Lideranças políticas globais presentes na COP28 correm contra o tempo para chegar a um acordo de diminuição das emissões de CO2 e a eliminação, ainda que gradual, da dependência de combustíveis fósseis. Na lista de soluções para cumprir esses objetivos, está o uso das chamadas energias renováveis, como a solar e a eólica.
No entanto, os debates na conferência global têm deixado de lado um aspecto importante dessa transição, o impacto desses empreendimentos no cotidiano de centenas de comunidades. No Brasil, essas consequências já são realidade, segundo a especialista em Ciência Ambientais, Soraya Tupinambá, que atua no Instituto Terramar e na Rede Brasileira de Justiça Ambiental.
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“A primeira coisa que é preciso desmistificar é que a questão da transição energética tem sido tratada como se a gente olhasse a realidade por uma luneta e visse, ao final dessa luneta, somente a emissão de CO2. Mas, fora do campo da luneta, nós temos pobreza energética, nós temos a questão da insegurança hídrica, escassez de água, fome no mundo, uma série de outros temas que estão fora do campo visual dessa chamada transição.”
Ela conversou com a equipe do Brasil de Fato que está em Dubai acompanhando a COP28. Na entrevista, a especialista relaciona as consequências de uma transição que, nas palavras dela, está mais para transação e segue a lógica do lucro, acima da real busca por sustentabilidade.
“Não somos contra as renováveis, mas assim não. Desconsiderando as populações, sem olhar para a pobreza energética, sem considerar as populações como necessárias beneficiárias da expansão de energia no nosso país. Nós estamos vendo a expansão das eólicas, mas não vimos as contas reduzirem um centavo. Muito pelo contrário. As contas encarecem porque os subsídios que são dados a essas empresas são pagos pelos usuários do sistema energético. Nós temos uma das contas mais caras do mundo e isso não é justiça.”
Confira a entrevista na íntegra a seguir, ou ouça no tocador de áudio abaixo do título desta matéria:
Brasil de Fato: As soluções apresentadas como sustentáveis para substituir o uso de combustível fóssil na geração de energia são realmente sustentáveis? Como tem sido a aplicação na prática?
Soraya Tupinambá: Temos que observar o momento que vivemos. Temos escutado na COP28, sobretudo na fala da Agência Internacional de Energia, a Irena, o que é preciso para atender as metas que estão estabelecidas, é necessário triplicar a geração de energia renovável e é preciso abandonar as fósseis. Esse é um baita desafio e coloca a questão em um outro patamar.
A primeira coisa que é preciso desmistificar é que a questão da transição energética tem sido tratada como se a gente olhasse a realidade por uma luneta e visse ao final dessa luneta somente a emissão de CO2. Mas, fora do campo da luneta, nós temos pobreza energética, nós temos a questão da insegurança hídrica, escassez de água, fome no mundo, uma série de outros temas que estão fora do campo visual dessa chamada transição.
Ou seja, há uma absolutização da emissão de CO2 para o estabelecimento do que chamam de energia limpa. Nesse sentido, ela não tem sido limpa e posso explicar o porquê. Ela tem impactado territórios. Nós temos mais de mil usinas e eu vou chamar usina, porque acho que é importante fugirmos de um glossário que procura enverdecer aquilo que é uma indústria e que agora entra em uma escala de tamanhos, dimensões e impactos multiplicados.
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É preciso tratar como ela é, uma indústria que tem forte presença de multinacionais e que chega ao Brasil marcada pela dependência tecnológica. Por exemplo, a indústria eólica coloca que nacionalizou 80% das eólicas. Mas os componentes nacionalizados são os que mais demandam matéria-prima, como aço e madeira. Onde tem a inteligência e o valor agregado, isso continua na mão dessas empresas.
Os impactos são enormes, São mais de 10 mil aerogeradores nessas mais de mil usinas. É importante também superarmos uma leitura que vê impactos locais, como se esses impactos se resumissem às comunidades e não é bem assim. O que tem sido impactado são ecossistemas críticos fundamentais.
Por exemplo, campos de dunas no Nordeste brasileiro. Abaixo deles existem grandes reservatórios de água doce e eles são estratégicos para uma região que está praticamente, na sua inteireza, localizada no semiárido e que, pelas próprias mudanças climáticas, vão lidar com a escassez de água. Esses reservatórios acabam sendo comprometidos porque os campos de duna são terraplanados, são eliminados, são compactados para a construção de estradas e para a construção das usinas.
