PLEBISCITO NO CHILE

Chilenos têm neste domingo (17) a chance de reprovar uma Constituição ainda mais neoliberal e antidemocrática

Proposta é tão conservadora que farmácias poderão negar pílulas do dia seguinte por razões religiosas, diz especialista

Brasil de Fato | Botucatu (SP) |
Projeto da nova Constituição chilena, elaborado a partir das prioridades da direita, sublimou propostas progressistas que emergiram dos protestos de 2019 - Pablo Vera/AFP

Há sete meses, o Brasil de Fato publicou uma reportagem que antevia a possibilidade de o Chile vir a ter uma nova Constituição estruturalmente neoliberal. Desde então, o trabalho realizado pelos constituintes apontou exatamente nessa direção. Resta ver se o projeto será aprovado pela população chilena no plebiscito deste domingo (17), ou se será rejeitado, o que manteria em vigor a Carta Magna de 1980, elaborada durante a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990).

Depois de dizerem "não" à proposta de reforma de 2022, elaborada com ampla participação dos movimentos sociais, o que está em pauta agora é resultado de um processo fechado e tecnocrático, levado a cabo por um comitê de especialistas e por um conselho constitucional no qual a direita teve maioria absoluta dos assentos (33 de um total de 51). A esquerda governista ocupou 17 cadeiras e, portanto, não teve poder de vetar nenhum artigo.

A proposta é comparável ao que está em voga na Argentina com Javier Milei, ao que Jair Bolsonaro tentou implementar no Brasil e ao que José Antonio Kast pode tentar emplacar no Chile se for o próximo presidente. A troca no poder no país é plausível face à popularidade do atual mandatário Gabriel Boric, que despencou junto com a esperança da primeira reforma constitucional.

"O objetivo é inconstitucionalizar as políticas e os programas políticos de esquerda, da centro-esquerda, da social-democracia, do social-cristianismo, de modo que sempre o campo de jogo esteja limitado pelas medidas estabelecidas pela direita", analisa para o Brasil de Fato o chileno Alexis Cortés, um dos integrantes da comissão de especialistas que trabalhou no projeto constitucional, nomeado pelo Partido Comunista do Chile.

Essa limitação do "campo de jogo" remonta a 1980, quando Jaime Guzmán idealizou a Constituição da ditadura. Guzmán era admirador do espanhol Francisco Franco e ficou arrasado quando, após a morte do ditador, em 1975, as diretrizes da longa ditadura de 37 anos foram desmontadas em pouco tempo. Portanto, determinou que a Constituição chilena deveria instalar uma democracia autoritária e protegida, que não pudesse ser alterada em sua essência.

"Nunca foi possível abordar os aspectos neoliberais e mais ideológicos da Constituição, onde são garantidas as soluções privadas para os problemas públicos na educação, na saúde e inclusive na seguridade social", observa o constitucionalista chileno Javier Couso, professor da Universidade de Utrecht (Holanda) ao jornal El País.

Se o eleitorado chileno disser "sim" à nova proposta constitucional, a meta de Guzmán não só será mantida, como aprimorada. Mas, até agora, as pesquisas mostram vantagem do "não", por margem que varia entre 8 e 10 pontos. Existe, no entanto, uma porcentagem significativa de indecisos, que gira em torno de 25% (cerca de 4 milhões de eleitores de um total de mais de 15 milhões). Como o voto é obrigatório, boa parte deles deve tomar partido até a hora da votação.

Herança da ditadura e do projeto econômico neoliberal, diversos serviços básicos no Chile são parcial ou totalmente privatizados. Essa foi um dos principais pontos que fizeram com que milhões de pessoas fossem às ruas em outubro de 2019, em um movimento que ficou conhecido como estallido social (explosão social, em tradução livre) e que deu origem ao processo de reforma constitucional.

Um dos bens privatizados no Chile é a água. Conforme explicou Francisca "Pancha" Rodríguez, histórica militante do Partido Comunista Chileno, a legislação da ditadura permite que as reservas de água que existem embaixo de uma terra possam ser compradas separadamente por outro dono. A maioria dos registros está nas mãos dos empresários do agronegócio e da mineração.

