Em São Paulo, policiais militares não são obrigados a usar câmeras corporais durante operações reativas a ataques contra agentes. A decisão foi tomada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) na última quarta-feira (13), negando um pedido da Defensoria Pública e da ONG Conectas Direitos Humanos.
“O TJ-SP decidiu cassar a liminar. Mas nós entendemos que o uso das câmeras é obrigatório independentemente da decisão judicial. Reconhecendo que a segurança pública é um direito fundamental, a obrigatoriedade é uma imposição. É uma imposição da realidade da violência institucional deste país”, afirma o advogado Gabriel Sampaio, diretor de Litigância e Incidência da Conectas.
As entidades solicitaram a obrigatoriedade das câmeras com base nas denúncias de torturas e execuções sumárias da Operação Escudo na Baixada Santista, que na sua primeira fase matou 28 pessoas em 40 dias, entre julho e setembro. Essa, que foi a mais letal intervenção institucional da polícia paulista desde o Massacre do Carandiru, quase não teve imagens.
A inexistência do equipamento, a falta de bateria, a necessidade de conserto. As explicações da Secretaria de Segurança Pública do governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos) giraram em torno disso e, ao final, apenas nove das mortes tiveram imagens de câmeras corporais – algumas sem utilidade investigativa – enviadas ao Ministério Público.
Por conta disso, em setembro o juiz Renato Augusto Pereira Maia, da 11ª Vara da Fazenda Pública da Capital, acatou o pedido da Defensoria e da Conectas, pela obrigatoriedade das câmeras nas fardas e a adoção de medidas para o seu uso correto. A determinação durou só algumas horas. Em seguida, o desembargador Ricardo Anafe, presidente do TJ-SP, derrubou a liminar. Na última quarta (13), o Órgão Especial do tribunal confirmou a não obrigatoriedade.
Entre as justificativas, acatando pedido do governo do Estado, o TJ-SP considerou que o uso obrigatório das câmeras pode trazer “risco de lesão à ordem pública” e gastos não previstos no orçamento. As entidades de defesa de direitos humanos vão recorrer.
Na avaliação do advogado da Conectas, os argumentos são “inconsistentes”. “Os números são equivocados porque no processo há dados suficientes para se compreender que com o atual contingente de câmeras é absolutamente possível assegurar o seu uso em operações como a Escudo”, atesta Sampaio.
De acordo com a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP), os equipamentos estão presentes em 52% dos batalhões do Estado.
Vingança institucional
Deflagrada em 28 de julho com um efetivo de 600 policiais, a Operação Escudo foi uma reação ao assassinato do soldado da Rota, Patrick Bastos. Em 5 de setembro a intervenção teve seu fim anunciado, com um saldo de 1047 pessoas presas, além dos mortos. Três dias depois, no entanto, uma nova fase foi inaugurada e seguiu, numa espécie de guerra de baixa intensidade.
“Houve a lamentável morte de uma gente público. Porém o governo do Estado trouxe como resposta a operação mais letal das últimas décadas”, contextualiza Sampaio. “Além dos relatos de abusos, chama a atenção o fato de as autoridades de segurança pública refutarem todas essas denúncias sem ter qualquer contato com seu conteúdo”.
De um lado, as denúncias foram feitas pela comunidade local, movimentos de defesa dos direitos humanos, imprensa, Defensoria Pública, a Ouvidoria das Polícias, Conselho Nacional de Justiça e Conselho Nacional de Direitos Humanos.
De outro, o governador o secretário de Segurança Pública, o ex-policial da Rota Guilherme Derrite, classificaram as ações como satisfatórias e uma demonstração de “profissionalismo”. Para Gabriel Sampaio, “esse tipo de comportamento do governo do Estado foge ao padrão da legalidade. Por isso nós insistimos numa ação judicial”.
Desmonte da fiscalização
Recentemente, em mais um reajuste no orçamento da segurança pública em 2024, o governador Tarcísio retirou R$2,4 milhões do montante destinado às câmeras corporais da PM. No total, desde que assumiu o governo em 2023, foram R$25,9 milhões tirados do programa.
“Nós nos deparamos com o desmonte de um programa que tem muita utilidade para enfrentar o abuso policial e de trazer elementos probatórios para a proteção dos próprios agentes” defende o advogado da Conectas. “Lamentavelmente, o Estado de São Paulo tem implementado uma política de segurança pública baseada na violência”, resume.
Na sua visão, o discurso das autoridades no âmbito da Operação Escudo é o de “uma narrativa moldada para criminalizar previamente as pessoas que são mortas. Como se a execução fosse uma prática aceitável no Estado Democrático de Direitos”.
“Nós iremos levar essa discussão - seja nos tribunais, seja na sociedade - às últimas consequências”, afirma Sampaio.
Edição: Camila Salmazio