Nós temos impacto sobre áreas produtivas. As mulheres da Borborema (PB) têm feito passeatas anuais no 8 de março, denunciando a destruição dos seus territórios de agricultura. Essa é uma região produtora de alimentos e é isso que não estamos olhando. Essa produção de alimentos vai repercutir sobre os centros urbanos no Ceará.
Agora, já existe a previsão de 43 usinas para a região da Serra da Ibiapaba. Essas usinas estão sempre se localizando na costa ou em zonas de altitude, como as serras, para poder pegar os melhores ventos e proporcionar maiores taxas de lucro, maior capacidade de geração de energia elétrica. Ou seja, é um negócio.
As populações têm sido ouvidas neste processo?
Não. As populações não têm sido ouvidas nos seus territórios quando se dá a instalação. Nós temos um mecanismo que foi estabelecido pela Organização Internacional do Trabalho, a convenção 169, que fala do direito dos povos tribais e comunidades tradicionais. É o campesinato que tem sido atingido. São comunidades de fundo e fecho de pasto na Bahia, os povos do mar de todo o Nordeste brasileiro.
Há destruição de campos de dunas, problemas de saúde, porque as eólicas produzem um som que interage com os ventos e torna insuportável o sono. Pessoas deixam de dormir, se tornam dependentes de remédios, adquirem problemas de saúde mental, depressão, entre outras questões.
Ainda tem contratos de arrendamento, que são profundamente injustos. Eles têm cláusulas abusivas, como a renovação automática. Passado o tempo de vida útil dessas estruturas, que é mais ou menos 25 anos, a renovação é automática. Caso a família não aceite, ela terá que pagar multas de milhões. Não tendo como pagar, é quase uma transferência compulsória do controle das terras para as empresas.
Isso está acontecendo em larga escala no Nordeste brasileiro. É completamente injusto. Do valor é deduzida a regularização da terra, porque muitos são posseiros, não são donos. Então, a empresa paga o processo de regularização e deduz das parcelas.
Existem questões também em relação a instalação dessas usinas em alto mar?
Exatamente. Estamos ingressando em uma nova fase. As eólicas tinham de 80 a 85 metros. Agora, mesmo em terra, vão para mais de 100 metros. Isso implica em um impacto territorial, impacto no som, efeito de sombra. Há um efeito que se assemelha a uma boate, com luz e sombra a cada quatro segundos. Isso para os animais é estressante.
Tivemos a oportunidade de ir ao Chile e ver que a produção de leite caiu por conta desse efeito estroboscópico. Vimos também coisas que ainda não vemos no Brasil, mas que precisamos ter atenção. As abelhas perdem a orientação, não conseguem voltar para suas colmeias, as abelhas rainha morreram de fome, esperando as operárias voltarem. Elas não só não voltaram, como foram encontradas longe das colmeias. São animais que têm a ver com a produção de alimentos.
Isso também tem um efeito sobre a saúde das pessoas. Para autistas, esse efeito de sombra é péssimo e chega a provocar depressão nas famílias. Vimos muito isso no Chile, onde as Torres estão muito próximas da casa e isso também acontece no agreste pernambucano. Na Borborema (PB) e na Ibiapaba (CE) há impacto sobre a produção de alimentos, também no Ceará há esse efeito de sombra e luz e esses efeitos sobre a saúde da população no mar.
Nessa nova fase, como eu disse no início da entrevista, há uma previsão de triplicar a produção de energia renovável. Isso implica em grandes estruturas. Por isso vão para o mar, porque a produção é grandiosa, não tem nenhum tipo de resistência, a velocidade dos ventos é maior e são megaestruturas. Para termos ideia, as torres têm quase 400 metros e não são transportáveis por via rodoviária, somente pela mesma infraestrutura de gás e petróleo das plataformas. O que vai estar em jogo é muita coisa.
Isso implica em um consumo muito grande das áreas costeiras. Uma só empresa demandou 300 hectares no Porto do Pecém para albergar a suas torres. Hoje, no Brasil, há pedidos de 90 parques de usinas mega eólicas no mar. A maioria delas pertencem a petroleiras, as mesmas empresas que nos trouxeram até a tragédia das emergências climáticas que nós vivemos hoje e que estão aí, nos corpos dos brasileiros, nos corpos amazônicos, que vivem a seca, nos corpos de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, que vivem as enchentes, os tufões, os ciclones.