A proposta constitucional derrotada em 2022 acabava com a privatização da água no país e passava a considerá-la apenas como recurso natural e bem comum. Mas a versão que vai a plebiscito agora, apesar de categorizar a água como um "bem nacional de uso público", não anula os "direitos de aproveitamento de água, os que conferem ao titular o uso e o gozo destas e permitam dispor, transmitir ou transferir tais direitos em conformidade com a lei".

A questão da água é apenas uma entre tantas nas quais se buscou um viés mais democrático, progressista e coletivo neste longo debate constitucional iniciado em 2019, mas que resultou na ameaça de uma mudança para uma concepção ainda mais conservadora, individualista e capitalista.

Para entender outros aspectos desse processo, leia os principais pontos da entrevista com Alexis Cortés, professor do departamento de sociologia da Universidade Alberto Hurtado.

Brasil de Fato: O projeto de Jaime Guzmán está bem representado pela proposta constitucional que vai a plebiscito neste domingo?

Alexis Cortés: Quando escreveu a Constituição atual, Guzmán definiu que ela tinha que limitar o adversário para que se ele chegasse ao poder, ou seja, a esquerda ou a centro-esquerda, tivesse que se comportar de modo não muito diferente de quem a escreveu. Esse problema agora fica reforçado na medida em que políticas neoliberais, como o sistema de capitalização individual, que não haviam sido fixados na Constituição, entraram no novo texto, indicando maior limitação da democracia e de atuação do adversário. O objetivo é inconstitucionalizar as políticas e os programas políticos de esquerda, da centro-esquerda, da social-democracia, do social-cristianismo, de modo que sempre o campo de jogo esteja limitado pelas medidas que estabeleça a própria direita.

Você já disse que a proposta de reforma é mais conservadora e de direita que a Constituição atual, que o "sistema da ditadura agora fica mais protegido". Por que isso acontece? Qual é este sistema da ditadura?

Nessa proposta, aumenta-se a dose de conservadorismo em saúde, previdência e, principalmente, educação. Em saúde, o que existe no Chile é um sistema onde, necessariamente, o cidadão tem que aderir ao sistema privado como alternativa ao sistema público, que atende 82% da população, 85% das mulheres e 88% dos maiores de idade. A redação proposta dá uma ênfase ainda maior no sistema privado. Sistemas de saúde pública, como existem no Brasil, na Inglaterra, na França, Portugal, Espanha se tornariam inconstitucionais no Chile.

No caso da previdência, se estabelece a propriedade sobre o imposto que é pago, de modo que as pessoas teriam liberdade para escolher as instituições que o administram. Com isso, a lógica da capitalização individual fica petrificada.

No caso da educação, fica reforçada a liberdade de ensino acima do direito à educação. Os donos de escolas têm mais direitos que os próprios estudantes, de modo que poderão discriminar alunos por razões religiosas e de integridade do seu projeto. Também se constitucionaliza o 'homeschooling' e se estabelece uma limitação no currículo nacional para que ele ocupe apenas 50% da jornada escolar completa, porque as escolas privadas querem ter liberdade para implementar seus próprios programas. São medidas que atendem ao interesse dos 10% dos estudantes mais privilegiados em detrimento das necessidades dos 90% restantes. Também se constitucionaliza o voucher, que é um sistema de financiamento individualizado, que normalmente castiga os estudantes mais vulneráveis, que têm mais absenteísmo. São políticas públicas que não deveriam estar num texto constitucional.

Como ficou a redação do artigo 1: "O Chile se organiza num Estado social e democrático de direito" ou "o Estado do Chile é social e democrático de direito"? Qual a diferença fundamental entre as duas versões?

No primeiro artigo, fica consagrado o Estado social e democrático de direito, independentemente das matizes na redação. Mas é uma definição que vai ficar apenas no papel porque o corpo normativo que vem a seguir é incoerente e contraditório com esse artigo. Em primeiro lugar, porque é um Estado que vai ter menos atribuições, por exemplo para sancionar delitos econômicos e ambientais. Por outro lado, vai ser um Estado com menos recursos porque há uma reforma tributária mimetizada na proposta. Não apenas desaparecem os impostos territoriais, que hoje permitem financiar os municípios, mas também, entre outros, um direito fundamental a deduzir despesas na hora de fazer o imposto de renda. Isso vai, provavelmente, significar uma perda significativa de recursos pra implementação dos direitos sociais consagrados no texto constitucional. Então, é uma definição meramente formal a que fica no artigo número 1.

