Tenho visto alguns analistas de viés progressista argumentando nas redes sociais contra o apoio da esquerda brasileira às intenções da Venezuela de recuperar o Essequibo, território ainda hoje em disputa com a Guiana.
Seu principal argumento é o de que uma hipotética ação militar de Caracas vai de encontro aos interesses geopolíticos do Brasil. Mas o governo de Nicolás Maduro tem evitado desde sempre uma solução bélica, preferindo a esfera diplomática para resolver o problema.
A Venezuela quer que o problema seja resolvido pelos venezuelanos e guianeses, com o respaldo das demais nações vizinhas, lideradas pelo Brasil. A Guiana, pelo contrário, quer uma intervenção externa, imperialista. E essa intervenção não seria a serviço de seus interesses, mas sim dos interesses dos interventores. Afinal de contas, o Essequibo possui colossais reservas petrolíferas – e onde há petróleo, há dedo do Tio Sam.
Com efeito, não se trata de um conflito entre dois países soberanos. Não é uma disputa entre Venezuela e Guiana. Até a década de 1960, o conflito era entre a Venezuela e o Império Britânico e agora entre Venezuela e o Império dos EUA. Não podem haver provas mais cabais dessa afirmação que a permissão para petroleiras lideradas pela ExxonMobil explorarem petróleo no território disputado (traindo as negociações com a Venezuela) e a autorização do presidente Irfaan Ali para o Comando Sul do Exército dos EUA realizar exercícios militares na região. A situação é muito parecida com o que ocorre na Ucrânia: um conflito entre Rússia e OTAN com a Ucrânia como bucha de canhão, e não uma guerra entre Rússia e Ucrânia.
O governo dos Estados Unidos apoia a Guiana contra a Venezuela. A direita brasileira, capacho dos EUA, também está contra a Venezuela. Os grandes meios de comunicação brasileiros, porta-vozes de Washington, voltaram a massacrar Nicolás Maduro e alardeiam uma invasão venezuelana, disseminando propaganda contra o “ditador”, nos moldes do que faziam as agências de relações públicas pagas pela United Fruit contra Jacobo Arbenz na Guatemala de 1954. Aqueles que culpam Maduro estão comprando o discurso norte-americano de que a Venezuela quer invadir a Guiana e esse é o pretexto para os EUA interferirem, como sempre fazem em toda a parte.
Ora, se o conflito é entre Venezuela – um país oprimido – e o imperialismo, a esquerda está absolutamente correta em apoiar Caracas. É um dever ideológico. Porém, isso não é tudo. Mesmo do ponto de vista pragmático e exclusivo do interesse nacional, é bom para o Brasil que a Venezuela tenha a postura demonstrada por Maduro e pelo povo venezuelano de recuperar o Essequibo.
Ao contrário de representar uma ameaça, a investida venezuelana serve aos interesses do Brasil. A Venezuela não tem a menor intenção, nem mesmo potencial, de rivalizar com o Brasil pela hegemonia regional. A hegemonia brasileira, que, segundo os nacionalistas chauvinistas, estaria em perigo, só pode ser ameaçada por obra de uma potência externa, uma potência imperialista. A Venezuela está combatendo precisamente essa ameaça externa.
Assim como em diversos episódios da história da América Latina, é um monopólio imperialista quem está desestabilizando a região. A ExxonMobil busca se apoderar do petróleo do Essequibo. Se isso se concretizar, como também costuma ocorrer, para proteger essa propriedade preciosíssima, o Estado norte-americano (o mais subserviente aos monopólios) poderia muito bem instalar bases militares no Essequibo ou na Guiana – bem na fronteira com o Brasil. Aí sim teríamos uma verdadeira desestabilização no chamado equilíbrio regional: o Brasil, assim como nossa subregião tão devastado por golpes de Estado e saque econômico vindos do Norte, veria o exército mais poderoso do mundo em perfeitas condições bélicas de invasão de seu território.
Portanto, a posição soberana da Venezuela é integralmente defensiva, não ofensiva. Ela, inclusive, abre um precedente positivo para o próprio Brasil defender a sua soberania sobre o pré-sal – outro alvo das petroleiras americanas. Logo, defender a soberania da Venezuela sobre o Essequibo – isto é, a soberania da Venezuela – é defender a soberania nacional brasileira e a soberania da América do Sul, da América Latina e do Caribe contra os interesses imperialistas e hegemônicos dos Estados Unidos.
A Venezuela defender sua soberania sobre o Essequibo é o mesmo que a Argentina defender a sua soberania sobre as Malvinas. Seguindo a lógica dos nossos nacionalistas chauvinistas de esquerda, de suposta preservação da hegemonia brasileira, foi extremamente positiva a derrota militar de Buenos Aires para o imperialismo britânico em 1982 – de fato, apoiada pela ditadura militar entreguista brasileira e pelos EUA. Caso contrário, uma vitória militar argentina desequilibraria a balança de poder desfavoravelmente para o Brasil.
Trata-se de uma postura que alimenta os reacionários sentimentos chauvinistas, expressos majoritariamente pela direita e a extrema-direita dos nossos países, agentes das potências imperialistas. Uma postura aplaudida por essas mesmas potências, pois divide os nossos povos e facilita a penetração e dominação das potências estrangeiras no nosso continente. A Casa Branca e o Pentágono devem estar muito animados com a tentativa de indispor o presidente Lula com o governo amigo de Maduro.
Esse pseudonacionalismo barato, inclusive o travestido de esquerda, é irmão caçula do chauvinismo e tende a se transformar em chauvinismo puro. E, como todo chauvinismo em um país oprimido, resulta no reacionarismo e na aliança subserviente ao imperialismo. De fato, objetivamente, aqueles que se pretendem nacionalistas e criticam a Venezuela por reivindicar um território pretendido pelo imperialismo se alinham ao imperialismo americano e a seus agentes no Brasil. Esse nacionalismo de araque nada mais é do que entreguismo, mesmo que seus adeptos não percebam.
* Eduardo Vasco, jornalista especializado em política internacional
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rodrigo Durão Coelho