Essas mesmas empresas, no afã de continuar obtendo os seus lucros, ficam com um olho no gato e o outro no peixe. Pretendem expandir as fósseis, como estamos vendo aqui na COP a OPEP dizendo aos seus associados para que não falem e não tratem da eliminação dos combustíveis fósseis, ou seja, da sua eliminação gradual ou imediata. Nessa perspectiva do lucro, as grandes petroleiras começam a investir (em renováveis).
É mais uma perspectiva corporativa do que uma preocupação com o destino da humanidade e enfrentamento às mudanças climáticas. Trata-se, muito mais, de uma transição corporativa, portanto uma transação energética, do que uma transição com vistas a garantir a sustentabilidade planetária da vida humana e dos outros seres que nos cercam e que compartilham a vida nesse planeta.
Como estão as discussões sobre os diálogos com as comunidades e os impactos na biodiversidade dessa nova geração de energia aqui na COP?
O meio corporativo e empresarial vive uma transição discursiva. Primeiro que o Brasil sempre foi renovável. Nossa matriz elétrica, desde o seu surgimento, é renovável, a partir das hidrelétricas. O que nós temos hoje é uma substituição de hidrelétricas, que vivem cada vez mais a escassez e as crises hídricas, por eólicas, numa perspectiva de segurança energética, não de transição energética.
Nós não estamos abandonando as fósseis - porque isso sim seria uma transição energética, aumentar as renováveis não convencionais, como eólica e solar, ao tempo em que reduzimos as fósseis - não é isso. Vimos que aqui na COP o presidente Lula tanto ingressou na OPEP Plus, como veio defender a expansão das renováveis. Então, essa tem sido a tônica do governo, uma estratégia contraditória.
Nós não somos contra as renováveis, mas assim não. Desconsiderando as populações, sem olhar para a pobreza energética, sem considerar as populações como necessárias beneficiárias da expansão de energia no nosso país. Nós estamos vendo a expansão das eólicas, mas não vimos as contas reduzirem um centavo. Muito pelo contrário. As contas encarecem porque os subsídios que são dados a essas empresas são pagos pelos usuários do sistema energético. Nós temos uma das contas mais caras do mundo e isso não é justiça.
É preciso falar também do racismo ambiental. Porque essas populações que estão sendo impactadas não são populações brancas dos centros urbanos, das classes privilegiadas. São populações tradicionais de pescadores, povos do mar, ribeirinhos, agricultores, sertanejos. Nada mais é do que a expressão do racismo estrutural, que destina às comunidades os impactos desse modelo de desenvolvimento que privilegia o lucro com um discurso esverdeado.
Além disso, no mar teremos as primeiras eólicas nos mares tropicais. Qual é a gravidade disso? Nós não temos noção dos impactos que vão se manifestar. Nossos mares são diferentes dos mares temperados da Europa, onde eles se instalaram primeiro. Lá não tem pesca artesanal, não tem frota artesanal. Pela legislação Internacional, cada aerogerador tem uma área de exclusão, ou seja, não pode passar nenhuma embarcação a 500 metros. Está prevista a ocupação do mar do Ceará e do Rio Grande do Norte. Como os pescadores vão passar?
Outra coisa, para reduzir custos, essas eólicas estão muito próximas da costa, totalmente fora do padrão internacional, que é cerca de 20 quilômetros. As que estão localizadas no Brasil estão a 3 quilômetros, praticamente na costa. O impacto é muito maior. Impacta a paisagem, o turismo, que tem tudo a ver com paisagens.
Como é que você vai para Jericoacoara para ver um paliteiro no mar? Ou então para a Canoa Quebrada, ou todas as praias paradisíacas do Ceará, de Pernambuco, do Rio Grande do Norte para ver esse efeito paliteiro no mar que é desenhado pelas usinas sobrepostas umas sobre as outras numa quantidade absurda?
Estamos em uma época em que todos os seres têm que ser considerados nessa teia da vida que a gente tem que afirmar. Eólica sim, mas assim não. Não com essa injustiça, não com essa desigualdade. Eu deixo esse alerta e esse convite, para olharmos mais para o mar e para os povos do mar, para os povos tradicionais. Temos que desmistificar essa grande mentira que é esse discurso falso verde, das falsas soluções apresentadas pela transação energética de uma transição corporativa injusta e racista.
A jornalista viajou a convite da Fundação Rosa Luxemburgo
Edição: José Eduardo Bernardes