado, também já muda assim um pouco essa visão de que ‘não havia como’. Porque o que a gente escuta sempre é ‘não tem possibilidade’, ‘é difícil’, mas não é não é bem assim. Eu acho que é isso, assim, se a gente tem vontade de fazer, a gente faz, tem vontade de buscar.
Você participou também das mesas de negociação, convocadas pela Comissão de Conflitos Fundiários do Paraná. Qual sua opinião, limites e possibilidades, sobre esses espaços de mediação?
A gente falou logo de início dessa ausência da prefeitura nos debates. Por outro lado, muitos outros atores têm entrado no debate e acho que isso é um grande ganho. O que você citou agora, de juntar, de querer cobrar mesmo muito mais, mas também de chegar no entendimento. É, por exemplo, quando a gente fala que, na decisão do judiciário, veio essa informação de que há necessidade de ter um planejamento para ter essa reintegração de posse, isso já é uma mudança muito importante. Porque o papel do município é oferecer esse trabalho. Quando tem envolvido a empresa e o particular, geralmente, então o município fala ‘não é comigo’. E ponto. Só que o projeto de moradia ele tem que ser do município, da prefeitura. E aí, quando outros órgãos entram para fazer esse debate, eu acho que já tem toda uma mudança de panorama, de uma situação.
Por mais que esteja acontecendo ainda a passos lentos e ainda com muito debate, e até muita luta, por parte desses órgãos e desse coletivo que está se formando, que não é um coletivo só, temos juntado todos os órgãos competentes também. As pessoas da própria comunidade para fazer todos esses debates. Então, quando a gente se junta para fazer esse movimento, eu acho que aí já tem um movimento de esperança para um futuro melhor. Assim, em algum momento, a prefeitura não vai mais poder continuar em silêncio. Então eu acho que esse aspecto, mesmo acontecendo aqui em Curitiba, quando a gente tiver um precedente de mudança de pelo menos um espaço, a gente vai conseguir modificar todos os outros. Eu acho que tem sido muito positivo e também em âmbito nacional.
Estamos no mês da Consciência Negra (entrevista foi feita no final de novembro). E aqui estamos tratando de um debate no qual se a gente pegar as comunidades hoje, as principais lideranças são mulheres negras. De uma base social das comunidades de mães migrantes, mães trabalhadoras, mulheres negras. Quais os desafios da esquerda nesse sentido, uma vez que muitas vezes, parece que há uma certa separação. Aqui estão os debates da universidade, aqui estão os debates da esquerda, aqui estão essas lideranças e mulheres das comunidades. Quais os desafios nesse sentido?
Enquanto esquerda, temos muito o que caminhar. Mas, me entendendo como corpo negro, lésbico, periférico, eu acho que as pautas elas às vezes se misturam quando não tem que se misturar. E, às vezes, elas são postas de lado, de uma vez só também, quando não deveria ser assim. Então, por exemplo, quando a gente vai falar sobre a questão do racismo, já aproveitando esse mês aqui, a gente levanta a pauta do racismo, logo vem a pauta da LGBTfobia, que já se mistura com várias outras pautas. Óbvio, a gente está falando sobre questões de vulnerabilidade, questões de preconceitos. Mas nem tudo tem que estar misturado, sabe? Eu acho que, enquanto esquerda, a gente tem que entender quando a gente fala do racismo, nós estamos falando do racismo, mesmo que existam mulheres negras, lésbicas, enfim, todas nesse lugar da negritude, a pauta do racismo tem que ser preservada, porque a gente consegue trabalhar essa pauta.
