Na primeira parte desta série, analisamos as relações entre os libertários locais e seus parentes norte-americanos, assim como a inspiração austríaca que compartilham. Mas nem tudo é exótico na emergência desse fenômeno político, como prova o fato de que o enxerto vingou com relativa facilidade.
Em geral, a radicalidade de um projeto político pode ser medida pela extensão da reinterpretação histórica que ele propõe. Nesse sentido, os libertários argentinos não hesitam em ir diretamente às fontes. Veneram Juan Bautista Alberdi, pai do nacional-liberalismo e idealizador de todo o sistema jurídico, político e territorial argentino, decodificado por eles como uma espécie de Thomas Jefferson dos pampas. Assim, reelaboram, com viés radicalista, um discurso decadentista que sempre agradou as elites argentinas.
Para eles, o declínio da nação não teria começado com o kirchnerismo (leitmotiv de quase todo o espectro liberal-conservador contemporâneo), nem mesmo com os "70 anos de populismo" (um slogan absolutamente contrafactual que repetem incessantemente, marcando uma ruptura no advento do primeiro peronismo). A decadência teria começado já no final do século 19. Ou seja, com os primeiros sinais de crise da ordem liberal, oligárquica e exportadora consolidada por volta de 1880, que transformou o país em uma nação desigual e excludente, em uma espécie de protetorado britânico e em uma rica potência agroexportadora em poucos anos.
Evidentemente a "ordem e progresso" foi possível devido à derrota de todos os inimigos das classes proprietárias locais: a corrente federal nas guerras civis, os gauchos das montoneras provinciais, os povos indígenas do Pampa e da Patagônia e o projeto econômico de soberania do Paraguai de Gaspar Rodríguez de Francia e Francisco Solano López.
O problema desses liberais criollos era, de certa forma, o dos neoconservadores contemporâneos de Rothbard, o idealizador estadunidense da "guinada populista" dos libertários: a guerra contra inimigos internos e externos requer a coerção do Estado. Nem a política de cercamento de terras livres, nem a proletarização forçada do gaucho, nem a "Conquista do Deserto" que dizimou populações indígenas, nem a infame guerra contra o Paraguai foram obra de empresários privados ou do livre mercado. Quando a sutil pedagogia da mão invisível deixou de ser suficiente, surgiu a garra armada do Estado. Daí a inédita articulação entre a liberdade (da "comunidade dos livres") e a violência estatal (e até genocida) aqui praticada com tanta ousadia: Remington para os subalternos e liberdade para os proprietários.
De fato, essa é a origem non sancto: da família (patriarcal) – a primeira apropriação de pessoas como espólio de guerra foi a das crianças e mulheres indígenas –; da propriedade (privada) – cuja origem violenta os liberais "antiautoritários" nunca conseguirão explicar –; e do Estado (patrimonialista e oligárquico). Um Estado que também é considerado objeto de espoliação, como mostra o longo histórico de privatizações de empresas públicas a preços irrisórios ou as recorrentes estatizações da dívida privada, como a que o novo presidente acaba de anunciar.
Talvez por isso os ultraliberais argentinos tenham decidido voltar às origens e prefiram ungir um intelectual como inspiração, ignorando ligeiramente políticos mais brutais e realistas, como Bartolomé Mitre, Domingo Faustino Sarmiento, Julio Argentin ou Roca. Milei chegou ao ponto de afirmar que "há cem anos a Argentina começou a flertar com o socialismo". Na verdade, o número de ministérios que restam após essa primeira rodada de ajuste é, significativamente, o mesmo número que o Estado tinha há um século.
Apesar de sua posterior canonização tendenciosa, em vida, Alberdi sustentou amargas polêmicas contra os outros paladinos do liberalismo argentino. Poderíamos dizer que ele apontou seus dardos precisamente para uma concepção não demasiado liberal do liberalismo, e que não hesitou em fortalecer e centralizar o Estado e em negar o direito natural e as liberdades civis quando considerou oportuno. Vale mencionar aqui, apenas de passagem, a flagrante contradição da evocação, a partir um liberalismo extremista e radicalmente antiestatista, dos próprios construtores do Estado argentino, daqueles nomes que se encarregaram de exterminar, exatamente, todas as formas de vida e organização social não estatais que coexistiram com a sociedade branco-criolla nos 70 anos após as revoluções de independência.