Que efeito a nova Constituição poderia ter sobre direitos sociais adquiridos no Chile, como a lei de 2014 que proíbe discriminação em escolas por questões religiosas? Que outros segmentos sociais podem ter seus direitos reduzidos?

O que ficou também consagrado no texto constitucional é um direito fundamental à objeção de consciência dentro da liberdade religiosa. Essa consagração ampla, que inclui tanto a objeção da consciência individual como institucional, junto com uma liberdade de ensino hipertrofiada, pode gerar uma combinação muito negativa para a aplicação efetiva da lei antidiscriminação. Alguns juristas têm assinalado que a objeção de consciência é uma carta branca para o desrespeito à lei. Basicamente, o que a direita fez no texto constitucional é incorporar nas redações dos artigos argumentos que eles têm utilizado contra cada uma das leis que permitiram avançar em direitos reprodutivos das mulheres, como a interrupção voluntária da gravidez, ou nos avanços que têm permitido combater discriminações contra a população LGBTQIA+. Isso pode ter consequências muito graves, como o caso clássico dos Estados Unidos, do confeiteiro que não queria vender o bolo de casamento para o casal gay. Isso agora poderá acontecer, assim como uma farmácia vai poder se negar a distribuir a pílula do dia seguinte e as escolas poderão discriminar filhos de mães solteiras, de pais separados e de casais gays. Isso acontecia no Chile até 2014. O último caso registrado é de uma escola católica de uma congregação conservadora que usou como argumento, no tribunal constitucional, a liberdade de religião e de ensino para negar matrícula a uma menina que tinha pais divorciados. Agora, os argumentos dos setores conservadores terão suporte constitucional.

No caso do aborto, o texto, afinal, ficou assim: "A lei protege a vida de quem está por nascer". Isso pode dificultar a aplicação da lei de aborto de 2017?

Em relação à interrupção voluntária da gravidez, mudou a redação que atualmente existe na constituição. Em vez de "a lei protege a vida do que está por nascer", o texto que será plebiscitado define que "a lei protege a vida de quem está por nascer". Assim, o feto é considerado uma pessoa, portanto é titular de direitos e não se pode atentar contra a vida de alguém que tem direitos. Desse modo, há um grave risco de ser declarada inconstitucional a interrupção voluntária da gravidez nas três causas previstas em lei, que no Chile são estupro, inviabilidade fetal e risco à vida da mãe. Atualmente, são principalmente meninas de 13 anos as que mais usam causal de estupro, e isso é um grande perigo porque, além do mais, fica institucionalizada uma norma que define como criança toda pessoa menor de 18 anos. Essa é uma norma que setores conservadores têm utilizado no mundo todo, e sobretudo nas Américas, para impedir o avanço em matéria de interrupção voluntária da gravidez. No caso do Chile, a aprovação da Constituição fecharia a porta para qualquer discussão para incluir novas causas que permitam a interrupção voluntária da gravidez.

O que diz o artigo sobre objeção de consciência individual? O que isso significa?

O artigo que estabelece a objeção de consciência dentro da liberdade religiosa é geral e não especifica que seja apenas para objeção individual. É também institucional. Isso é um cheque em branco para desrespeitar a lei por razões religiosas. Isso existe no Chile, inclusive por causa do tribunal constitucional, um órgão muito desacreditado porque é contramajoritário, com uma presença conservadora muito forte. Pouco tempo atrás, quando foi aprovada a lei do aborto, o tribunal considerou que as farmácias tinham o direito de não distribuir a pílula do dia seguinte por razões religiosas, declarando a existência de uma objeção de consciência institucional que permite que determinados centros médicos possam se negar a praticar a interrupção voluntária da gravidez. Isso é muito problemático porque uma objeção de consciência é uma questão excepcional e, embora tenha respaldo da lei, o respaldo é frouxo porque a redação não especifica em que casos pode ser invocada. A redação ficou muito vaga, o que vai permitir que possa ser invocada em diversas situações e a lei vai sempre chegar tarde para corrigir eventuais discriminações às pessoas vulneráveis e historicamente discriminadas, como as mulheres, meninas mais novas e a população LGBTQIA+.

Edição: Thalita Pires