A mesma coisa a questão LGBTQIA+, a mesma questão das periferias, embora a gente saiba que o escopo está dado, mas a gente tem que saber trabalhar as questões, porque senão a gente sempre vai cair em discursos vazios. Sempre querer misturar uma coisa na outra e não entender, por exemplo, que o racismo é crime, então a gente precisa trabalhar, o que significa, sabe, com mais seriedade, com mais tranquilidade até pra gente poder ir sanando os pontos. E quando a gente faz essa junção de tudo, a gente acaba deixando muita coisa para trás e até mesmo usando disso para angariar votos nas comunidades, mas não para lidar com a questão em si. E aí também coloco as mães, que estão nas comunidades, porque às vezes fala-se ‘periferia’ e ‘mãe solo’ e acaba que banaliza de tanto que se fala dessa forma, entende? De uma maneira conjunta, mas cada uma tem a sua especificidade. E a gente precisaria olhar com muito mais cuidado que, mesmo sendo uma mulher negra, mãe solo, enfim, tem todo um rol de coisas que vai acontecer com essa mulher, com essa mãe, que a gente precisa olhar com mais cuidado. E a gente fez várias reportagens nesse sentido, né, Pedro? De trazer ali as lutas da periferia, as mães solo, principalmente durante a pandemia, de como esse lugar não é um objeto, mas é um corpo, é uma existência. E aí eu acho que a gente precisaria muito ainda caminhar para a gente poder empoderar essas mulheres no sentido de saber o lugar que ocupa. De saber a posição que está, saber principalmente os direitos que têm. Para a gente caminhar neste sentido.
Entendendo que, eu mesma, se não estivesse olhando aqui como são as coisas de dentro, poderia pensar, de fora a gente sempre acha: ‘Estão olhando por nós”. E nem tanto assim. Porque tem coisas que poderiam estar sendo feitas, e não estão sendo feitas. Temos que olhar com mais cuidado para gente poder lidar com as pautas direito, mas eu acho que ainda falta a gente caminhar mais no sentido mesmo dos direitos humanos, das pessoas que, estão aí, abandonadas. E a gente achando que estavam cuidando da gente.
Seu mandato aposta num acompanhamento mais cotidiano das comunidades. É possível? Qual o desafio? Uma vez que hoje há muito oportunismo nas periferias, mexendo com os sentimentos do povo, gerando expectativas, o que para a esquerda é sempre perigoso. Quais os desafios de um trabalho de base permanente.
Exatamente. Acho que quem está dentro nunca vai querer mudar esse jogo, sabe? Mas quem está fora precisa. Porque assim é quando nossas vidas são palco da vida alheia. A gente corre sérios riscos na vida, na rua, na periferia, nas escolas, na universidade de corre muito, muitos riscos. E assim, e esse lugar de insegurança já não nos cabe mais. Hoje estou aqui, entendendo esse espaço (Câmara Municipal), mas as pessoas chamam já sabendo que a Giorgia vai.
Estou entendendo como funciona e me perguntando como que a gente foi tão relegado todo esse tempo. E é esse lugar mesmo. Sabe que muitas pessoas vão falar sobre a negritude, sobre a periferia, sobre a morte dos jovens, das periferias, enfim, mas né? O trabalho que faz com que isso tudo cesse, que é o que a gente realmente precisa, não tem sido feito, mas dá pra fazer, e acho que essa é a dinâmica, sabe? Quando você perguntou desse outro olhar ali, né? O que é que muda? Muda que na rua já tinha dúvidas. E aqui tenho certeza: não, não é não mesmo, não estão fazendo. Mas eu acho que esse lugar que você tocou é bem importante, da gente ficar mais perto. E não permitir mais que nossas vidas sejam só palcos de debate, mas sim espaços de transformações. De mudanças reais mesmo. Isso vai depender muito também de quem está na periferia para ter esse olhar com mais cuidado aí pra quem pra quem chega e quem vai.
Alguma consideração e questão que queira complementar?
Sim. Eu acho sempre que é importante de ressaltar é a questão das pessoas que estão nas ocupações, que fazem a luta por por moradia o tempo todo. São essas pessoas que fazem isso acontecer. Eu aqui me sinto só uma parte de uma ponte possível, sabe? Enfim, uma engrenagem. Mas sempre quero muito dizer que as pessoas que fazem a luta da moradia, quem está no dia a dia que ocupa o terreno e faz a transformação dele acontecer. Quem se organiza nas comunidades, então assim eu prezo sempre pelo respeito e sempre pela minha admiração.
Então, toda vez que o tema é moradia, eu tenho que dizer que admiro e vou estar sempre junto, porque é esse lugar, de sobrevivência. Mais que isso: um lugar de dignidade, é um lugar de de sororidade, principalmente. E nada paga, não tem nada que que possa tirar, mesmo sob total violência, esse espaço sempre vai existir e ele é garantido por quem faz a luta por quem está no dia a dia das ocupações, na luta por moradia. Então sempre gosto muito de agradecer a existência dessas pessoas e a luta delas também.
Fonte: BdF Paraná
Edição: Lucas Botelho