E neste ponto devemos destacar uma peculiaridade. Desde então, a Argentina, ao contrário de outros países da região, careceu completamente de uma tradição liberal-popular ou de uma corrente liberal de massas, como a que se expressou na Colômbia, com Jorge Eliécer Gaitán, ou no Equador, com Eloy Alfaro. No nosso país, "liberal" e "oligárquico" foram termos praticamente intercambiáveis ao longo do século 20. É por isso que, nesse período, as classes dominantes recorreram tão assiduamente a golpes de Estado (seis desde o estabelecimento do voto secreto e obrigatório em 1912) e à tomada do poder por meios militares; mas também, à colonização de partidos nacionais de base popular (a União Cívica Radical desde a década de 1940 e o Partido Justicialista na abertura neoliberal dos anos 1990, por exemplo).
De fato, o último partido liberal, em sentido estrito (em sentido amplo, todos os partidos do establishment estariam incluídos), com certo peso e influência foi a chamada União do Centro Democrático (UCEDE), fundada em 1982 – em plena ditadura – pelo economista, empresário e militar Álvaro Alsogaray, formado tanto no pensamento da Escola de Chicago como na corrente dos economistas austríacos.
A UCEDE teve um crescimento efêmero, sobretudo entre os estudantes, e alcançou o seu melhor desempenho eleitoral com discretos 6,87% dos votos nas eleições presidenciais de 1989, para finalmente se diluir no governo de Carlos Menem (1989-1999), que, inesperadamente, assumindo uma identidade anômala ao liberalismo, acabou por encarnar políticas de liberalização comercial e financeira, de privatização, de desindustrialização e de flexibilização trabalhista, expropriando assim o programa da própria UCEDE.
Daí surge a articulação dos liberais com os governos militares, e também de seus intelectuais. Alsogaray, por exemplo, foi funcionário da ditadura de 1955, que derrubou e proscreveu o peronismo, foi embaixador e ministro da Economia na ditadura de Juan Carlos Onganía (1966-1970), e celebrou a atuação das Forças Armadas durante a última ditadura cívico-militar (1976-1983), que deixou um saldo de 30 mil desaparecidos.
Outra figura-chave desse trecho da história é Alberto Benegas Lynch (pai), considerado pelo próprio Milei o maior expoente do liberalismo argentino, e também um defensor das bastante estatistas ditaduras argentinas. Benegas Lynch (um inesperado parente distante do próprio Che Guevara, como ele mesmo reconheceu) fez no campo intelectual liberal o que Alsogaray promoveu no campo político-partidário. De fato, ele foi o primeiro a divulgar o trabalho dos austríacos na Argentina, e articulou a visita ao país de Mises e Hayek em 1957, organizada pelo Centro de Estudos sobre a Liberdade (CEL), um think tank fundado por ele mesmo. Depois foi convidado a integrar a seleta Mont Pelerin Society, entidade representativa da mais proeminente renovação do pensamento econômico liberal, fundada no segundo pós-guerra.
A linhagem Benegas Lynch (pai, filho e netos) conecta as próprias raízes do liberalismo conservador ao fenômeno libertário da atualidade, além de ter sido fundamental na operação de reciclagem e valorização do liberalismo após sua participação na última ditadura (da qual, no entanto, se desvincularam porque não teria cumprido o seu programa antiestatista e "antitotalitário" da forma que esperavam).
A bem da verdade, a articulação entre o extremismo liberal e as ditaduras tem uma história tão longa quanto o próprio neoliberalismo. Como diz Eduardo Galeano: "As teorias de Milton Friedman ganharam o Prêmio Nobel; e o Chile ganhou o general Pinochet". Todos esses experimentos foram precedidos pelo que Naomi Klein chamou de "choques" (espirais hiperinflacionárias induzidas, crises políticas agudas, golpes de Estado, violações massivas dos direitos humanos e até mesmo a exploração de catástrofes ambientais).
Isso deriva de um fato muito elementar: uma corrente que faz da desigualdade e do egoísmo o ponto arquimediano de sua filosofia, que mais uma vez exclui as amplas maiorias sociais do gozo de todos os direitos, e que promove políticas econômicas draconianas só poderá implementar à força seus exercícios grosseiros de reengenharia social. Também vem daí a necessária articulação entre o extremismo liberal e o imperialismo: são essas mesmas políticas impopulares que levam os liberais locais a se alinharem com os Estados Unidos e seus aliados e a cumprirem, em casa, os mandatos do capital transnacional; uma lógica da qual o antigo Plano Condor foi o exemplo mais consumado, e que o novo Plano Condor sustenta hoje.
* Lautaro Rivara é sociólogo, jornalista e analista político
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato
Edição: Thalita Pires